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ToggleEste texto compõe uma série de três artigos sobre os protestos nos EUA. Leia também:
– Protestos nos EUA | Pt. 2: Dor, lágrimas e desespero nas rondas anti-imigrantes
– Protestos nos EUA | Pt. 3: Claudia Sheinbaum e bandeira do México sob ataque
Os “distúrbios” — como chama Donald Trump — e cenas de manifestantes confrontando policiais em Los Angeles e outras cidades fazem parte de uma provocação arquitetada pela Casa Branca para justificar a intervenção de forças federais, sob o argumento de que o país enfrenta uma emergência causada por uma “invasão” de estrangeiros perigosos aliados a uma “esquerda radical” local.
“Não poderíamos ter escrito um roteiro melhor”, comentou um estrategista da Casa Branca, expressando certa satisfação junto a colegas enquanto observavam as cenas das ruas de Los Angeles, segundo reportagem da The Atlantic. Eles estão “satisfeitos” com o desenrolar da confrontação na cidade californiana, e destacaram em particular a imagem de um manifestante mascarado, diante de um carro incendiado, empunhando uma bandeira mexicana, como algo que expressa a mensagem de um presidente firme e disposto a usar a força para “defender” uma cidade estadunidense de invasores estrangeiros.
Trump ordenou o envio de até 4 mil integrantes da Guarda Nacional e 700 fuzileiros navais para a Califórnia, sob a justificativa de que seria necessário enfrentar uma “rebelião” contra os Estados Unidos e “libertar Los Angeles”.
🔴 Los políticos sionistas estadounidenses reclaman la expulsión de todos los que ondean banderas de México en las protestas de Los Ángeles.
A la vez permanecen callados sobre las banderas sionistas que cuelgan de sus despachos en el Capitolio y otras instituciones del estado. pic.twitter.com/CuQYawiDX4
— 🔻🇲🇷 MADIBA.🇪🇭🇩🇿🇵🇸🇲🇽🇿🇦 (@MADIBA1150270) June 9, 2025
Políticos da oposição, incluindo o governador da Califórnia, Gavin Newsom, e a prefeita de Los Angeles, Karen Bass, junto a legisladores, líderes sindicais e comunitários, reiteraram que não há nenhuma invasão nem rebelião em Los Angeles, e acusaram a Casa Branca de provocar a violência, primeiro com batidas agressivas contra imigrantes e agora com o envio de tropas.
Personalidades e lideranças denunciam a manobra
Algumas figuras políticas e uma ampla gama de comentaristas e analistas alertam que o que Trump e seu governo estão fazendo é uma manobra clássica para concentrar e ampliar seu poder — alguns apontam que se trata do avanço de um projeto neofascista.
O senador independente Bernie Sanders, em uma declaração sobre o que está ocorrendo em Los Angeles, advertiu que o envio da Guarda Nacional e dos fuzileiros navais por Trump à Califórnia “não tem a ver com protestos, nem com o Serviço de Imigração, e realmente não se trata de imigração. Trata-se de usar uma autoridade legal extremamente duvidosa em sua tentativa incessante de ampliar seu poder e mover este país em direção ao autoritarismo”. Ele lembrou que o atual presidente tentou pisotear os poderes legislativo e judiciário que se opõem a ele, assim como atacar a imprensa, escritórios de advocacia e universidades que não se curvam à sua vontade. “A justificativa de Trump para o envio de tropas é absurda… Alguém realmente acredita que estamos em meio a uma ‘invasão estrangeira’ ou uma ‘rebelião’ contra os Estados Unidos?”
Sobre as ações de Trump em Los Angeles, Sanders acrescentou: ordenar “batidas ilegais contra imigrantes, provocar uma reação e, então, chamar as tropas. É assim que governa um autoritário. Neste momento sem precedentes na história dos Estados Unidos, é imperativo que todos nós… nos levantemos contra este presidente que tem pouco respeito pelo estado de direito ou pela nossa Constituição. O futuro da democracia estadunidense está em jogo”.
Caos fabricado
O governador da Califórnia declarou, na noite de terça-feira (10), que as ações de Trump na Califórnia afetarão todos os estadunidenses. “Não vai terminar aqui, outros estados sofrerão as consequências. A democracia sofrerá com isso. A democracia está sob ataque diante de nossos olhos. O momento que temíamos chegou”, afirmou, acusando Trump de estar demolindo o sistema democrático do país. “O império da lei cedeu ao império de Don… o que Trump mais quer é a cumplicidade, o silêncio dos cidadãos. Não se rendam a ele.” Newsom anunciou ainda sua decisão de apresentar uma ação judicial contra o presidente por “abuso de poder” e ato “inconstitucional” em razão do envio da Guarda Nacional sem a autorização do governador. “O presidente está tentando fabricar caos e crise no terreno para seus próprios fins políticos”, destacou.
22 governadores democratas compartilham essa crítica. “Não há invasão. Não há rebelião”, declarou o procurador-geral da Califórnia, Rob Bonta. Legisladores federais, prefeitos de Chicago e Boston e outras figuras políticas, assim como editorialistas dos principais veículos de imprensa, repetiram variações dessas advertências: a democracia estadunidense está à beira do precipício.
E não faltam táticas macartistas para acompanhar as ameaças de repressão de Trump e seus aliados. Na quarta-feira (11), o presidente do Subcomitê Judicial sobre Crime e Contraterrorismo, Josh Hawley, acusou uma importante organização de defesa dos direitos dos imigrantes em Los Angeles — a Coalizão pelos Direitos Humanos dos Imigrantes (CHIRLA, na sigla em inglês) — de ajudar a financiar os “distúrbios” na cidade. Em uma carta oficial enviada à diretora da organização, Angelica Salas, o órgão afirmou: “Relatórios confiáveis sugerem agora que sua organização ofereceu apoio logístico e recursos financeiros a indivíduos que participaram dessas ações disruptivas”. Acrescentou: “Deixe-me ser claro: financiar distúrbios civis não é uma forma de expressão protegida. É cumplicidade em conduta criminosa”. Por fim, advertiu que as atividades da CHIRLA serão investigadas mais a fundo.
Salas, veterana do movimento de defesa dos direitos civis e figura reconhecida nacionalmente por seu trabalho, afirmou em entrevista ao Los Angeles Times: “Está claro que eles têm uma agenda contra organizações de justiça social e toda a infraestrutura que apoia as organizações de direitos comunitários. Por isso, não estão apenas perseguindo a comunidade imigrante, mas também as organizações — tentando cortar nosso financiamento, nos desacreditar, nos associar a grupos violentos. Isso não é normal”.
A CHIRLA não será a única. Os líderes republicanos do Comitê de Segurança Interna da Câmara dos Deputados anunciaram que investigarão cerca de 200 ONGs, incluindo a CHIRLA, sob a suspeita de que “prestaram serviços ou apoio inadmissíveis a estrangeiros durante a histórica crise na fronteira sob o governo Biden-Harris”. Informaram que apuram se essas ONGs utilizaram recursos públicos para facilitar atividades ilegais, permitindo a entrada de milhões de imigrantes durante o governo anterior.
Ninguém se atreve a prever o desfecho desse grande e inédito jogo político, nem o quão perto a democracia deste país está do precipício.
Repressão: resposta ao fracasso do governo
As ordens para ampliar as rondas contra indocumentados foram resultado do fracasso do governo Trump em cumprir sua promessa de realizar deportações massivas de “criminosos” estrangeiros que “invadem” os Estados Unidos. Diante do fiasco, Stephen Miller, assessor presidencial e arquiteto da agenda anti-imigrante da Casa Branca, visitou a sede do Serviço de Imigração e Alfândega (ICE, na sigla em inglês), onde expressou sua frustração.
“Saiam e prendam estrangeiros ilegais”, instruiu Miller aos líderes do órgão. Em vez de fazer listas de indocumentados “criminosos”, Miller lhes disse que fossem aos arredores do Home Depot, onde normalmente se reúnem diaristas esperando por contratação, ou às lojas de conveniência 7-Eleven, reportou o Wall Street Journal. Na reunião, os chefes do ICE aceitaram a tarefa e, com isso, iniciaram as rondas mais agressivas e amplas em locais de trabalho, estacionamentos onde diaristas aguardam por emprego e tribunais de imigração — com as operações de maior visibilidade em cidades e estados democratas. Miller fixou a meta de 3 mil detidos por dia.
Quando eclodiram os protestos em cidades como Los Angeles, Chicago, Phoenix e Nova York, Trump respondeu ameaçando intensificar suas operações e manobrou para recuperar sua mensagem usada durante seu primeiro mandato: de que cidades governadas por democratas costumam estar fora de controle enquanto abrigam — sob políticas de santuário — “criminosos violentos”.
Apesar da repressão, protestos ganham força
A resposta intensa — embora geralmente pacífica — em Los Angeles contra as rondas ordenadas por Trump foi usada pelo mandatário para justificar a militarização dos operativos anti-imigrantes. Questionado na terça-feira (10) sobre o envio da Guarda Nacional e dos fuzileiros navais para Los Angeles, Trump respondeu: “Contivemos um desastre, e parece que era um caos planejado. Eles (os manifestantes) tinham armas, tinham ferramentas. São pessoas muito perigosas. Foram enfrentados com uma força pesada e se renderam”.
Mas não havia sinais de que o movimento de resistência tivesse se rendido em Los Angeles. Na verdade, os protestos contra o ICE e as rondas, em solidariedade aos manifestantes em Los Angeles, têm se multiplicado ao redor do país.
Alguns meios de comunicação contaram pelo menos 25 manifestações — algumas com apenas dezenas, outras com milhares de participantes — em cidades por todo o país apenas entre as últimas segunda e terça-feira, reportou a NBC News. Incluem protestos, todos pacíficos, com exceção de alguns poucos indivíduos, em Los Angeles, San Francisco, San Diego, Atlanta, Chicago, Las Vegas, Dallas, San Antonio, Portland, Charlotte, Filadélfia, Washington e Nova York.
Em Nova York, centenas se manifestaram ao lado do edifício federal que abriga escritórios do ICE e tribunais de imigração, entoando “ICE fora de Nova York”, anunciando que retornariam dia após dia.
Perseguição em todo o país
Na terça-feira (10), Trump anunciou que o que seu governo está fazendo em Los Angeles será replicado no restante do país. Indicou que haverá mais rondas anti-imigrantes semelhantes às realizadas desde 6 de junho na principal cidade da Califórnia e advertiu que os protestos serão enfrentados com “uma força igual ou maior” à usada por seu governo em Los Angeles.
Trump está tentando manter o foco no que chama de perseguição a imigrantes “criminosos” e violentos, agora defendidos por políticos democratas e manifestantes. A Casa Branca divulgou uma lista de seis indocumentados acusados de crimes graves que teriam sido presos em Los Angeles. Trump também acusou manifestantes na cidade de cuspirem nas tropas da Guarda Nacional, e disse: “se eles cuspirem, nós revidaremos”.
Não está claro se o mandatário conseguirá sustentar sua campanha de agressão após os relatos de violência cometida pelas autoridades, incluindo jornalistas feridos por balas de borracha e legisladores federais impedidos de entrar em centros de detenção para observar as condições dos detidos. Aliás, os custos de envio da Guarda Nacional e dos fuzileiros navais para Los Angeles são estimados em mais de 134 milhões de dólares, informou um oficial do Pentágono ao Congresso.
Soma-se a isso que as prisões de líderes sindicais e comunitários durante os protestos estão alimentando a oposição a tais medidas entre amplos setores da população. E embora uma maioria — 53% — da opinião pública apoie a deportação de “criminosos”, esse respaldo despenca dramaticamente quando se trata da deportação de pessoas que não cometeram nenhum crime, segundo pesquisa da CBS News.
Mesmo assim, Trump mantém sua intolerância contra manifestantes e expressões de dissidência contra ele ou suas políticas. Ele advertiu que, no desfile militar preparado para celebrar o 250º aniversário do Exército e seu aniversário, neste sábado (14), em Washington, “se houver qualquer manifestante que queira aparecer, será enfrentado com uma força muito grande”. “Essas são pessoas que odeiam nosso país”, completou.
Nesta semana, a prefeita de Los Angeles, Karen Bass, decretou toque de recolher noturno em parte da região central da cidade para “conter os saques, conter o vandalismo”.
Militarização: brecha na Constituição
Trump ordenou a implantação dos Fuzileiros Navais – força de elite historicamente empregada como vanguarda em invasões e intervenções em outros países – às ruas de Los Angeles para apoiar as tropas da Guarda Nacional, despachadas desde o último domingo (8), intensificando sua repressão aos protestos em Los Angeles.
As forças armadas não podem atuar em funções policiais, mas o presidente ameaça invocar a chamada Lei de Insurreição – uma legislação antiga, de 1807 – que permitiria empregar os militares para suprimir violência classificada como “rebelião” contra a autoridade do governo dos Estados Unidos.
Por ora, ninguém sabe se a decisão do Executivo federal de enviar tropas da Guarda Nacional – uma entidade militar híbrida sob comando compartilhado entre governadores e o presidente – é apenas mais um passo na militarização das operações anti-imigrantes, ou se representa também o início da repressão militarizada contra quem se atreve a protestar contra estas e outras medidas do novo governo em Washington. Fato é que Trump intensificou seu confronto com o maior estado democrata do país e está à beira de gerar uma possível crise constitucional.
Tropas contra inimigo indefinido
A Casa Branca tem oscilado em sua mensagem sobre quem representa a “ameaça” aos Estados Unidos, justificando o uso de tropas da Guarda Nacional e dos fuzileiros navais. Por um lado, continua atacando os “invasores” estrangeiros criminosos e, por outro, a “esquerda radical” e instigadores “pagos”. Também inclui entre seus inimigos governadores, legisladores e prefeitos democratas que se opõem e criticam suas medidas.
“Foi uma grande decisão”, se autoelogiou Trump na segunda-feira (9) ao comentar o envio da Guarda Nacional a Los Angeles. Ele afirmou em sua rede social que, se não tivesse agido para enfrentar os “distúrbios violentos e instigados… Los Angeles teria sido obliterada”, e condenou a inação e “ingratidão” do governador Newsom e da prefeita Bass. No mesmo dia, mas por meio de sua conta eleitoral, alertou sobre “um ataque contra a pátria”, se referindo tanto aos protestos em Los Angeles quanto para justificar a entrada em vigor de sua proibição de viagens contra uma dúzia de países.
Já na noite de domingo (8), Trump anunciou que estava ordenando à Secretaria de Segurança Interna, ao seu secretário de Defesa e à sua procuradora-geral “tomar todas as ações necessárias para libertar Los Angeles da invasão migrante e pôr fim aos distúrbios migratórios”. “A ordem será restabelecida; os ilegais serão expulsos e Los Angeles será liberta”, acrescentou. Além disso, validou o envio das tropas da Guarda Nacional à capital californiana, declarando que os protestos eram “uma rebelião”, e usou uma cláusula de uma lei que lhe permite agir sem consultar os governadores diante de “uma rebelião ou do perigo de uma rebelião contra a autoridade do governo dos Estados Unidos”.
Mais repressão
“Se conseguirem suprimir com força a resposta em Los Angeles, imaginem a mensagem e as implicações para o resto do país”, comentou ao La Jornada o doutor Gaspar Rivera-Salgado, diretor do Programa de Solidariedade Transfronteiriça no Centro Laboral da Universidade da Califórnia em Los Angeles e estrategista de movimentos migratórios e trabalhistas.
Tom Homan, o chamado “czar da fronteira”, repetiu no último sábado (7) que qualquer pessoa que se oponha às operações dos agentes federais está cometendo um crime grave e será sujeita à prisão, incluindo o governador Newsom e a prefeita Bass. O governador respondeu: “Vamos ver se Homan tem coragem”. Trump, ao ser questionado sobre o possível encarceramento de Newsom, respondeu: “Eu o faria, acho que seria excelente”.
Vale lembrar que o governo Trump já prendeu anteriormente o prefeito de Newark, em Nova Jersey, e ao menos uma juíza de imigração em Minneapolis, ambos por resistirem e/ou obstruírem a detenção de imigrantes por agentes federais.
O uso da Guarda Nacional em operações contra o ICE já havia sido noticiado há cerca de um mês, quando o Departamento de Segurança Interna solicitou 20 mil tropas dessa força. Recentemente, foi confirmado que o governo de Trump estava elaborando planos para empregar essas forças em operações “noturnas”, de “interdição” de imigrantes, “localização de fugitivos” e também no “controle de distúrbios”, entre outras tarefas de apoio aos agentes de controle migratório, segundo informou a National Public Radio.
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