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Cambalache no Peru

Gustavo Espinoza M.

Tradução:

O segundo significado de “cambalache” é a que melhor se adequa ao que ocorreu no Peru em vésperas das festas natalinas. De fato, se trata de um “intercâmbio de coisas materiais ou imateriais, feito com malícia ou com afã de lucro”.

Gustavo Espinoza M.*
Gustavo-Espinoza-Perfil DialogosPoucas vezes o dicionário da Real Academia espanhola acertou uma definição de modo tão preciso. De fato, o que Pedro Pablo Kuczynski fez às escondidas do país, foi intercambiar o indulto com malícia, e com um claro objetivo de lucro. Tratou de se livrar da deposição urdida pela máfia fujimorista pelo lado “mais efetivo”: ganhando votos dessa bancada através de Kenyi, o filho mais moço do bandido preso oferecendo libertar seu pai.
Agora, encurralado como está, pego em flagrante, trata de justificar seu ato recorrendo a sofismas de pouco valor. Vejamos.
Evoca primeiro, a “reconciliação” como uma demanda nacional e uma necessidade urgente. Porém desfigura esse propósito quando o reduz a um fato insólito: que as vítimas estendam a mão a seus assassinos. Esse é o propósito.
cambalache1Para PPK a reconciliação nada tem a ver com a verdade. No caso não se requer que o indultado reconheça seus crimes nem peça perdão, nem pague suas culpas. Nem sequer que confesse seus delitos e forneça provas para aplacar os danos que causou.
Podia, por exemplo, ter exigido que diga onde estão enterrados os corpos dos estudantes da Cantuta, assassinados em julho de 1992. Onde estão os cadáveres dos que foram executados em Pativilca, ou em El Santa. Porém nada. Ninguém pediu nada. Pelo menos PPK considera que os mortos estão mortos e ponto. E seus familiares devem abraçar os assassinos como prova de conformidade. É racional isso?
“Reconciliar” implica em depor ódios. Pois bem. Cabe perguntar, quem são os que têm ódio no Peru? Tinham alguma outra razão para atuar como atuaram aqueles que em novembro de 1991, invadiram o solar de Barrios Altos e mataram a um menino de oito anos e a vários cidadãos? Nenhuma. Fizeram porque eram capangas do governo de então, que os pagava para matar. E também porque sentiam profundo ódio e desprezo pelos que seriam suas vítimas, ou seja, peruanos pobres que se viravam para ganhar uns míseros trocados para melhorar o lugar onde viviam.
Esse ódio que fez com que sequestrassem e assassinassem os estudantes da Cantuta e disparassem também para matar a Pedro Huilca. A propósito deste último: foi ódio, o que se viu nos olhos de Alberto Fujimori, quando no CADE 92, olhando a Huilca assegurou com fúria: “”já se acabaram os tempos em que as cúpulas da CGTP mandavam”. Ou haverá alguém que acredite que ele disse isso por amor à classe trabalhadora e seus dirigentes?
Não terá sido por ódio o que levou Fujimori a ordenar a execução extrajudicial de 36 réus presos no Penal de Castro em maio de 1992? Há que lembrar que eles foram retirados de suas celas violentamente, caídos no chão amarrados e simplesmente executados. Eram do Sendero Luminoso? Alguns sim, mas estavam presos e condenados. Pagavam por suas culpas. Quem os condenou à morte?  Que outra coisa além do ódio do tirano?
Quando alguém reclama pela necessidade de “acabar com o ódio” para semear a reconciliação, devem se dirigir aos que atuaram com ódio, não aos que foram vítimas do ódio.
Por isso, acabar com o ódio implica arrependimento. Pois bem, quem são os que têm que se arrepende?  Obviamente os que praticaram as ações de ódio, os crimes, não as vítimas. Contudo, agora a mídia corporativa assegura que Alberto Fujimori “pediu perdão” assim que recebeu o “indulto”. E isso tampouco é certo.
Ele pediu perdão –disse textualmente- “àqueles a quem eu decepcionei durante meu governo”. Quando devia ter pedido perdão a quem “assassinei, sequestrei, torturei, violei ou esterilizei em meu governo”. A eles e seus familiares, porque sofreram as agudas feridas deixadas pelo regime.
Esse regime não cometeu “erros”, nem “excessos” como asseverou PPK em sua mensagem de 26 de dezembro. Os erros são cometidos quando resultam de equívocos, por exemplo, um governo assegura que construirá 500 mil vivendas e só tem recursos para 400 mil. Erro de cálculo.
Com relação aos excessos também tem outra conotação. Excesso de bebida que leva à embriaguez. Excesso de gastos na administração pública e pior ainda quando o gasto for inútil, sem beneficiar o povo. Excesso é isso.
O que o senhor Fujimori cometeu não foram erros nem excesso, foram crimes hediondos, delitos passíveis de punição que foram denunciados, investigados, julgados e condenados de acordo com a lei. E isso se confirma com o próprio indulto, uma decisão diferente da anistia. A anistia esquece as ações e elimina a sentença. O indulto não apaga nada. Reconhece os delitos e os mantém. Considera que não são tão graves e portanto podem ser perdoados, mas não esquecidos. Fica registrado mas liberto.
Há os que afirmam que o indulto promulgado é uma figura irreversível. Não há precedentes, dizem, que uma causa como essa tenha sido revista por um organismo supranacional. A verdade é que não há precedente porque tampouco houve casos parecidos. Ou seja, ninguém concedeu indulto a criminosos dessa ordem como ocorre no Peru.
O general Videla, na Argentina, foi anistiado e logo depois a causa foi revista e ele morreu na prisão. Pinochet nunca foi indultado porque nunca foi julgado nem condenado. O uruguaio Alvarez morreu no cárcere. Stroessner no exílio. Somoza de um atentado a bomba no Paraguai. Os militares brasileiros se escudaram na impunidade. Nunca antes alguém ousou um indulto assim despropositado.
PPK, pelo visto, se move pelos piores caminhos. Agora cabe a Mercedes Aráoz formar um gabinete de “reconciliação” com a máfia. E também nomeou um general da polícia, Vicente Romero, no Ministério de Interior. Alguém perguntou a esse general se ele vai distribuir propaganda de Keiko nas próximas eleições? Esse sim foi um erro, ou se preferir, um excesso.
*Colaborador de Diálogos do Sul, de Lima, Peru
 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Gustavo Espinoza M. Jornalista e colaborador da Diálogos de Sul em Lima, Peru, é diretor da edição peruana da Resumen Latinoamericano e professor universitário de língua e literatura. Em sua trajetória de lutas, foi líder da Federação de Estudantes do Peru e da Confederação Geral do Trabalho do Peru. Escreveu “Mariátegui y nuestro tiempo” e “Memorias de un comunista peruano”, entre outras obras. Acompanhou e militou contra o golpe de Estado no Chile e a ditadura de Pinochet.

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