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Apesar de não possuir, até o momento, uma política oficial para o Ártico, é plausível afirmar que a organização atua na região através dos seus membros (Foto: Otan / Flickr)

Rotas, recursos e emergência climática: o papel da Otan na geopolítica contemporânea do Ártico

Em meio ao apelo de analistas ocidentais para que a Otan estabeleça uma política clara para o Ártico, a aliança oscila entre a adoção de uma presença mais robusta na região e a cautela para evitar uma escalada com a Rússia

Cíntia Xavier
Diálogos do Sul Global

Tradução:

À luz da crescente importância ambiental, econômica e militar do Ártico, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) delineia sua política para a região. Em um cenário marcado pelo degelo acelerado no Ártico — que altera padrões climáticos globais e abre rotas marítimas estratégicas, como a Rota do Mar do Norte — o Ártico tornou-se palco de competição pelos vastos recursos de hidrocarbonetos e minerais, bem como por reivindicações territoriais sobre dorsais submarinas.

Desde 2022, as tensões entre Rússia e países ocidentais interromperam boa parte da cooperação regional e impulsionaram a expansão da infraestrutura militar russa, enquanto a adesão da Finlândia e da Suécia elevou para sete o número de Estados árticos membros da Otan. Nesse contexto, o debate na Aliança oscila entre a adoção de uma presença mais robusta no extremo norte e a cautela para evitar uma escalada com Moscou, tornando o Ártico um eixo crucial na geopolítica contemporânea.

A importância ecológica e econômica do Ártico

O Ártico aquece quase quatro vezes mais rápido que a média global, acelerando o degelo da criosfera e contribuindo para cerca de 0,86 mm/ano da elevação média do nível do mar (IPCC, 2023). Esse processo tende a alterar os padrões atmosféricos do hemisfério norte e a expor grandes áreas a eventos climáticos extremos.

Ao mesmo tempo, a região abriga cerca de 13% das reservas não-descobertas de petróleo e 30% de gás natural do planeta (USGS, 2008), além de depósitos de níquel, cobre e terras-raras. A redução do gelo marinho também torna viável a Rota do Mar do Norte, que pode encurtar em até 40% a viagem Xangai–Roterdã em relação ao Canal de Suez (The Arctic Institute, 2024).

Esses fatores intensificam a competição por jurisdições submarinas — Rússia, Canadá e Dinamarca reivindicam, por exemplo, as dorsais de Lomonosov e Mendeleev — e condicionam o papel da Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLCS). Em paralelo, fóruns como o Conselho do Ártico coordenam políticas ambientais, enquanto o Conselho Barents/Euro-Ártico promove a cooperação econômica e de infraestrutura. O equilíbrio entre exploração e preservação, portanto, depende tanto de regimes multinacionais robustos quanto de acordos bilaterais, como o tratado de delimitação marítima Rússia-Noruega de 2010.

Da Guerra Fria ao imediato pós-1991

Entre 1945 e 1991, o Ártico tornou-se um dos eixos centrais da competição estratégica Leste-Oeste. Para a União Soviética, a Frota do Norte e as bases em Kola, Novaya Zemlya e Franz Josef Land integravam a doutrina do “bastião”, destinada a garantir rotas seguras para submarinos nucleares balísticos (SSBN) no Mar de Barents (SWP, 2022). A Otan, por sua vez, concentrou-se em controlar a travessia dos SSBN pelo GIUK Gap e instalou a linha DEW e o NORAD para alerta antecipado de mísseis. Exercícios navais como Mainbrace (1952) e Northern Wedding (1978-86) buscavam sinalizar capacidade de bloqueio do Atlântico Norte.

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Apesar desse peso estratégico, divergências internas limitaram iniciativas conjuntas da Aliança: o Canadá temia que a instalação de bases permanentes da Otan na Passagem Noroeste comprometesse sua soberania (Huebert, 2024), enquanto a Noruega defendia uma dissuasão robusta baseada em exercícios frequentes e pré-posicionamento de material aliado, mas mantinha a política de “no foreign bases, no nuclear weapons” (Tamnes, 1991). A implosão da URSS reduziu temporariamente o poder naval russo e abriu espaço para fóruns de cooperação — prelúdio da criação do Conselho do Ártico em 1996. Esse hiato, porém, foi breve: já a partir da metade da década de 2000, Moscou iniciou a revitalização de sua infraestrutura polar.

Relevância geopolítica do Ártico na terceira década do século 21

A partir de 2006, a Rússia reativou estrategicamente aeródromos polares, como Nagurskoye (Franz Josef Land) e Alytaus (Novaya Zemlya), e modernizou portos e radares na AZRF (Zona Ártica da Federação Russa), impulsionando um programa de exercícios anuais de artilharia e lançamento de mísseis antinavio (SWP, 2022). No entanto, a geopolítica do Ártico encontrou seu ponto de virada em 2022, quando se iniciou a Operação Militar Especial na Ucrânia, devido ao aumento das tensões entre a Rússia e os países ocidentais. 

Em março do mesmo ano, sete membros do Conselho do Ártico anunciaram que pausaram os trabalhos com a Rússia (Joint Statement, Government of Canada, 2022). Os exercícios trilaterais de busca e salvamento entre Rússia, Noruega e EUA também foram cancelados (High North News, 2022). O choque desse ano reacendeu entre analistas ocidentais o debate sobre uma política da Otan para o Ártico — desde uma abordagem cautelosa até propostas de criação de um Comando Conjunto da Aliança para o Alto Norte (The Arctic Institute, 2023), visando monitorar e conter a expansão infraestrutural e militar e russa na AZRF.

Em setembro de 2023, a Rússia retirou-se formalmente do Barents/Euro-Arctic Council, citando hostilidades ocidentais (Arctic Portal, 2023), interrompendo também colaborações científicas e de direitos indígenas.

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Paralelamente, a Aliança também ganhou a adesão de mais dois países árticos, a Finlândia (4 abril de 2023) e a Suécia (7 de março de 2024), o que ampliou o escopo de atuação da organização na região e impactou no balanço de poder do Conselho do Ártico. Atualmente, 7 dos 8 países árticos são membros da Otan.

Atuação da Otan por meio de Estados Árticos-membros

Apesar de não possuir, até o momento, uma política oficial para o Ártico, é plausível afirmar que a organização atua na região através dos seus membros, com destaque, por exemplo, para a Noruega, Islândia, Dinamarca e, mais recentemente, para o Canadá, desde a atualização da sua política de defesa em 2017. 

A Noruega — o segundo maior investidor em infraestrutura polar, atrás apenas da Rússia — mantém exercícios regulares e pré-posiciona material aliado (High North News, 2025). Dinamarca (Groenlândia) abriga a base área americana de Thule e redes de sensores que reforçam a vigilância marítima e aérea do GIUK Gap (OSW Commentary, 2021). O Canadá expandiu a sua importância para a articulação da Otan no Ártico, permitindo exercícios da Aliança no seu território e fortalecendo a coleta e compartilhamento de informações.

Fuzileiros navais finlandeses e suecos praticam operações anfíbias com outros aliados da Otan no Ártico norueguês, em março de 2024 (Foto: Otan / Flickr)

No entanto, a estratégia de atuação dos países árticos membros da Otan varia. O Canadá, apesar da sua importância no Ártico para a Otan, evita tradicionalmente a expansão da organização através da implantação de bases no seu território, com receios de uma perda de soberania e aposta na utilização de outros mecanismos para o diálogo e cooperação na região. Já a Noruega e os Estados Unidos, por exemplo, tradicionalmente defendem uma presença militar mais robusta. 

Com o segundo mandato de Donald Trump, iniciado em 20 de janeiro de 2025, cresce a expectativa sobre o papel que o Ártico ocupará na estratégia dos Estados Unidos — tanto a partir do Alasca quanto por meio do Joint Force Command Norfolk (JFC Norfolk), na Virgínia, responsável por proteger as linhas de comunicação transatlânticas que passam pela chamada “Brecha Groenlândia-Islândia-Reino Unido” (GIUK Gap).

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Em 21 de março de 2025, o Allied Maritime Command (MARCOM) anunciou que o Standing NATO Maritime Group 1 ampliou as patrulhas aéreas e navais na GIUK Gap. Já em 6 de junho de 2025, foi divulgado que Noruega, Finlândia, Suécia, Dinamarca e Islândia estão em vias de ficar sob a autoridade operacional do JFC Norfolk, alinhando seus planos de defesa regionais à estratégia aliada e reforçando a importância do Ártico para um dos principais membros da Aliança. Em suma, a Otan projeta poder no Ártico sobretudo por meio das capacidades nacionais de seus membros costeiros e de suas bases e centros de sensores.

Movimentações recentes e dilema estratégico

Não faltam apelos de analistas ocidentais para que a Otan estabeleça uma política clara para o Ártico, superando os desacordos internos e solidificando rotinas de vigilância e dissuasão. Já podem ser observadas diversas iniciativas da Aliança: a reativação de bases militares nos países nórdicos (High North News, 2025), exercícios conjuntos mais frequentes (Steadfast Defender 24, 90 mil tropas; Nordic Response 24, 20 mil tropas) e o reforço do comando aéreo da Noruega e da presença naval no norte (NATO, 2024; Norwegian Armed Forces, 2024).

Em outubro de 2024, o Almirante Rob Bauer, Presidente do Comitê Militar da Otan, destacou na Arctic Circle Assembly a importância geopolítica do Ártico, advertindo para o avanço militar russo, a cooperação sino-russa e as novas rotas marítimas, e sublinhou o papel dos países nórdicos no Conceito de Defesa Nórdico (Speech by Admiral Bauer, NATO, 2024). Já em março de 2023, Noruega, Dinamarca, Suécia e Finlândia assinaram um acordo-quadro para criar um comando aéreo nórdico e fortalecer o compartilhamento de inteligência na região (Reuters, 2023).

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Esses movimentos reforçam que a Aliança já pratica uma presença mais ativa no Alto Norte, mas o futuro caminho estratégico permanece incerto. Caso opte por uma postura de contestação aberta — intensificando bases, exercícios e patrulhamento — arrisca provocar uma crise sem precedentes com a Rússia, que vê tais medidas como cerco direto ao seu bastião no Mar de Barents. Por outro lado, uma abordagem de foco limitado deixaria espaço para que Moscou consolide seu avanço industrial e militar na região. Do lado russo, analistas classificam qualquer reforço aliancista como ameaça à sua soberania na região, justificando a necessidade do programa de modernização das bases polares. 

Diante do derretimento acelerado da criosfera e das novas capacidades econômicas liberadas pela Rota do Mar do Norte e pela exploração de recursos, torna-se praticamente impossível para os países ocidentais simplesmente ignorar a Rússia ou recusar o diálogo com o maior Estado ártico. A magnitude dos desafios ecológicos e das oportunidades econômicas reforça que qualquer estratégia para o Ártico deverá, cedo ou tarde, envolver contatos e arranjos práticos com Moscou, independentemente das tensões políticas atuais.

Bibliografia

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Cíntia Xavier Correspondente do Jornal Toda Palavra em Moscou e graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Russa da Amizade dos Povos (RUDN). Atuou como pesquisadora no Núcleo de Estudos dos Países Brics da UFF e no Brics Observer da FGV, focando a governança do bloco. Seus interesses abrangem a cooperação científico-tecnológica entre os países do Brics, a política externa russa e a dinâmica das relações da Rússia com seus vizinhos.

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