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ToggleA segunda temporada da série “Ruptura” (Apple TV+) chegou em 2025 em um contexto de crescente insatisfação laboral. No Brasil, o número de afastamentos por transtornos mentais atingiu 472 mil casos em 2024, um aumento de 68% em relação ao ano anterior.
A série, que retrata funcionários de uma corporação submetidos a um procedimento cirúrgico para separar memórias profissionais das pessoais, reflete uma angústia real: a incapacidade de equilibrar trabalho e vida privada em modelos rígidos, como a jornada 6×1 (seis dias de trabalho, um de descanso).
A premissa da produção — essa radical divisão entre “eu profissional” e “eu pessoal” — é uma metáfora para a alienação causada por sistemas que tratam a classe trabalhadora como uma engrenagem substituível.
No mundo real, 75% dos brasileiros admitem que sua identidade está diretamente ligada ao emprego, segundo pesquisa do Indeed (2024). Quando o trabalho se torna a única referência de valor, a exaustão é inevitável: 30% dos brasileiros relatam sintomas de burnout, de acordo com a Associação Nacional de Medicina do Trabalho (Anamt).
O fenômeno ruptura: uma distopia corporativa
“Ruptura” é dirigida por Ben Stiller e usa a ficção científica para também criticar práticas corporativas tóxicas. Na Lumon Industries, os funcionários são vigiados, controlados por manuais absurdos e recompensados com benefícios superficiais, como “festas do waffle” — uma sátira às táticas reais de empresas que substituem salários justos por brindes. A desconexão entre tarefas e propósito (os personagens sequer entendem o objetivo de seu trabalho) ecoa a alienação de milhões que cumprem jornadas sem sentido.
viciado em ruptura série do milênio pic.twitter.com/OZ7ydnf3Ps
— jo pantalovich (@jo_syfer) March 14, 2025
A dualidade do protagonista Mark — que usa a “ruptura” para fugir do luto pela esposa — ilustra ainda como o trabalho pode se tornar uma fuga de problemas pessoais, agravando a dissociação emocional. No Brasil, 62% das pessoas relatam níveis de estresse capazes de impactar a vida diária, segundo o relatório World Mental Health Day (2024).
Modelo 6×1: o preço da produtividade sem limites
Enquanto “Ruptura” leva ao extremo a separação entre vida e trabalho, o modelo 6×1 simboliza a persistência de estruturas arcaicas. A jornada, comum em setores como varejo e segurança, está associada a altas taxas de esgotamento.
Um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) destaca que a dificuldade em estabelecer limites entre vida pessoal e profissional está associada a níveis elevados de estresse crônico, o qual aumenta a produção de cortisol e contribui para problemas como déficits de memória e redução do bem-estar.
Estudos indicam também que líderes empresariais expostos a altas demandas profissionais apresentam alterações estruturais no hipocampo (região cerebral ligada à memória) e maior risco de doenças cardiovasculares devido à liberação prolongada de cortisol. Além disso, pesquisas globais mostram que 40% dos trabalhadores relatam estresse relacionado ao trabalho, com impactos diretos na saúde física e mental.
Apesar de a CLT prever a jornada de 44 horas semanais, o modelo 6×1 muitas vezes extrapola esse limite, especialmente em regimes informais. A pressão por produtividade, somada à falta de descanso, cria um círculo vicioso: funcionários operam no “piloto automático”, assim como os “Innies” da Lumon, que não conhecem o mundo exterior.
Respostas à crise: flexibilidade, freelancers e a semana de 4 dias
Diante do colapso dos modelos tradicionais, alternativas ganham espaço. A semana de quatro dias, testada em países como Islândia e Japão, mostrou aumento de produtividade e bem-estar em 71,5% dos casos, segundo a Day Week Brazil (2024). No Brasil, empresas como a Natura adotaram o modelo piloto, mas a adesão ainda é limitada por resistência cultural e estrutural.
O mercado freelancer também cresce: em 2025, 35% da força de trabalho global atuará de forma autônoma, segundo a McKinsey. A empresa destacou que 92% das empresas globais planejam aumentar investimentos em IA, o que pode impulsionar modelos flexíveis. No entanto, a falta de direitos trabalhistas e a instabilidade financeira mantêm muitos profissionais presos a modelos híbridos — nem totalmente livres, nem totalmente protegidos.
O futuro do trabalho: entre utopia e resistência
Em meio a esse panorama, a série “Ruptura” questiona não apenas a jornada extenuante, mas a própria noção de propósito no trabalho. Se na trama os funcionários são motivados por slogans vazios (“Para um futuro focado”), na vida real, 86% dos millennials consideram fundamental trabalhar em um ambiente que proporcione um senso de propósito, segundo dados da Simmmem (2024).
A transformação, porém, é desigual. Enquanto startups adotam home office e horários flexíveis, setores tradicionais resistem. A “grande renúncia” e o quiet quitting (demissão silenciosa) são sintomas de uma geração que recusa a romantização do sacrifício laboral.
Em maio de 2025, entra em vigor no Brasil a atualização da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), tornando obrigatória a avaliação dos riscos psicossociais no ambiente de trabalho como parte da gestão de Segurança e Saúde no Trabalho (SST). A mudança é promovida pelo Ministério do Trabalho e Emprego e reconhece oficialmente fatores como estresse, assédio e sobrecarga mental como riscos que devem ser identificados, prevenidos e monitorados pelas empresas. O passo é importante na promoção da saúde mental dos trabalhadores, contribuindo para ambientes mais saudáveis, redução de afastamentos por doenças e aumento da produtividade nas organizações. Ainda assim, ainda são necessárias mudanças estruturais.
Rompendo com a Lumon dentro de nós
Assim como os protagonistas de “Ruptura”, Mark e Helly, buscam desvendar os segredos da Lumon, a sociedade enfrenta o desafio de repensar estruturas que definem o trabalho como um fim em si mesmo.
A série não oferece respostas, mas provoca: qual o custo de priorizarmos produtividade sobre humanidade? Enquanto o mundo debate redução de jornada e direitos digitais, a série lembra que, sem equilíbrio, seremos todos “Innies” — aprisionados em um elevador que nunca para.