“As riquezas injustas; as riquezas que se armam contra a liberdade, e a corrompem;
as riquezas que excitam a ira dos necessitados, dos defraudados,
vêm sempre do gozo de um privilégio sobre as propriedades naturais,
sobre os elementos, sobre a água e a terra, que só podem pertencer,
a modo de depósito, ao que tire maior proveito deles para o bem estar comum.
Com o trabalho honrado jamais se acumulam estas fotunas insolentes.”
José Martí, 1889[1]
A crise social e política que vem afligindo o Panamá teve sua mais recente expressão na rejeição ao empenho do Poder Executivo – com o apoio da maioria dos deputados do Legislativo – para encobrir a ilegalidade das operações de uma empresa mineira canadense na costa Atlântica do país desde a década de 1990. O contrato lei aprovado pela Assembleia Nacional para servir de instrumento a este empenho teve que encarar de imediato questões de inconstitucionalidade apoiadas por uma ampla mobilização cidadã, que incluiu desde manifestações massivas até o fechamento das principais estradas do país, e o bloqueio do porto da mina por pescadores panamenhos, o que a obrigou a suspender seus trabalhos ao impedir o fornecimento de carvão mineral para sua termoelétrica. Em 27 de novembro, depois de declarar-se em sessão permanente durante uma semana, a Corte Suprema de Justiça decretou a inconstitucionalidade do contrato.
Mais que repúdio a mineradora, Panamá se levanta contra regime servil ao colonialismo
O que aconteceu constitui, em resumo, uma vitória cidadã sobre a tentativa de fazer do extrativismo minerário a nova “vocação natural” do Panamá, em curso desde o começo da década de 1990. Com isso, pretendia-se compensar o rendimento decrescente do investimento feito na plataforma de serviços transnacionais criada no Corredor Interoceânico próximo ao canal do Panamá.
Desde o nascimento da República em 1903 e a chamada por alguns “venda do Istmo” aos Estados Unidos para a construção do canal, a cultura de negócios correspondente a este modelo de crescimento concebeu o interior do país como um mero fornecedor de mão de obra, alimentos e – mais recentemente – energia elétrica, e um mercado cativo para o comércio importador estabelecido no mencionado Corredor.
Daí resultou no século 21 – isto é, uma vez incorporados à soberania panamenha o Canal e sua antiga Zona sob controle norte-americano, o que um despacho de RT considera como um modelo econômico que se baseia em três pilares: as atividades financeiras, os ingressos por conta do Canal transoceânico e a exploração minerária, em um contexto de regulamentações frouxas para as empresas, baixas taxas de imposto e grande competitividade, ainda que o Estado tenha reservado para si alguns setores-chave, como saúde e educação. No entanto, um exame não muito minucioso desta realidade evidencia que o inegável crescimento econômico que exibe o país foi obtido com a condição de deixar de fora segmentos importantes de sua população.[2]
Estrela do Panamá
Mobilização social gerou uma jornada massiva de educação ambiental em que estiveram presentes contribuições de todos esses campos
Monopólios
Na prática, este modelo operou mediante a apropriação monopólica e o desperdício massivo das vantagens comparativas do Panamá, que radicam na posição geográfica e na abundância de águas, florestas e biodiversidade – seja mediante a transformação de matas em pastagens, a apropriação de ilhas e costas para o turismo de alto custo, ou o acaparamento de água para hidrelétricas. O que gerou uma íntima relação de interdependência entre o crescimento econômico, a iniquidade social e a degradação ambiental. Esta relação já ameaça o abastecimento de água para a operação do Canal e o consumo da metade da população do país, e se abate sobre as possibilidades de inserção produtiva do Panamá no mercado global do século 21, em que a produção de serviços ambientais desempenhará um papel cada vez mais importante.
Desta perspectiva, aqui entrou em crise a legitimidade do regime político instalado depois da intervenção militar norte-americana de dezembro de 1989. Este regime – já encurralado em julho de 2021 pelas manifestações geradas pela incapacidade de seu Estado de atender às sequelas econômicas e sociais da pandemia – se desmonta agora, junto às organizações políticas e sociais que lhe serviram de suporte ao longo de 30 anos. Nesse quadro, o amplo apoio gerado pelo movimento contra a mineração bem poderia constituir o centro potencial de um processo de renovação republicana, entre uma direita conservadora de vocação bukelista e alguma modalidade democrática de continuismo neoliberal.
Revolta no Panamá estremece estrutura política; agora, é preciso olhar a longo prazo
No momento, por outro lado, este movimento logrou que o ambiental se tornasse um tema da agenda política, depois de um longo período de incubação entre o conservacionismo cientificista de raiz norte-americana, a hostilidade constante de amplos setores empresariais, e a correção política dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 2030. Mas, além disso, e sobretudo, trouxe para o Panamá o problema político mais desafiador de nosso tempo: aquele que se sintetiza no fato de que se se deseja um ambiente diferente será necessário criar uma sociedade diferente.
No momento, isto propõe singulares dificuldades e oportunidades. Por um lado, o Panamá chega com atraso ao encontro com os grandes campos emergentes na cultura da natureza de nossa América, como a história ambiental, a ecologia política, a economia ecológica, a teologia da natureza e as Humanidades ambientais. Desenvolvê-los já é uma tarefa urgente, se quisermos passar da denúncia à análise que facilite ao movimento socioambiental nascente passar do protesto à proposta, e daí à transformação da realidade.
Por outro lado, a mobilização social gerou uma jornada massiva de educação ambiental em que estiveram presentes contribuições de todos esses campos. A encíclica Laudato Si’ e os problemas do cuidado da casa comum, por exemplo, estiveram presentes graças à participação de frades franciscanos que atendem paróquias na Cordilheira Central, e da solidariedade da Rede Ecológica Eclesial Mesoamericana.[3] O Movimento Ciência no Panamá, integrado por profissionais jovens de classe média que promovem a fundamentação da política pública em evidência científica, manifestou-se com esse tipo de evidência contra a mineração a céu aberto. Estes são fatos relevantes em uma sociedade em que usualmente setores como estes tiveram uma presença marginal na mobilização social e política.
Hoje, em suma, tudo confirma, com Martí, que “Contra a verdade, nada dura: nem contra a Natureza.”[4] Aqui nós dissemos basta, novamente, e outra vez defendemos a soberania exercendo-a, como temos vindo fazendo desde nossa constituição como República – ainda que na condição de um protetorado militar estrangeiro – 120 anos atrás.
Alto Boquete, Panamá, 29 de novembro de 2023
Referências
[1] “Cartas de Martí”. La Opinión Pública, Montevideu, 1889. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975. XII, 251.
[2] https://actualidad.rt.com/actu alidad/489856-panama-crisis-estructural-neoliberalismo-contrato-minero
[3] https://adn.celam.org/red-eclesial-ecologica-mesoamericana-cumple-tres-anos/
[4] “Carta a Gonzalo de Quesada”. Nova York, 1892. Ibid. V, 195.
Guillermo Castro H. | Colunista na Diálogos do Sul.
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Tradução: Ana Corbisier
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