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A ação imediata do que chamam de a operação mais mortífera de toda a história do Brasil deixou mais de 130 mortos e ao menos 113 detidos — aos quais foi aplicado, à primeira vista, o “protocolo Bukele”. (Foto: Valter Campanato / Agência Brasil)

Rio, Gaza, El Salvador: cenários da guerra imperialista contra os povos

As operações militares e policiais, disfarçadas de combate ao crime, seguem um padrão global de repressão: pobres como alvos, impunidade como regra e a guerra como modelo de dominação

Stella Calloni
Resumen LatinoAmericano
Buenos Aires

Tradução:

Beatriz Cannabrava

O que aconteceu no Rio de Janeiro? Uma operação contra o narcotráfico ou o começo de uma tentativa de golpe de Estado contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando estava fora do país e após se reunir com seu homólogo estadunidense Donald Trump?

Duas favelas superpovoadas foram bombardeadas por drones, em uma operação policial de forças de segurança conjuntas, com uso de equipamentos militares, sabendo que a maioria dos mortos seriam pobres inocentes, ou seja, “descartáveis” para o modelo de guerra contrainsurgente que o império está aplicando em todos os países da América Latina.

A ação imediata do que chamam de a operação mais mortífera de toda a história do Brasil deixou mais de 130 mortos e ao menos 113 detidos — aos quais foi aplicado, à primeira vista, o “protocolo Bukele”. Se não foi isso, é o ensaio do “modelo” da guerra às drogas, a mesma aplicada no mar do Caribe usando todo o poder de fogo da frota de um império — que se derruba por dentro — para afundar pequenas embarcações de pescadores, atirando sem perguntar nem verificar se levam peixes ou drogas?

O “protocolo Bukele” que vimos assombrados no Rio de Janeiro foi aplicado pelo governador liberal Cláudio Castro, aliado do ex-presidente de ultradireita Jair Bolsonaro. Castro afirma que o governo Lula o deixou sozinho, quando evidentemente operou por decisão própria.

Vimos a cena dos detidos: uma fileira de homens, adolescentes e até crianças, sentados no chão, os corpos nus da cintura para cima, e mulheres de cabeça baixa, aterrorizadas, algemadas com as mãos para trás, cercadas por policiais mascarados, armados como para uma guerra. Nas ruas, um povo desesperado, que saiu em estampida, em um cenário nunca vivido com tamanha intensidade.

Temos visto também como os levaram, imitando o que foi feito pelos Estados Unidos com os migrantes estrangeiros — caçados em seus trabalhos ou em qualquer lugar, como se caçavam escravos, atados uns aos outros, para ingressar no sistema carcerário estadunidense, o mais brutal e violador de direitos humanos que existe no mundo, em um pântano de crocodilos, construído por ordens do presidente Donald Trump para alojar seus novos “inimigos”: os que fogem de seus países saqueados para poder sobreviver.

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El Salvador, o “modelo”

No caso de El Salvador, os detidos são levados ao centro “modelo” construído pelo presidente Nayib Bukele. Trata-se de um centro de concentração limpo, ordenado, frio como uma tumba — brutal —, para supostamente derrotar “as maras”, os grupos de jovens que haviam emigrado da América Central aos Estados Unidos e lá foram transformados em quadrilhas e grupos paramilitares, para então cometer delitos monstruosos em seus países de origem, em outro experimento da mesma guerra.

Com seus corpos tatuados, embarcados em aviões para “devolvê-los” a seus países de origem, os jovens das “maras” foram enviados a El Salvador, Honduras, Guatemala e Nicarágua (que não os aceitou), transformados pelas drogas e pelos treinamentos ilegais, como se faz para converter em assassinos ferozes as tropas especiais estadunidenses ou os mercenários espalhados pelo mundo, que também conformam os “exércitos secretos” da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

Com isso, criaram tanto terror entre a população quanto o fazem quaisquer mercenários enviados para aprofundar a insegurança, como aconteceu em El Salvador, quando um setor do povo aplaudiu seu presidente para depois assistir ao encarceramento de cidadãos comuns e de opositores políticos em condições desumanas, em cifras assombrosas — como as 86 mil pessoas presas.

O governo de Trump pagou a seu homólogo salvadorenho o “aluguel” de uma parte do centro de detenção “modelo” para levar até lá migrantes — a maioria venezuelanos, afetados pelo bloqueio contra a Venezuela mantido há uma década — os mesmos imigrantes aos quais os EUA instaram, e até pagaram, para abandonar o próprio país e supostamente fugir de uma “ditadura”.

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Por que não se denunciou massivamente essa “operação”, digna das piores máfias, como tampouco se denunciam muitas dessas operações, que em conjunto somam pontos à guerra contrainsurgente travada contra nossos povos?

Gaza

Há outros experimentos, como o que ocorre em Gaza, onde as vítimas — o povo palestino — foram convertidas em algozes. Chamam de “guerra” a ação militar mais despiadada levada adiante pelo exército israelense, que cinicamente se denomina Forças de Defesa de Israel (FDI) — um dos mais poderosos do mundo, pela quantidade e avançada tecnologia de armas e equipamentos que lhes são fornecidos abertamente, incluindo a bomba atômica.

Com que armas conta o povo palestino para responder aos bombardeios intensivos que, desde 7 de outubro de 2023, dia após dia, destruíram 90% de uma cidade e de um território pequeno como Gaza, onde viviam amontoados dois milhões de palestinos em sua própria terra — convertida em um campo de concentração a céu aberto?

O Estado e o exército israelense ocupam há anos Gaza, Cisjordânia e Jerusalém — o que resta das terras dos palestinos —, já que foram apropriadas por colonos israelenses constituídos em uma força civil armada de avanço, nos chamados assentamentos, em violação às resoluções da ONU. As bombas lançadas sobre Gaza apenas são utilizadas em uma guerra aberta, declarada entre países similares, mas caem dia após dia sobre edifícios e casas modestas de homens e mulheres simples que vivem no território habitado por seus antepassados durante milênios.

Permitimos em silêncio que classificassem como guerra o genocídio e o extermínio de uma população que só poderia se defender com o próprio corpo? Permitimos que a impunidade absoluta se convertesse em um modelo a ser aplicado em qualquer lugar do mundo? Fizemos o extremamente possível para impedir esse crime de guerra e obrigar o cumprimento das normas internacionais e das mínimas normas dos direitos humanos?

Extermínio no Caribe

É uma guerra às drogas o que os Estados Unidos estão fazendo no Caribe, utilizando a frota imperial que se movimentou pelos oceanos Atlântico e Pacífico Norte e também pelo Sul? Ainda que não deem a devida importância, isso está acontecendo, e o alvo caribenho são as pequenas lanchas de pescadores que todos os dias saem para ganhar a vida — sejam venezuelanos, colombianos ou mexicanos.

Quem arriscaria sair em uma pequena lancha com quatro ou dez pessoas carregando pacotes de drogas para se exibir diante dos poderosos destróieres dos Estados Unidos, que estão ali supostamente para combater o narcotráfico?

E por que, se é um combate ao narcotráfico, os Estados Unidos não se cercam com navios de guerra, considerando que são o maior consumidor de drogas do mundo e o país onde, com esse delito infame que deixa tantas vítimas, acumulam fortunas em bancos para depois lavá-las fora de seu território? E quem se enriquece dos milhares e milhares de quilos de drogas fragmentadas vendidas nos Estados Unidos ou na Europa, onde também há milhares e milhares de consumidores?

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Esses delitos são combatidos com organismos de segurança a serviço da proteção dos povos, ou com balas a serviço dos donos de grandes empresas que se disfarçam de ovelhas, mas que na realidade são lobos?

Onde vivem os mafiosos que se transformam em empresários multimilionários, não só com as drogas, mas também com o tráfico de pessoas e a venda de armas — um negócio de alto nível, pouco importando para quê ou para quem se vendam essas armas? Nesse mundo, os povos são preparados não para a convivência justa, mas para a guerra, e os mais fracos são subjugados pelo medo e pela força, impedindo o estabelecimento de um comércio de igual para igual, como deveria acontecer se realmente se buscasse a paz.

BlackRock, Vanguard, State Street, Grupo Bilderberg e outros similares — os superempresários, os especuladores financeiros que nos devoram e governam (modelo argentino de hoje): onde vivem esses ultramilionários enriquecidos por delitos mortais contra toda a humanidade? Não é nas vilas da miséria, nas favelas, nas cidades perdidas, nas populações “callampas”… enfim, os centros de concentração da miséria em cada país — assim como há centros de concentração do pensamento e da verdade em todo o mundo.

O dever nos clama

Não seria mais didático chamar as coisas pelo nome quando se faz jornalismo verdadeiro, sabendo que aquilo que se escreve e/ou fala deve ser entendido por todos? A maioria dos povos, especialmente em nossa região, está sendo bombardeada diariamente pela mentira, pela desinformação e pela manipulação, armas de guerra tão eficazes quanto criminosas.

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Estamos nós, amantes da verdade e inimigos do silêncio cúmplice, à altura dos acontecimentos que nos exigem estes momentos de crise da humanidade — mergulhada em vários caos produzidos pelo lento desaparecimento de um mundo em que o poder hegemônico vive hoje seus agônicos esplendores do passado, devorando a si mesmo e se suicidando lentamente, aplicando uma violência cega e sem limites para nos arrastar em sua queda?

Não deveríamos estar prevendo esses acontecimentos, em vez de repetir o mesmo, quando temos uma base teórica extraordinária surgida em tempos de libertação para nossos povos? Isso nos demanda reconstruir sobre o já construído, nos adaptando à realidade do mundo atual, deixando para trás o que deve ser deixado, para nos renovarmos e enfrentarmos com criatividade, sem perder os princípios, com as armas do pensamento e da ação, em momentos em que se define não apenas o futuro de nossos países, mas o futuro da humanidade.

Cidadã brasileira durante manifestação contra a operação policial Contenção no Rio de Janeiro. Brasília (DF), 31/10/2025. (Foto: Valter Campanato / Agência Brasil)

É tempo de refletir coletivamente, mas agindo, recorrendo à imaginação que revoluciona tudo diante deste cenário. Neste momento, estamos assistindo à ruptura final de um suposto acordo de cessar-fogo em Gaza para abrir um processo de paz que o governo sionista do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu nunca teve a intenção de cumprir. Israel voltou a bombardear Gaza, após tentar anexar a Cisjordânia, para acabar com os palestinos que também morriam de fome — já que toda ajuda humanitária vinha sendo impedida há meses — e retornaram aos escombros de suas casas para agora serem exterminados em uma das ações mais cruéis dos últimos tempos.

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Agora são mortos e caçados em seus refúgios de areia e barracas — dignos lavradores de sua terra, submetidos ao terror e à fome. Um cenário dantesco, mas no qual, novamente, a posição digna e firme de um povo que sobrevive a todos os terrores, coerções e danos, mantendo sua solidariedade eterna — como no caso de Cuba —, nos dá um novo exemplo de dignidade, coragem, resistência e esperança.

Não estamos vencidos, nem rendidos, nem entregues — ainda que em casos como o da Argentina, sob o desgoverno de Javier Milei, possa parecer assim. O povo do Equador, país entregue por seu presidente e ocupado para a imposição de bases militares, não está rendido. Nenhum povo da América Latina está vencido — e, mais uma vez, depois de sete séculos de resistência, isso foi demonstrado. Ainda que sob dependência, não nos venceram. Cada passo em falso que dão parece espetacular e amedrontador, mas novamente neste ano, na Assembleia das Nações Unidas, o repúdio ao bloqueio que os Estados Unidos mantêm há 63 anos contra Cuba foi avassalador. E esta é uma mensagem que não está dentro de uma garrafa à deriva no mar: é uma resposta ao mundo às avessas.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Stella Calloni Atuou como correspondente de guerra em países da América Central e África do Norte. Já entrevistou diferentes chefes de Estado, como Fidel Castro, Hugo Chávez, Evo Morales, Luiz Inácio Lula da Silva, Rafael Correa, Daniel Ortega, Salvador Allende, etc.

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