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ToggleNestas eleições de 20 de agosto na Guatemala, Edgar Gutiérrez, analista de temas de segurança e estratégia, ex-chanceler de seu país, admite em entrevista a frase “sim pesa e muito”. Bernardo Arévalo, candidato que está em primeiro lugar nas pesquisas, é filho do ex-presidente Juan José Arévalo. “Mas foi algo muito maior que isso. A chamada ‘primavera democrática’ que iniciou com seu governo e terminou com o golpe de Estado contra Jacobo Arbenz (1944-1954) foi um período de grandes reformas que as ditaduras posteriores nunca conseguiram apagar da memória das pessoas”.
É, reconhece, um caso como o de Lázaro Cárdenas Solórzano. No qual, além disso, a figura do filho, Cuauhtémoc, foi sólida e convincente para a cidadania.
Na Guatemala “a interpretação da história foi ganha pela esquerda – diz. Nunca puderam reverter a autonomia universitária, privatizar o seguro social nem tirar da agenda governamental o “reparto de terras”, dos legados mais importantes da década democrática.
O singular desta conjuntura guatemalteca é que ninguém viu este cenário no qual o candidato social democrata que leva como bandeira romper o pacto de corrupção entre os poderes empresarial, judicial, de governo e militares está na reta final para a presidência com todas as pesquisas a favor. “Nem o próprio Bernardo viu isto”, diz rindo.
Nesta trama unirão seus votos os partidos de esquerda URNG (a extinta guerrilha) e Winik, maia, fundado por Rigoberta Menchú. Está por definir-se o MLP de Thelma Cabrera.
Uma pesquisa publicada pelo CID-Gallup não só dá uma vantagem de 15% ao Movimento Semilla (57% das preferências, acima dos 42% da Unión por la Esperança, de Sandra Torres) mas demonstra que nas últimas duas semanas houve um rápido movimento na intenção do voto (Arévalo subiu três pontos; Torres baixou outros três) e esta tendência continua aumentando sobretudo entre os jovens e um significativo câmbio na Guatemala rural, onde Torres costumava dominar, e agora o Movimento Semilla tem 48% e UNE, 34.
Foto: Reprodução/Facebook
Gutiérrez: Triunfo do Movimento Semilla é uma oportunidade de deter a regressão democrática na América Central
Edgar Gutiérrez iniciou sua carreira como repórter para a região centro-americana em boletins especializados. Depois trabalhou com a antropóloga Myrna Mack em Avancso, um centro de pesquisas sociais. À raiz do assassinato de sua colega, formou parte da equipe que integrada pelo arcebispo Juan José Gerardi, na Oficina de Diretos Humanos do Arcebispado, que redigiu o informe “Guatemala Nunca Mais” sobre os 37 anos de guerra no país.
Foi secretário de Análise Estratégica e depois chanceler na presidência de de Alfonso Portillo (2000-2004), onde propôs um desenho prévio do que foi depois o Comitê contra a Impunidade (CICIG). Foi colunista durante 27 anos no El Periódico, que fechou no ano passado quando seu diretor José Zamora foi encarcerado por uma montagem política do governo.
Quando monsenhor Gerardi foi assassinado em 1998, vários jovens, Gutierrez entre eles, desconfiaram das investigações oficiais – que queriam fechar o caso como um “crime passional” – e impulsaram uma averiguação independente que concluiu com o julgamento e prisão dos militares perpetradores. Tiveram que sair do país pelo assédio judicial da Promotoria Geral presidida por Consuelo Porras.
A sabedoria popular
No primeiro turno, com a notícia do salto de Arévalo desde o muito esquecido 3%, passando a segundo turno, Gutiérrez se perguntou: “O que aconteceu aqui?” Buscando respostas, chamei meus amigos da Prensa Comunitaria, que fizeram uma base de dados com o monitoramento de redes sociais – tik tok, Instagram, red X, tudo isso – hora por hora. Antes de ir às urnas, as pessoas perguntavam: “Quem é esse Bernardo? Como é esse partido?”
“As redes sociais tomaram o lugar desse hábito de socializar as decisões políticas na vendinha, na cancha, no ponto de ônibus, onde se perguntavam uns aos outros: ‘Olha, rapaz, como está a coisa?’ A maioria tomou a decisão de votar por ele nas últimas 72 horas. A leitura é: foi a cidadania que buscou Semilla e Arévalo, não o contrário. Sabedoria popular pura”.
A Gutiérrez, esta passagem da história eleitoral guatemalteca lhe recorda a popular lenda nicaraguense do Güegüense, um personagem bandido, pícaro e malicioso que consegue dar a volta no dono das terras de vice-reinado.
– O que é que está ilusionando o eleitorado do Movimento Semilla?
– A possibilidade de desalojar do poder o pacto de corruptos. Há anos o buscam e não haviam encontrado o modo. Com as mobilizações de 2015, se rompeu uma imobilidade cidadã que se impôs há 30 anos, com o regresso da democracia eleitoral, mas com governantes submetidos aos poderes de antes.
“Nessas eleições nunca houve tanto dinheiro para a compra de votos, tudo manejado desde que se conhece a Casa Verde, onde despacha algo que o presidente Alejandro Giammattei chamou de Centro de Governo, que é uma figura que não está em nenhuma estrutura legal. Aí despacha um jovem muito próximo a ele, Miguel Martínez, que tem delegados em cada ministério. Aí se negociam as porcentagens de todas as concessões e licitações. Daí saíram até mil quetzales (R$ 623,00) por pessoa para comprar votos. E nem assim”.
– Desafios pós-eleitorais?
– O mais difícil vai ser a governabilidade, encontrar pessoal de confiança suficiente para formar governo.
– De onde sai o Movimento Semilla?
– Seus pais intelectuais foram o grande sociólogo Edelberto Torres Rivas, e Juan Alberto Fuentes. Edelberto convocou em 2014 um grupo de personalidades da política, da esquerda, da academia, e disse: 'Temos que fazer política, há que gerar uma opção reformista para a Guatemala. Não podemos seguir à margem'. E assim se formou o partido.
Tirando a casta
As eleições de 20 de agosto na Guatemala adquiriram um perfil internacional como há pelo menos três décadas não se via na região centro-americana, segundo a observação de Gutiérrez.
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“Isto se deve, em parte, a uma razão geopolítica: o triunfo do Movimento Semilla é uma oportunidade de deter a regressão democrática na América Central, em El Salvador, com Nayib Bukele. e Nicarágua, com Daniel Ortega. Honduras tampouco se vê bem.
“E por outro lado – agrega –, pelo efeito que poderia ter a rutura do pacto de corrupção em um país como a Guatemala, que não tem um caudilho populista de direita, como Daniel Ortega ou Nayib Bukele, mas sim uma ditadura corporativa que parece clamar: 'Justiça nunca mais!'.
“Foi muito sintomático como se tratou o tema na sessão do Conselho Permanente da OEA. Com os temas de Nicarágua e Peru, houve vozes diversas. No caso do respeito à democracia na Guatemala, não. Foi unânime a exigência”.
Para terminar, Edgar recordou uma tarde, tomando café em Antígua com Edelberto Torres, que lhe disse meio em brincadeira, meio em tom profético: “Bernardo um dia será presidente”.
– O que respondeu a ele?
– Não acreditei. Jamais pensei que seria um bom candidato. Agora vejo que sim. Se transformou. Se conecta com as pessoas. Está tirando a casta.
Blanche Petrich | La Jornada, especial para Diálogos do Sul – Direitos reservados.
Tradução: Beatriz Cannabrava.
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