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ToggleO chanceler peruano, que estudou na Argentina, foi surpreendido há poucos meses ao defender a carta democrática da OEA, porque as pessoas começaram a gritar “Dina assassina, que volte o presidente constitucional Pedro Castillo”. O secretário-geral da OEA, Luis Almagro, afirmou que os 15 mortos na Venezuela são um banho de sangue. Também o foram os 60 mortos no Peru, sobre os quais ele não disse uma única palavra.
A Anistia Internacional publicou um relatório intitulado “Quem deu a ordem?”. Refere-se à ordem de assassinar manifestantes em dezembro de 2022. Como eram quase todos jovens mestiços, parece que suas vidas valem menos que as demais para a OEA e a comunidade regional, que olha para o outro lado. Enquanto em Lima assassinavam pessoas, na França havia protestos contra uma reforma trabalhista. Os protestos na França foram muito mais violentos do que no Peru. Mas na França não morreu ninguém. No Peru, sim.
O Ministério Público acabou de arquivar as denúncias por genocídio contra Dina Boluarte. Também arquivou o processo por esterilizações forçadas contra Alberto Fujimori, antes de sua morte (denúncia que há décadas é levada adiante pelas mulheres da AMPAEF). Apesar disso, em 30 de outubro passado, o Comitê da ONU para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) concluiu, em uma decisão histórica, que tais esterilizações forçadas de mulheres pobres da Serra (sob engano e em troca de um cartão de leite), durante a ditadura de Fujimori, configuraram um crime.
O ministro da Saúde da época desses crimes não só não está preso: atualmente é deputado e votou pela destituição de Castillo por suposta “incapacidade moral”. O responsável pelas esterilizações forçadas que o CEDAW acabou de condenar na ONU se sente com “capacidade moral” suficiente para destituir um presidente legítimo, contra o qual não encontraram uma única prova.
Prescrição, indulto, pensão vitalícia
O Congresso peruano aprovou uma lei que estabelece a prescrição para crimes de lesa humanidade, impedindo que continuem a ser julgados. A ONU questionou essa lei. Fujimori, depois de ser indultado, contrariando o sistema interamericano, recebeu uma pensão vitalícia milionária. Hoje, discute-se até mesmo reinserir seu nome na Constituição.
A mãe de Rosalino Flores não para de sofrer. Qual foi o crime de Rosalino Flores? Sair para protestar e se esconder atrás de uma árvore para não ser morto. Mataram-no mesmo assim. Atiraram 36 projéteis em seu estômago.
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O Peru acabou de nomear um juiz para o sistema interamericano. O mesmo país que debate sua permanência na OEA coloca um “representante” no mais alto tribunal, ao mesmo tempo em que legisla normas questionadas pela ONU, que buscam a prescrição dos crimes de lesa humanidade do fujimorismo, condenados em decisões desse mesmo tribunal.
Por isso, o retrocesso peruano é tão impactante para toda a região: porque a jurisprudência interamericana em matéria de crimes de lesa humanidade cometidos no Peru, como nos casos de Barrios Altos e Cantuta, estabeleceu um precedente para todos os nossos tribunais. Não apenas para os peruanos, que hoje dão as costas ao sistema.
Quando algo não está na moda
As instituições só se pronunciam quando algo lhes “convém”. Parece que, quando algo não está na moda, já não merece “justiça”. A destituição inconstitucional de um presidente não é um jogo jurídico. A impunidade dos assassinatos, tampouco. Não podemos ignorar essas questões.
No Peru, violou-se e continua-se a violar a Constituição. Destituiu-se de forma irregular um presidente. O grande público talvez não esteja devidamente informado sobre questões do devido processo legal: essa mesma imprensa talvez não conheça ou, deliberadamente, oculte do povo os princípios básicos do direito processual penal e constitucional.
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Mas uma destituição constitucional tem regras estritas que devem ser respeitadas. E, na destituição ilegal de Castillo, elas não foram respeitadas. Por isso, sua destituição é nula. Sua remoção é, por mais que não esteja (mais) na moda dizer, por mais que o sistema internacional de justiça prefira se calar ou olhar para o outro lado, inconstitucional.
Castillo é um presidente democraticamente eleito que, equivocado ou não em seu discurso, foi destituído violando a Constituição peruana e o regimento do Congresso. Por isso, sua destituição é inconstitucional. Isso viola não apenas os direitos políticos do presidente, mas também mancha a dignidade e a voz de seus milhões de eleitores da Serra, que não estão sendo representados.
Um governo usurpador
O Peru tem um governo usurpador. Ilegítimo e inconstitucional. Como se não bastasse, reprime os estudantes da universidade, contratando “terceiros” (capangas) para reforçar a “segurança”, como admitiu a reitora, a mesma que, um ano antes, autorizou a entrada no campus universitário de dois tanques de guerra.
No Peru, violaram-se as normas processuais e materiais para destituir irregularmente um presidente. Não podemos nos cansar de repetir isso. Seja feito a Castillo ou a qualquer outro presidente democraticamente eleito. Nenhuma destituição pode ser ilegal.
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E a de Castillo é nula. Não podemos fechar os olhos para isso. Fingir que ele foi destituído de forma constitucional, quando não foi. Não se trata apenas de Castillo. Se esse atropelo processual não for denunciado e corrigido, nenhum presidente democrático no Peru terá um solo firme sob seus pés para governar.