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Peru: camponeses e indígenas são tempestade que Andes descarregam sobre Lima

Há décadas, os andinos têm ocupado lenta, constante e silenciosamente Lima e outras cidades da costa, educando seus filhos e os colocando na universidade
Jorge Rendón Vásquez
Diálogos do Sul Global
Lima

Tradução:

Tempestade nos Andes foi um livro de Luis E. Valcárcel, publicado em 1927, com um prólogo de José Carlos Mariátegui.

É um texto de denúncia da opressão dos indígenas no Peru pelos latifundiários, mestiços, a Igreja Católica, o Estado e o Exército, e de aspiração ao seu renascimento liberador pela formação de uma nova consciência indígena e sua rebelião como hostes multitudinárias que haveriam de baixar dos Andes à Costa, conduzidas por algum Lenin índio. 

Mariátegui dizia no prólogo: “Tempestade nos Andes chega em sua hora. Sua voz ferirá todas as consciências sensíveis. É a profecia apaixonada que anuncia um novo Peru. E nada importa que para uns sejam os fatos os que criam a profecia e para outros seja a profecia que cria os fatos”. 

94 anos depois se constata que essa tempestade foi só uma expressão literária e pictórica, embora plena de esperança, e que não houve esse alude de índios em som de conquista conduzidos por espartanos. Por quê?

Há décadas, os andinos têm ocupado lenta, constante e silenciosamente Lima e outras cidades da costa, educando seus filhos e os colocando na universidade

Pxhere
Familia indígena no Peru

A coletividades indígena estava, então, tão esmagada, privada de educação e explorada pelos latifundiários e pela oligarquia branca e tão envilecida pelo alcoolismo e o consumo de folhas de coca, promovidos por seus opressores e comerciantes, que nunca pode desenvolver uma consciência coletiva como etnia, nem criar um impulso para se libertar. 

A isso se somava o fato dos caciques índios, aos quais a dominação hispânica havia concedido a educação primária em escolas especiais para seus filhos e que, em maioria, estiveram ao seu lado, se haviam convertido em exploradores de seus congêneres índios com a mesma ferocidade que os brancos e mestiços. 

Em seus 7 Ensaios, Mariátegui acertou ao dizer que “A nova proposta consiste em buscar o problema dos indígenas no problema da terra” e que “o problema agrário se apresenta, sobretudo, como o problema da liquidação do feudalismo no Peru”, embora sem aludir especificamente a uma reforma agrária. Mariátegui, no entanto, não dava importância à educação dos indígenas, pois como dizia no prólogo à Tempestade nos Andes: “Não é a civilização, não é o alfabeto do branco o que levanta a alma do índio. 

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É o mito, é a ideia da revolução socialista. A esperança indígena é absolutamente revolucionária”. Podia desenvolver-se a consciência do indígena sem o alfabeto? Mariátegui tampouco advertia que ele mesmo escrevia em castelhano e que Tempestade nos Andes estava escrito nesta língua por um intelectual que não era índio. 

A ideia da revolução socialista foi assimilada só por alguns índios e não influiu na mudança da situação econômica, social e cultural dos indígenas no Peru. Essa mudança foi o resultado da evolução da estrutura econômica e de motivações correlativas a esta que não surgiram nos Andes. 

Esse foi o caso do governo de Velasco Alvarado, que realizou a reforma agrária pela necessidade de extinguir o feudalismo e para possibilitar o desenvolvimento capitalista com a ampliação do mercado, acabar com a vil exploração dos camponeses e eliminar a oligarquia proprietária de terras. 

Não foi a expressão de um movimento andino, mas sim da nova classe profissional, militar e civil, residente, em sua maior parte, em Lima, a cargo, nesse momento, do poder político e do poder técnico. 

Se tivesse podido, a oligarquia branca e seus próximos, e os corifeus midiáticos os teriam supliciado e executado como aos índios turbulentos e aos universitários contestadores. Resignada, a oligarquia esperou e, quando esteve segura, difamou o Velasquismo para afastar a possibilidade de uma repetição deste fenômeno histórico, adaptando-se, não obstante, à realidade distinta que esse movimento havia produzido. 

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Sendero Luminoso

Em outro contexto, houve algumas tentativas de mostrar o Sendero Luminoso e suas ações como uma expressão da tempestade andina dos índios. Mas não foi nada disso. 

Esse movimento foi criado por certos intelectuais e estudantes universitários radicados em algumas cidades da Serra, em sua maior parte mestiços da pequena burguesia provinciana, ressentidos pelo desprezo dos brancos. 

Seu próprio chefe procedia de uma cidade da costa e tinha se formado na universidade de Arequipa, admirando a Kant. Embora se proclamassem marxistas, é evidente que não chegaram a compreender o materialismo histórico nem a nova realidade histórica que a reforma agrária possibilitou na Serra do Peru, e se dedicaram a destruir as instalações, o gado e as colheitas das novas empresas campesinas e a ensanhar-se com o povo andino aterrado pela pressão e os abusos que sobre ele desencadeavam as forças da repressão estatal. 

Seu saldo, além de sua destruição como grupo, foi uma legislação antiterrorista e a ideia, difundida a partir dos centros do poder econômico, de que qualquer movimento popular é um prolongamento do terrorismo senderista, acusação absurda  que alguém batizou como “terruqueo”. 

As chuvas da Serra

O fenômeno de Pedro Castilllo e do Partido Peru Livre tampouco é de raiz indígena, mas sim mestiça, andina e da classe profissional, e suscitou a simpatia dos indígenas. 

Os resultados das eleições de 2021 o expressam claramente.  Ganharam com folga nas províncias da Serra, com votos de eleitores mestiços e indígenas sem se distinguir uns dos outros. 

Em troca, nas populações da Costa e, em sua maior parte em Lima e Callao, que concentram mais de um terço da população do Peru, a maior parte dos eleitores preferiu a candidata da dinastia da corrupção, reproduzindo uma inclinação que vem desde a remota submissão dos grupos raciais não brancos no vice-reinado, reafirmada com as técnicas da alienação.

Se poderia dizer que a eleição de Pedro Castillo e a alta votação obtida por Peru Livre manifestam a vontade andina de impor sua presença no controle do governo, deslocando os grupos descendentes da casta branca do vice-reino, cujo centro de ação é Lima. 

Aqueles constituem uma nova geração de políticos, não formada ainda nas habilidades do governo e que, agora, alcançada a oportunidade de exercê-lo e de mudar determinadas situações de injustiça, é possível que incorram em algumas torpezas próprias do provinciano recém-chegado à capital, como as de Julián Sorel, o jovem preceptor saído de uma família campesina chamado a prestar seus serviços no palácio de um nobre e potentado, no grandioso romance de Stendhal Vermelho e Negro. 

Por isso o assédio, as imprecações, a intimidação e o desprezo contra eles dos “opinólogos” a soldo do poder midiático e dos políticos e politiqueiros de direita, centro e esquerda de Lima, e seu desejo não oculto e esperança de que fracassem. 

Tudo indica, no entanto, que aprenderão muito rapidamente e que marcharão com prudência. Piano, piano, si arriva lontano, mas a passos firmes. 

Não é esta uma tempestade passageira. É o deslocamento do regime de chuvas da vertente andina sobre a costa, onde não chove nunca. 

Há muitas décadas, os andinos têm ocupado lenta, constante e silenciosamente Lima e outras cidades da costa, educando seus filhos e colocando muitos na universidade; e, pouco a pouco, tomou consciência de sua identidade e importância. Não é possível que esse fato seja reversível. 

É esta a personalidade majoritária de nosso país e necessitamos reafirmá-la como constitutiva da estrutura e das superestruturas do momento histórico no qual vivemos para desenvolver-nos plenamente.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Jorge Rendón Vásquez Doutor em Direito pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos e Docteur en Droit pela Université de Paris I (Sorbonne). É conhecido como autor de livros sobre Direito do Trabalho e Previdência Social. Desde 2003, retomou a antiga vocação literária, tendo publicado os livros “La calle nueva” (2004, 2007), “El cuello de la serpiente y otros relatos” (2005) e “La celebración y otros relatos” (2006).

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