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ToggleCom 12 milhões de habitantes, Ruanda, um pequeno país do leste africano é, segundo diversos indicadores, um dos países mais igualitários para as mulheres. Lidera em participação política e tem uma diferença salarial entre homens e mulheres particularmente baixa, mesmo estando em 158º de 171º no ranking de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Mas o que significam esses indicadores? E como esse estado de coisas veio a ser? O que eles revelam e o que eles ocultam?
O país passou por fortes mudanças em sua estrutura social a partir de 1994 por conta de um genocídio que deixou 800 mil mortos — homens, em sua maior parte — em um período de apenas 100 dias.
Após o massacre, as mulheres, que chegaram a representar cerca de 70% da população, passaram a ocupar os cargos que anteriormente pertenciam apenas aos homens, exercendo um papel importante na reconstrução do país.
Catina K Taylor
Mulheres passaram a ocupar os cargos que anteriormente pertenciam apenas aos homens
De lá para cá, Ruanda começou a colecionar índices de igualdade de gênero que colocam o país lado a lado de nações desenvolvidas como Finlândia, Noruega e Suécia: segundo o último levantamento feito pelo Fórum Econômico Mundial, Ruanda é o sexto país do mundo com maior igualdade entre homens e mulheres.
O relatório mede níveis de igualdade entre os gêneros levando em consideração 4 tópicos: saúde, educação, economia e política. O Brasil atualmente ocupa a 95ª posição. Os Estados Unidos, a 51ª.
Além disso, atualmente 67% dos assentos do Parlamento ruandês são ocupados por mulheres, fazendo com que o país tenha a maior participação feminina no legislativo em todo o mundo. A título de comparação, no Brasil as mulheres representam apenas 13% do Senado e 15% da Câmara.
Como o genocídio mudou os papéis de gênero
Com o fim do genocídio, o país passou a ser chefiado pelo presidente Paul Kagame — até hoje no cargo —, que iniciou a implementação de uma série de medidas para incentivar a formação e o ingresso das mulheres no mercado de trabalho. Hoje, cerca de 88% delas exercem função remunerada nos mais diferentes cargos do país, percentual superior ao de homens.
Segundo Camila Soares Lippi, professora de relações internacionais da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), “o genocídio acabou sendo o principal fator dessa mudança. A maioria dos mortos foram homens tutsis e hutus moderados. Os homens hutus que participaram do genocídio ou fugiram do país ou foram presos, e as mulheres que sobreviveram precisaram assumir funções que eram tradicionalmente masculinas”.
A legislação também teve que se adequar à nova realidade do país. Um dos primeiros passos importantes neste sentido veio com a lei que autorizou as mulheres a herdarem as terras de seus maridos. “Como Ruanda é um Estado muito rural, não poder herdar as terras de seus maridos mortos no genocídio as privaria não apenas de seu direito à moradia, mas também de sua subsistência”, afirma a professora.
Um dos marcos na mudança dos papéis de gênero no mercado de trabalho e na política aconteceu em 2003, quando uma nova Constituição foi aprovada no país. O texto determina igualdade entre homens e mulheres na educação, na posse de terras e na economia, além de estabelecer que ao menos 30% dos cargos políticos sejam preenchidos por mulheres.
O número de participação feminina no Parlamento que já vinha crescendo, aumentou exponencialmente: em 2003, as mulheres ocupavam 48% dos cargos; em 2008, Ruanda passou a ser o primeiro país do mundo com maioria feminina no Parlamento; hoje, ocupam quase 70% dos assentos. Além disso, mais da metade dos cargos ministeriais são exercidos por mulheres.
Desenvolvimento desigual
Nos últimos anos, o país passou por um longo processo de redução da pobreza, o que impacta nos resultados. Ainda assim, em relação ao nível de desenvolvimento humano, Ruanda fica bastante atrás das nações com mais igualdade de gênero: atualmente o país ocupa o 158º lugar entre os países com maior IDH, enquanto a Noruega ocupa a 1ª colocação, Irlanda, a 4ª e Finlândia, a 6ª.
Embora essas transformações tenham ocorrido, a representação política e no mercado de trabalho ainda contrastam com uma realidade bastante desigual nas relações entre homens e mulheres, principalmente no ambiente doméstico.
Para Lippi, “ainda há problemas e um Parlamento dominado por mulheres pode às vezes aprovar leis que sejam desfavoráveis às mulheres. Um exemplo disso é que, em 2009, o Parlamento ruandês aprovou uma lei que diminui o tempo de licença-maternidade de 12 para 6 semanas”. Além disso, “as mulheres mais pobres são o segmento populacional mais afetado pela crescente desigualdade social em Ruanda, e elas têm tido dificuldade em tirar do papel esses direitos conquistados no período pós-genocídio”.
A cientista política ruandense Justine Uvuza, durante sua pesquisa de doutorado, estudou a vida das mulheres que ocupam cargos políticos em seu país e descobriu que, independentemente do posição que elas ocupam, velhas expectativas patriarcais ainda as cercam.
“Uma mulher disse que seu marido esperava que ela polisse seus sapatos, que levasse água ao banheiro e que passasse roupa”, ela contou ao podcast Invisibilia, na estadunidense NPR. Segundo ela, o marido fazia questão que isso fosse feito pela parlamentar e muitas temiam a violência caso contradigam seus esposo.
“Uma deputada poderia se levantar no Parlamento e pedir penas mais fortes contra violência sexual e subsídios para absorventes para as mais pobres, mas ter medo de falar sobre a opressão em seu lar”, relata Uvuza.
A pesquisadora aponta ainda que ser uma “boa ruandense” significava ser patriótica e servir ao país através do trabalho e da carreira, mas também ser dócil e servil ao marido. A palavra feminismo, que passa a ter mais entrada nas novas gerações, é visto como algo “ocidental”. Mulheres que tentam avançar e conquistar espaço na vida privada são encaradas como “americanizadas”.
Mas ela reflete que “mudança real leva tempo” e é possível que as novas gerações vejam amanheceres mais igualitários. “Pegar um atalho pode te levar rapidamente a algum lugar, mas deixa a cargo da próxima geração cuidar das mudanças que ficaram para trás”, encerra o artigo que acompanha o podcast.
O genocídio
Em 6 de abril de 1994, um avião que transportava o então presidente ruandês, Juvenal Habyarimana, de etnia Hutu, foi derrubado. A queda, supostamente orquestrado por membros da Frente Patriótica Ruandesa (RPF), de etnia Tutsi, serviu como desculpa para o início do que se tornaria um dos maiores massacres das últimas décadas. O genocídio, que completou 25 anos no último dia 7, deixou entre 800 mil e um milhão de mortos no intervalo de 100 dias.
Sem a presença do presidente, radicais hutus membros do governo se apropriaram da administração do país e iniciaram uma minuciosa campanha para assassinar tanto tutsis quanto hutus moderados, considerados opositores políticos.
Na época, carteiras de identidade apresentavam o grupo étnico ao qual as pessoas pertenciam, facilitando o trabalho das milícias, que montaram bloqueios nas estradas, onde abatiam os tutsis, na maior parte das vezes usando armas rudimentares, como facões e machados. Estima-se que cerca de 84% da população tutsi, que já era uma minoria étnica, foi assassinada durante os 100 dias de massacre.
Edição: Luiza Mançano