O presidente da Rússia, Vladimir Putin, está disposto a falar com seu colega estadunidense, Donald Trump, quando este tomar posse da Casa Branca em Washington, “se ele quiser e sobre qualquer tema”, e não se opõe a negociar o fim da guerra com a Ucrânia, mas sustenta que a Rússia não quer um simples cessar-fogo: “Precisamos não de uma trégua, mas de uma paz a longo prazo, duradoura e respaldada com garantias de segurança”, afirmou nesta quinta-feira (19).
Para Putin, o “regime neonazista” de Kiev rejeita negociar e, em todo caso, Moscou só firmará um eventual tratado de paz com uma “autoridade legítima” ucraniana que aceite “iniciar conversações a partir do rascunho dos acordos de Istambul (março de 2022) e das ‘realidades sobre o terreno’ (a anexação de quatro regiões ucranianas, entre outras)”.
O líder do Kremlin fez essa declaração ao ser o protagonista de “Balanço de 2024 com Vladimir Putin”, uma espécie de show anual transmitido pela televisão russa em cadeia nacional, em sua 21ª edição.
Nesta mistura de entrevista coletiva com jornalistas de meios de comunicação das províncias russas — quase todos com mensagens enviadas por e-mail e chamadas telefônicas da população sobre preocupações comuns (inflação, hipotecas, saúde pública, etc.) ou necessidades específicas de suas localidades previamente selecionadas —, o programa de televisão, que durou quatro horas e meia, deixou Putin aberto à possibilidade de encontrar-se, cara a cara, com Trump. Ele afirmou que, diferentemente do que pensa o correspondente estadunidense da CBS News que formulou a pergunta, não chegará a essa eventual reunião “enfraquecido”.
A respeito do tema, Putin elogiou novamente seu míssil hipersônico balístico Oreshnik, ainda em fase experimental, e, em resposta à opinião que circula na sede da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) de que seria uma arma modernizada de um foguete soviético obsoleto que pode ser interceptado, propôs realizar um peculiar experimento: que os Estados Unidos e seus aliados escolham um alvo em Kiev, assim como o dia e a hora, e tentem interceptar o lançamento de um Oreshnik. “Acredito que não conseguirão”, acrescentou.
O chefe do Executivo russo também não esclareceu quais concessões a Rússia estaria disposta a fazer para chegar a um acordo com a Ucrânia e limitou-se a lembrar que “a política é a arte do compromisso”, desde que a outra parte (no caso, a Ucrânia) tenha essa vontade.
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Sublinhou que Moscou “não impõe condições prévias” para negociar com a Ucrânia, mas que esta deve aceitar o que ele chama de “realidades sobre o terreno”, ou seja, renunciar às quatro regiões anexadas pela Rússia, retirar suas tropas do território que ainda ocupa em Donetsk, Lugansk, Zaporíjia e Kherson, desistir de ingressar na Otan, reduzir seu exército e adotar leis que favoreçam a minoria de origem russa, entre outras exigências.
Para Putin, neste momento, a única autoridade legítima na Ucrânia é a Rada Suprema (Parlamento) e seu presidente (atualmente, Ruslan Stefanchuk), com quem poderia sentar-se para negociar.
Ele afirmou que não tem nada a tratar com um “governante ilegítimo”, considerando que o mandato presidencial de Volodymir Zelensky terminou e que este não convocou eleições (o mandatário ucraniano alegou que não é possível realizar eleições em tempos de guerra, da mesma forma que, pelo mesmo motivo, não houve eleições em Kursk e outras regiões fronteiriças russas).
Putin não descartou ter Zelensky como interlocutor, caso este volte atrás, anule seu decreto que proíbe conversações com ele, convoque eleições presidenciais e as vença. Ele não acredita que Zelensky “vá pedir asilo político na Rússia”, embora tenha afirmado que “o concederia, como a qualquer pessoa que o solicite por razões humanitárias”. Considerou, ainda, que “é mais provável que ele seja acolhido em um país cujos interesses ele serve atualmente”.
Putin está convencido de que é inevitável a vitória na guerra que trava contra a Ucrânia, mas “não pode nem quer” adiantar uma data porque “os combates são complicados, e isso dificulta fazer prognósticos”.
Tampouco está em condições de dizer quando poderão expulsar de Kursk as tropas ucranianas que ocupam uma parte dessa região russa. Inclusive, mostrou-se surpreso com a queixa de uma mulher cujo marido está combatendo em Kursk e recebe 41 mil rublos por mês, e não os 240 mil que são pagos àqueles que estão em outras frentes. Isso ocorre porque os comandantes militares alegam que Kursk “é uma simples operação antiterrorista” e não faz parte da “operação militar especial”. Ele reconheceu não ter ideia disso e prometeu resolver o que classificou como arbitrariedade quanto antes.
Putin, sobre a Síria: “A Rússia cumpriu seus objetivos”
Ao se referir à Síria, após indicar que pensa em fazê-lo, mas que ainda não viu o deposto presidente Bashar as-Assad, a quem concedeu asilo político junto com os membros de sua família, Putin considerou que, em geral, “a Rússia cumpriu seus objetivos” no país árabe, no sentido de evitar a formação de um califado islâmico. “Conseguimos, e os grupos que combatiam contra o regime de Assad também evoluíram”, dando a entender que as novas autoridades devem ser retiradas da lista de organizações terroristas do governo russo.
Dedicou a maior parte de sua resposta a explicar por que caiu o regime de seu antigo protegido. Contou que “350 militantes da oposição” tomaram a cidade de Alepo, enquanto 30 mil soldados do exército governamental e das unidades pró-iranianas abandonaram o local sem lutar. Além disso, a pedido de Teerã, a Rússia evacuou de sua base aérea em Hmeimim 4 mil combatentes iranianos.
Por ora, admitiu Putin, não está claro se a Rússia poderá manter o aeródromo de Hmeimim e a base naval de Tartús, mas ofereceu essas instalações às novas autoridades sírias para receber “ajuda humanitária” destinada a Damasco.
Apontou Israel como o “principal beneficiário” do colapso de Assad na Síria, insistiu que a Rússia se opõe à “ocupação do solo sírio” por parte de Israel e sublinhou que é necessário respeitar a “integridade territorial” do país árabe.
Igor Kirillov, general russo morto pela Ucrânia em atentado, denunciou armas biológicas dos EUA
Putin referiu-se pela primeira vez ao recente assassinato do general Igor Kirilov em Moscou: classificou o atentado com bomba como um “ato terrorista” do “regime neonazista” de Kiev, que “colocou em perigo a vida de muitas pessoas”, e reconheceu que os serviços secretos russos falharam em preveni-lo.
O presidente russo considerou, em tom de conclusão, que quando assumiu o poder há 24 anos, conseguiu salvar a Rússia, que “se encontrava à beira do abismo, a ponto de perder sua soberania. E sem ela, a Rússia não pode existir como um Estado independente que toma decisões em seu próprio interesse e não no de outros países que queriam submetê-la, dando-lhe palmadinhas nas costas para atraí-la e usá-la em seu benefício”.
Perguntado sobre como a “operação militar especial” o afeta pessoalmente, Putin admitiu: “Conto menos piadas e quase deixei de rir”.
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