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Feridas da ditadura Fujimori voltam a sangrar no Peru

Vanessa Martina-Silva

Tradução:

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*Vanessa Martina Silva

Milhares de pessoas tomaram as ruas em diversas cidades do Peru nesta terça-feira (05/04) em um grande protesto contra a candidata favorita a vencer as eleições presidenciais do país: Keiko Fujimori. A data foi escolhida para coincidir com o aniversário do auto golpe dado pelo ex-ditador Alberto Fujimori – pai de Keiko – em 1992.

Para contar com o simbolismo da data, os movimentos políticos e sociais peruanos decidiram arriscar, realizando a manifestação quando faltavam apenas cinco dias para a votação. Ou seja, 14 anos depois de um governo ditatorial ter se instaurado no Peru, o mesmo fantasma volta a assombrar o país: Keiko já manifestou discordância com a detenção de seu progenitor – condenado a 25 anos de prisão por crimes de lesa-humanidade – e cogita-se a possibilidade de ela tentar indultá-lo tão logo chegue ao poder.
Este não é, portanto, o enredo de uma história em que pai e filha rompem por defenderem posições diferentes, tampouco pode-se dizer que ela, por ser jovem à época, não estivesse suficientemente informada do que acontecia no governo e agora represente algo diferente, mantendo apenas o sobrenome familiar. Ao contrário, Keiko esteve ao lado de Alberto Fujimori e, aos 19 anos, foi a primeira-dama do país, após o polêmico divórcio dos pais ocorrido após a mãe denunciar que fora torturada pelo Serviço de Inteligência do Exército.
Assim, Keiko segue os caminhos do pai no modus operandi político. Derrotada nas eleições presidenciais de 2011, ela se manteve em campanha desde então, percorrendo todo o país, visitando povoados perdidos onde nenhum outro candidato esteve – fosse por falta de vontade, tempo ou dinheiro. A prática assemelha-se ao populismo de Alberto Fujimori que, por ter deixado o governo nas mãos de Vladimiro Montesinos – ex-militar, principal assessor da presidência e responsável pelas práticas mais sanguinárias do decênio fujimorista  – tinha tempo de sobra para percorrer o país inaugurando escolas ou estradas, mantendo-se sempre em contato com o povo.
Ainda mais recente que a democracia brasileira, já que fora retomada apenas nos anos 2000, a peruana carrega muito fortemente a marca dos diversos crimes de lesa humanidade cometidos durante a ditadura Fujimori. Além da perseguição política, durante o período ditatorial foram esterilizadas, de forma forçada, mais de duas mil mulheres indígenas, que hoje integram o coletivo Somos 2.074, um dos organismos que convocaram a marcha.
E, como a história não é maniqueísta, nem um jogo onde um perde e o outro necessariamente ganha, embora Fujimori pai esteja preso como forma de pagamento pelos crimes que cometeu, Keiko faz uma campanha riquíssima, apoiada pelo irmão, com o objetivo de levar a família de volta para o Palácio presidencial, ou a Casa de Pizarro.

Cenário indefinido

A marcha desta terça foi o ápice da campanha eleitoral, que se desenrolou de forma superficial nos últimos meses, sem que propostas e projetos de país tenham sido efetivamente discutidos. Entre a população, evidencia-se o grande descontentamento e descrédito com a votação, fato que se reflete na falta de entusiasmo com a campanha que, para muitos, já está, a priori, definida como fraude.
A quantidade de outdoors e propaganda eleitoral nas ruas da capital Lima dá uma pequena dimensão da quantidade de dinheiro que está sendo gasto. Neste sentido, o fato de que Keiko foi flagrada utilizando dinheiro para ofertar às pessoas em período eleitoral e que tal fato não foi suficiente para retirá-la da disputa – o candidato César Acuña, que estava em segundo lugar nas pesquisas, teve a candidatura cassada por distribuir dinheiro e “presente” para os eleitores –  aumentou ainda mais a desconfiança, por parte da população, de que se trata de uma eleição fraudulenta, na qual as cartas já estão marcadas.
https://youtu.be/z6-PPzWXT0k
Estamos falando de um país onde 22,7% das pessoas estão na linha da pobreza, segundo dados do Banco Mundial de 2014. O índice é similar ao que é observado no Paraguai – o país mais pobre da América do Sul – e bem superior ao do Brasil: 7,4%. Apesar disso, a economia peruana é uma das queridinhas do mercado financeiro e o FMI (Fundo Monetário Internacional) não poupa elogios ao país e à sua condução econômica neoliberal. No final de 2015, o organismo internacional qualificou a política econômica do país com 9,9; a maior valoração é 10.
Isso porque, embora o atual presidente, Ollanta Humala, tenha sido eleito por seu programa e projetos de esquerda, a política por ele implementada correspondeu às expectativas da banca internacional com ajustes que precarizaram ainda mais os trabalhadores e com a assinatura de acordos como o TPP (Tratado de Associação Transpacífico – na sigla em inglês) de corte neoliberal que, com diretrizes de livre-comércio, tem potencial de agravar ainda mais a situação dos trabalhadores e entregar a soberania do país aos grandes mercados de capitais mundial.
Com a mobilização desta terça-feira fica claro que, mesmo na reta final, o jogo ainda está sendo jogado. Apesar de os presentes estarem mais focados no voto anti-Keiko do que em favor de um candidato especificamente, há uma grande chance de a candidata de esquerda, Verónika Mendoza, capitalizar o descontentamento atual e figurar como uma alternativa jovem e sem vínculos com a corrupção, passando para o segundo turno, onde enfrentaria Keiko.
Já em um eventual segundo turno, a representante de esquerda tem uma possibilidade real de vencer a disputa e implementar seu projeto de governo que defende mais direitos para os trabalhadores, revisão dos tratados de livre-comércio, fim das políticas neoliberais e investimento em programas sociais.
Somente com uma vitória de Verónika o Peru poderá tratar das feridas ainda abertas do país e expurgar definitivamente o fantasma do fujimorismo, do neoliberalismo e da truculência de um Estado que tem repetidamente voltado as costas para seu povo.
Fotos: Agência Efe
* Vanessa Martina Silva é jornalista e uma das fundadoras dos Diálogos do Sul


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Vanessa Martina-Silva Trabalha há mais de dez anos com produção diária de conteúdo, sendo sete para portais na internet e um em comunicação corporativa, além de frilas para revistas. Vem construindo carreira em veículos independentes, por acreditar na função social do jornalismo e no seu papel transformador, em contraposição à notícia-mercadoria. Fez coberturas internacionais, incluindo: Primárias na Argentina (2011), pós-golpe no Paraguai (2012), Eleições na Venezuela (com Hugo Chávez (2012) e Nicolás Maduro (2013)); implementação da Lei de Meios na Argentina (2012); eleições argentinas no primeiro e segundo turnos (2015).

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