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Foto: Peg Hunter / Flickr

Reeleição de Trump reflete derrota da ordem mundial criada e gerenciada pelos EUA

Em crise terminal, neoliberalismo e democracia liberal são deixados de lado como valores da política de Estado dos EUA, produzindo efeitos internos e externos
Carlos Eduardo Martins
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Estamos vivendo uma mudança de época, e é evidente que a globalização neoliberal que comandou a política e a ordem internacional de 1980 até 2015 chegou ao fim. A globalização neoliberal teve seu epicentro em Washington, baseado em um consenso bipartidário sobre três eixos: a construção de um mercado mundial autorregulado dirigido pelo capital financeiro norte-americano, a universalização de uma democracia liberal que desconsiderava os direitos dos trabalhadores e a soberania nacional, e intervenções militares localizadas para promover mudanças de regime na periferia e semiperiferia.

A vitória de Trump reflete o reconhecimento, por uma nova elite política, do declínio dos Estados Unidos no mundo globalizado que eles próprios criaram, além de uma profunda reestruturação de sua política externa. A potência anglo-saxã abandona a pretensão de universalizar a democracia liberal, reconhece a incapacidade de sustentar múltiplas frentes de conflito e busca submeter as pressões competitivas do mercado mundial ao poder de seu Estado, delimitando seus inimigos estratégicos e impulsionando uma economia política mundial de sanções e embargos. O neoliberalismo e a democracia liberal são deixados de lado como valores da política de Estado norte-americana, produzindo efeitos internos e externos.

Assim como Moscou descartou a URSS, provocando o colapso de uma ordem regional, Washington abandona a ordem internacional que construiu, gerando efeitos caóticos em cascata que deverão se intensificar nos próximos anos. Os Estados Unidos revertem seu engajamento com a China, transformando-a em sua principal ameaça, e provavelmente tentarão gerenciar o conflito na Ucrânia, legitimando a ocupação russa em troca do afastamento da nação eslava da órbita chinesa, buscando enfraquecer o Brics e a Nova Rota da Seda. Essa estratégia inverte o projeto de Nixon e Kissinger, que era engajar a China para isolar a URSS. Entretanto, cabe questionar até que ponto ela poderá ser bem-sucedida, considerando o grau de conexão já estabelecido entre as potências asiáticas.

Diante da falta de apoio do imperialismo atlantista a que se submeteram, os europeus enfrentam uma guerra no Leste Europeu, contrária aos seus reais interesses regionais. À esquerda europeia cabe uma questão existencial: continuar como apêndice de um imperialismo liberal decadente e deixar a questão nacional e regional nas mãos do fascismo nacionalista, ou tomar para si a temática da geopolítica e da soberania europeias. A política de Trump para o Oriente Médio deve ser observada com atenção. É possível que ele busque restringir o apoio ao subimperialismo israelense para construir uma alternativa à Nova Rota da Seda, articulando Israel e Arábia Saudita, mas o grau de hostilidade de sua política em relação ao Irã e a influência do complexo industrial-militar sobre seu governo serão fatores decisivos.

A eleição de Trump reforçará a onda fascista na América Latina e a reação contra projetos nacionais-populares e contra a esquerda, que tende a migrar para a centro-direita. Resta saber como esses grupos políticos latino-americanos reagirão a esse cenário. O que fará Luiz Inácio Lula da Silva? Manterá a estratégia de subordinação do Brasil à política externa dos Estados Unidos, que vinha desenvolvendo em troca do apoio do Partido Democrata à sua governabilidade, agindo como um freio interno à vinculação da América Latina ao eixo geopolítico emergente multipolar articulado por China e Rússia? Alinhar-se-á ainda mais à direita para buscar respaldo das novas forças políticas hegemônicas nos Estados Unidos? Ou mudará de rota, rearticulando o país ao multilateralismo, diante da falta de apoio do fascismo estadunidense?

Torna-se evidente que o liberalismo, que se vinculou à globalização neoliberal, está em crise terminal. No Brasil, os dois grandes partidos que a geriram, PSDB e PT, perdem força política, abrindo espaço para alternativas, até agora ocupadas majoritariamente pela combinação de fascismo e patrimonialismo que colapsou a Nova República. Esse fascismo se apresenta como antissistêmico por se posicionar contra a democracia política, mas reforça ao extremo a violação da soberania nacional e a subordinação de nossos Estados a um neoliberalismo decadente.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Carlos Eduardo Martins

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