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ToggleO Wallmapu é o território ancestral do povo mapuche. No passado, compreendia os territórios da parte central do Cone Sul, através dos atuais Estados do Chile e da Argentina: desde o rio Limarí até o arquipélago de Chiloé, desde a Província de Buenos Aires até a Patagônia.
Atualmente, no Chile, este território corresponde à chamada Macrozona Sul, que inclui as regiões do Biobío, Araucanía, Los Ríos e Los Lagos. Esta macrorregião está tradicionalmente marcada pelo “conflito mapuche”, uma antiga disputa em que as comunidades indígenas enfrentam diariamente os interesses de muitas empresas privadas e do Estado chileno.
Em seus mil anos de história, os mapuches tiveram que resistir a várias tentativas de invasão. Os primeiros foram os incas, que nunca conseguiram expandir seu império ao sul do rio Biobío. Mais tarde, os espanhóis tentaram invadir seus territórios em busca de metais preciosos. Uma vez mais, os mapuches opuseram uma feroz resistência, obrigando os invasores europeus a reconsiderar suas pretensões.
Uma vez conseguida a independência da coroa espanhola, os Estados do Chile e da Argentina decidiram acabar de uma vez por todas com as aspirações de liberdade deste povo mediante campanhas militares que se chamariam Pacificação da Araucania pela parte chilena e Campanha do Deserto pela parte argentina.
Fim da independência e redução territorial
Estas campanhas acabaram com a independência do povo mapuche e reduziram o território indígena a algumas centenas de hectares, dentro das quais foram confinados os sobreviventes. Desde então, o povo mapuche viu-se obrigado a lutar para que sejam reconhecidos seus direitos culturais, territoriais e econômicos.
No lado chileno da Cordilheira, com o tempo, muitas terras mapuches foram vendidas a empresas dedicadas principalmente à silvicultura. Estas companhias cortaram os bosques nativos e substituíram as plantas autóctones por pinus e eucaliptos, árvores que não são originárias do Chile e que requerem muita água, provocando frequentes secas que impedem os habitantes de regar seus campos e saciar seus animais.
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Além disso, os mapuches são um povo cuja espiritualidade está fortemente ligada ao respeito à Mãe Terra – mapuche significa literalmente “gente da Terra”. Creem que nos bosques e nas margens dos rios habitam forças ancestrais que são expulsas pela contínua exploração dos recursos naturais.
Atualmente, os territórios do Wallmapu estão profundamente marcados por este conflito. Ocorrem contínuos incidentes de violência relacionados com disputas territoriais e tensões entre comunidades indígenas e setores industriais, aos que as forças da ordem respondem com o uso da força. Esta situação gerou graves problemas de segurança que levaram à progressiva militarização das regiões de Araucária e Biobío e à declaração de estado de exceção.
Respeito à Mãe Terra
Segundo a cosmovisão mapuche, as antigas forças criadoras do universo encarregaram a humanidade da custódia de Mapu, a Terra. Os humanos podiam se alimentar de seus frutos, tomando tudo que fosse necessário para sua subsistência, respeitando todas as demais formas de vida. Portanto, o respeito à Mãe Terra é um elemento constitutivo da espiritualidade mapuche. Segundo esta visão, qualquer que seja o elemento natural, animado ou inanimado, está impregnado de uma energia ou força primordial chamada newen.
E ainda, no interior dos bosques, nas margens dos rios, no interior dos grandes vulcões ou no cume das montanhas, habitam espíritos ancestrais chamados Ngen, que mantêm o equilíbrio e a ordem entre a natureza e os seres humanos. Por isso, cada vez que um mapuche entra em um bosque ou cruza um rio, saúda o espírito que o habita, e cada vez que corta uma árvore, colhe um fruto ou mata um animal, pede permissão e agradece à Natureza o que lhe ofereceu.
Esta visão do mundo é irreconciliável com o modelo extrativista que dominou a economia chilena desde a ditadura até hoje. Atualmente, de fato, o chamado “conflito mapuche” é em primeiro lugar um conflito entre as comunidades indígenas e os setores industriais – como as empresas florestais, elétricas, mineiras ou de piscicultura – e só em segundo lugar com o Estado, visto pelos mapuches como o protetor dos interesses das grandes empresas.
As companhias florestais, por exemplo, desmatam florestas nativas para instalar monocultivos de pinus e eucaliptos destinados à produção de madeira e celulose. Este tipo de cultivo intensivo empobrece o solo, reduz a disponibilidade de água e não permite a criação de sub-bosques, extinguindo as plantas que os machi – autoridades espirituais mapuches – utilizam para criar remédios e medicina tradicional. As minas destroem a terra em busca de recursos e minerais preciosos.
As empresas elétricas, mediante a construção de represas, bloqueiam o curso dos rios águas abaixo, impedindo a passagem da água e dos peixes, e inundam os territórios águas acima, privando as comunidades de terras úteis para a agricultura ou o pastoreio. Por último, as piscifactorias intensivas de salmão contaminam as águas e dificultam a pesca tradicional.
Não é raro, portanto, que às reivindicações territoriais se somem motivações meio-ambientais e de proteção da terra. A chamada “luta pela terra” adquire assim um duplo significado no ativismo mapuche, apontando, por um lado, para um processo de descolonização baseado na restituição das terras usurpadas depois da “pacificação” e, por outro, para o abandono da indústria extrativa mediante a promoção de um modelo de desenvolvimento econômico mais sustentável que ponha no centro as necessidades das comunidades locais e o respeito ao território.
A luta pela recuperação territorial e cultural

Durante anos, os Mapuche sofreram exclusão social, econômica e cultural. Suas comunidades foram marginalizadas e empobrecidas. Muitos abandonaram a vida em contato com a natureza para trabalhar na cidade. O peso da discriminação os levou a deixar de usar suas roupas tradicionais, a parar de falar mapudungun, a mudar seus sobrenomes e a abandonar sua espiritualidade para abraçar o cristianismo.
Na tentativa de retomar a posse das terras usurpadas, muitas comunidades Mapuche decidiram ocupar hectares de terras que pertencem principalmente a grandes proprietários de terras e empresas florestais. Alguns optam pela via institucional, com a ajuda de instituições como a Corporação Nacional de Desenvolvimento Indígena (CONADI). Outros empreendem uma luta firme, mas não violenta. E outros ainda escolhem o caminho da sabotagem e da autodefesa armada.
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A reivindicação é territorial, mas também cultural. Geralmente, durante as ocupações de terras, a comunidade começa a construir uma ruka – uma casa típica mapuche – e um nguillatuwe – um complexo cerimonial – para cultivar a terra de forma mais sustentável, mas, acima de tudo, iniciam projetos de reflorestamento com plantas nativas. Além disso, cada vez mais Mapuches decidem estudar Mapudungun e iniciar um processo de redescoberta cultural e espiritual.
Diante dessas demandas do povo Mapuche, o Estado chileno frequentemente responde com violência, por meio de despejos de comunidades que ocupam terras e acusações durante os protestos, além de prisões frequentes de autoridades e ativistas Mapuche. Desde 2022, as regiões de Araucanía e Biobío estão sujeitas ao estado de “exceção de emergência”, que envolve a militarização constante da área por meio do uso do exército em apoio à polícia.
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Para os Mapuche, o uso da violência é parte integrante da cultura da polícia e de outros aparelhos estatais. Esse legado também pode ser visto em diversas leis aprovadas recentemente que tendem a exacerbar o componente punitivo das sentenças e legitimam cada vez mais o uso da força.

Em particular, a Lei 21560, conhecida como Lei Nain Retamal, permite a legítima defesa privilegiada por parte dos agentes policiais, ampliando a possibilidade de recurso ao uso de armas em caso de alegado risco. Já a Lei 21488, sobre “furto e roubo de madeira”, aumentou as penas para o furto de madeira, tanto em termos de multas como de prisão. E há a chamada Lei Anti-Apreensão, que aumentou a discrição dos Carabineros – a polícia chilena – para realizar despejos forçados de terras e edifícios ocupados.
Identidade mapuche na prisão
Qualquer pessoa que ande pelas ruas do sul do Chile pode facilmente ver que as áreas afetadas pelo conflito estão salpicadas de bandeiras azuis, símbolo de que ali está ocorrendo uma recuperação territorial, assim como as histórias de quem vive ali estão repletas de episódios de violência e abusos. A escalada do conflito resultou em mortes, feridos e inúmeras prisões. Embora a luta pela terra afete principalmente as áreas agrícolas e produtivas de Wallmapu, do ponto de vista institucional, o terreno do confronto está mudando para prisões e tribunais.

A crescente presença de presos de origem mapuche nas prisões chilenas deu origem a outro tipo de luta, que geralmente é travada por meio de longas greves de fome, na maioria das vezes ignoradas pelas autoridades e políticos chilenos. A greve de fome é um tipo de ação extrema, mas não violenta, que os presos mapuches realizam há vários anos e que já lhes permitiu obter direitos que muitas vezes são considerados privilégios pela mídia convencional e pela Gendarmaria – a polícia prisional.
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Na maioria dos casos, os presos buscam melhores condições prisionais e o direito de continuar vivendo e respeitando as tradições e a cultura Mapuche dentro da prisão: na alimentação, na espiritualidade e no contato com a terra. Para isso, pedem a criação de uma seção específica para presos mapuches nas prisões, onde possam ser respeitados os requisitos da Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas, ratificada pelo Chile em 2008, ou, alternativamente, a transferência para as poucas instituições penais onde há um módulo dedicado aos presos mapuches.
Muitos prisioneiros mapuches dizem que há uma maneira de cumprir sua pena muito mais próxima do modo de vida mapuche: a transferência para um Centro de Educação e Trabalho (CET), complexos onde os prisioneiros podem cumprir sua pena trabalhando e onde têm a oportunidade de trabalhar a terra. A relação com Mapu, a Terra, é visceral na cultura e espiritualidade Mapuche.
As cerimônias devem ser realizadas ao ar livre, no início da manhã, e os pés devem estar em contato direto com a terra nua. Isso é incompatível com o horário de trabalho dos funcionários da prisão e com o espaço disponível. Na verdade, os rituais geralmente são realizados dentro de um ginásio ou em um espaço descoberto. Por isso, eles pedem que seja identificado um espaço ao ar livre dentro da prisão que seja culturalmente relevante, ou seja, mais adequado às necessidades, crenças e costumes do povo Mapuche.
Uma vez privado de relações com sua comunidade, dificultado cada vez mais pelos procedimentos prisionais, alienado de sua própria cultura, de seu próprio modo de vida e, finalmente, privado do contato com a Mãe Terra, um Mapuche corre o risco de perder seu feyentún. Feyentún é um sistema de valores, crenças espirituais e ações que vinculam o desenvolvimento da vida cotidiana com a visão de mundo Mapuche. Sem a possibilidade de desenvolver e cultivar o feyentún, os Mapuche deixam de viver como Mapuche, sua vida perde o sentido e o confinamento do corpo se torna um confinamento do espírito.