Na busca do vínculo entre a atualidade do que foi pensado e a vigência do pensamento de Martí – isto é, da obra martiana [1] como elemento ativo de nossa cultura –, convém ter em mente a advertência de Antonio Gramsci sobre os riscos daquele “heroico furor” que “se apodera de toda a personalidade” de quem se aproxima da vida e da obra de um autor apaixonante, até que finalmente “se impõe um equilíbrio crítico e se estuda com profundidade, sem se render em seguida à atração do sistema ou do autor estudado” [2].
Esse equilíbrio, acrescentava ele, era especialmente importante quando o pensador estudado manifestava “uma personalidade na qual a atividade teórica e a prática estão indissoluvelmente entrelaçadas” e dispunha de “uma inteligência em criação contínua e em movimento perpétuo, que sente vigorosamente a autocrítica do modo mais impiedoso e consequente”. Tal é, justamente, o caso ao estudar Martí, para quem:
Por isso mesmo, a investigação do pensamento – em particular no que diz respeito à diacronia de seus temas, seus ritmos, seus estilos e sua estrutura – adquire especial valor para a compreensão do que foi pensado.
Diante de problemas semelhantes, a International Gramsci Society Italia produziu, entre 2000 e 2009, um Dicionário gramsciano, cuja versão em espanhol está disponível na Internet.[4] Esse trabalho limitou a seleção de conceitos aos Cadernos do Cárcere e às cartas escritas durante o período final de sua vida como prisioneiro político do fascismo italiano (1926-1937). Foram privilegiadas, além da citação textual, a sequência cronológica que permitisse reconhecer a “estratégia do pensamento e da escrita de Gramsci”. Finalmente, considerando que a obra de Gramsci – como a de Martí – “convida a ser interpretada, mas, ao mesmo tempo, resiste a representações que possam ser reducionistas ou pretendam ser definitivas”, o estudo assumiu como própria a expressão “vontade coletiva” como “um fio condutor” que expressa “uma preocupação de fundo [que] orienta o conjunto de seu pensamento”, no qual se projeta
Esse fio condutor permitiu enfrentar o risco, comum nesses casos, de utilizar “de forma isolada e entrecortada frases célebres dos Cadernos, desarticulando seu pensamento e desvinculando-o do marxismo do qual se nutria.” Com isso, emergiu “um Gramsci tanto clássico quanto atual e contemporâneo,” que “percorre temáticas e questões de alcance universal que continuam rondando nossa época.” Assim, o dicionário buscou contribuir para “a aplicação rigorosa das palavras e dos conceitos gramscianos, como chaves de leitura e de ação coletiva no ‘mundo grande e terrível’ em que vivemos.”
A partir dessa experiência, em um autor como Martí – em quem a política expressa em ato o melhor de uma cultura em vigoroso processo de formação –, convém atender, em particular, a duas tarefas. Uma é a reconstrução da biografia do autor submetido ao estudo, “não só no que diz respeito à atividade prática, mas especialmente à atividade intelectual.” A outra é o registro “de todas as obras, mesmo as menos importantes, em ordem cronológica, divididas segundo os motivos intrínsecos: de formação intelectual, de maturidade, de posse e aplicação do novo modo de pensar e de conceber a vida e o mundo.” Aqui, acrescenta Gramsci, a busca pelo leit-motiv, pelo ritmo do pensamento em desenvolvimento, deve ser mais importante do que as afirmações isoladas e casuais ou os aforismos soltos.

Com isso, assumir a obra martiana em sua dupla dimensão de estrutura e processo facilita conhecer, ao mesmo tempo, a forja de uma visão de mundo dotada de uma ética coerente com sua estrutura e o exercício dessa ética em uma prática política sustentada pela necessidade de lutar pelo equilíbrio do mundo. Assim, sentimos Martí como um contemporâneo porque ele se forjou inteiramente como um homem de seu tempo, assim como tentamos ser do nosso, que se formou com ele.
Martí, Gramsci e a tarefa histórica de construir o Mundo Novo
Atentos a isso, se estudarmos Martí para o nosso tempo, o melhor é situá-lo no dele e abordá-lo a partir da trajetória vital que o traz ao nosso encontro. Aqui, ajuda distinguir nessa trajetória dois grandes planos interligados. Um, o de sua vida pessoal e social entre 1853 e 1895. O outro, o de sua vida política durante o processo de transição do período colonialista ao imperialista na organização do moderno sistema mundial, que teria seu correlato geocultural na passagem do conflito entre civilização e barbárie para, em meados do século 20, se traduzir naquele que opôs desenvolvimento a subdesenvolvimento.
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Essa perspectiva facilitará compreender as formas pelas quais se articulam Cuba, nossa América e a transformação em curso no sistema mundial de seu tempo na formação política de Martí, bem como a definição de sua aberta oposição ao expansionismo norte-americano, sintetizada na anotação de 1894, onde diz a si mesmo: “E Cuba deve ser livre – da Espanha e dos Estados Unidos” [5]. A partir daí, é possível entender o processo que levou a converter a guerra de independência de Cuba na primeira guerra de libertação nacional em nossa América.
Com isso, em 10 de outubro de 1968, a 100 anos do início daquela luta pela independência, cuja primeira fase armada transcorreu entre 1868 e 1878, Fidel Castro pôde destacar “as circunstâncias extraordinariamente difíceis em que Martí levou a cabo a tarefa cultural e política que demandava a criação das condições necessárias para libertar Cuba do colonialismo, e do perigo ainda maior da absorção por um vizinho poderoso, cujas garras imperialistas começavam a desenvolver-se visivelmente”. (Castro Ruz, 1968)
Educar para a liberdade: a visão de José Martí para uma nova América
Estudar assim Martí a partir dele mesmo é uma tarefa de complexidade equivalente à de seu objeto de estudo. Nela, como diz Gramsci, sobressai a necessidade de entender que o objeto desse estudo é “o nascimento de uma concepção de mundo nunca exposta sistematicamente por seu fundador”, cuja coerência essencial deve ser buscada “não em cada escrito nem em cada série de escritos, e sim no desenvolvimento inteiro do variado trabalho intelectual que contém implícitos os elementos da concepção”.
Isso, acrescenta ele, demanda “um trabalho filológico minucioso, com o máximo escrúpulo de exatidão, de honradez científica, de lealdade intelectual, de eliminação de todo conceito prévio, apriorismo ou partidarismo”, para facilitar a tarefa de “reconstruir […] o processo de desenvolvimento intelectual do autor submetido a estudo”,
Dessa seleção resultará “uma série de ‘resíduos’, de doutrinas e teorias parciais pelas quais o pensador pode ter sentido em algum momento certa simpatia, a ponto de aceitá-las provisoriamente e utilizá-las para seu trabalho crítico ou de criação histórica e científica”. Assim ocorre, por exemplo, no caso do entusiasmo com que Martí acolheu as ideias do economista Henry George, diferente de seu compromisso vital com a visão de mundo do filósofo transcendentalista Ralph Waldo Emerson.
Diante dessas tarefas, não há recurso melhor do que ler Martí a partir das advertências de sua própria obra, como aquela que fez em 1894 aos que desejavam intervir no debate sobre a luta pela independência de Cuba:
Tais são nosso objeto de estudo e a forma como nos propusemos o estudo deste objeto. Começamos por compreender o significado do conjunto da obra de Martí em seu tempo e para o nosso, e o papel que nela cumprem seus elementos estruturantes da visão de mundo que nos oferece a obra de Martí, e aqueles elementos estruturados por essa visão ao longo do tempo. O estruturado expressa aqui a maior ou menor atualidade do pensado por Martí em sua circunstância, enquanto o estruturante dá conta da vigência do pensar martiano na nossa. Tal pode ser, por exemplo, a relação entre suas advertências sobre a necessidade de lutar pelo equilíbrio do mundo no período ascendente do imperialismo, e a noção desse equilíbrio como referência ativa na análise do conflito em curso entre a visão unipolar e a multipolar que caracteriza a etapa atual do processo de transição que vivemos hoje.
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Assim, um exercício de síntese do âmbito em que foi produzida a obra martiana, e do papel que a visão de nossa América em Martí cumpriu nessa tarefa permite valorizar sua vigência contemporânea nas origens de sua contemporaneidade, assim como no papel que lhe cabe desempenhar na construção da nossa, de um modo que proteja, renove e amplie o melhor da que hoje vemos desintegrar-se dia após dia. A isso se referem, justamente, a utilidade da virtude para o melhoramento humano, e a deste para lutar pelo equilíbrio do mundo a partir da unidade do gênero humano. Para essa tarefa, o Centro de Estudos Martianos traz a nossa América a Edição Crítica da obra martiana, e abre passagem com isso – talvez sem sabê-lo – a um processo de renovação no pensar e na ação política de nossa região, que demanda como nunca que se enxerte em nossas repúblicas o mundo, mas que o tronco seja o de nossas repúblicas [6].
Centro de Estudos Martianos, Havana, 1º de julho de 2025.
[1] Síntese da conferência feita no Centro de Estudos Martianos de Havana em 1° de julho de 2025.
[2] Seguem-se aqui os comentários de Gramsci no item “Questões de método” na edição de sua antologia O Materialismo Histórico e a Filosofia de Benedetto Croce, Nueva Visión, Buenos Aires, 2003: 82-87.
[3] “Fragmentos”. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975. XXII: 199.
[4] Dicionário Gramsciano (1926-1937). Liguori, Guido; Modonessi, Massimo e Voza, Pasquale (edts.) Cagliari UNICApress, 2022. https://unicapress.unica.it/index.php/unicapress/catalog/view/978-88-3312-066-9/50/569-1
[5] Ibid. 1975: XXI, 380.
[6] https://libreria.clacso.org/biblioteca_jose_marti/?&an=1440





