No dia 19 de julho, o Diário Oficial da União (DOU) anunciou que a Fundação Nacional do Índio (Funai) será comandada pelo delegado da Polícia Federal Marcelo Augusto Xavier, que ficou conhecido por seu engajamento pró-ruralistas na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Funai, em 2016. A nomeação de Xavier é mais um capítulo no processo de submissão da política indigenista do governo brasileiro aos interesses do setor ruralista. Desde que assumiu, Bolsonaro já tentou transferir a Funai para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanas e passar a competência sobre a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). As duas tentativas foram barradas no Congresso Nacional, mas o congelamento do processo de demarcação de terras e de outras políticas voltadas para os povos indígenas é uma realidade. Mais do que isso, o governo cogita liberar atividades econômicas como a mineração em terras indígenas.
“Não aceitaremos que esse governo faça reintegração de posse contra nenhum índio brasileiro. Se ele fizer qualquer reintegração de posse em terra indígena, nós vamos confrontar esse governo com as nossas organizações, com nosso corpo e com nossa alma”, diz Luiz Salvador. mais conhecido como “Saci”, cacique da Terra Indígena Kanhgág Ag Goj (Rio dos Índios, em Vicente Dutra), e coordenador do Movimento Indígena no estado do Rio Grande do Sul na luta pela demarcação das Terras Indígenas.
Luís Salvador esteve em Porto Alegre, sexta-feira (19), quando fez um relato sobre a situação dos povos indígenas no Rio Grande do Sul, durante um debate, no Memorial do RS, organizado pelo Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NIT/PPGAS – UFRGS) e o Museu Antropológico do Rio Grande do Sul. O evento faz parte do I Ciclo de Encontros do Observatório Social das Populações Indígenas da Região Sul.
Luiza Castro/Sul21
“Achamos que está se criando mais um ditador no Estado brasileiro”
Segundo o professor Pablo Quintero, coordenador do núcleo, a ideia do ciclo é fazer um encontro por mês, sempre ao final de cada mês, com lideranças dos quatro principais povos indígenas da região Sul – kaingang, guarani, xokleng e xetá – ouvir o relato deles sobre a situação de cada povo e produzir materiais a partir desses relatos. “A ideia é sistematizar esse material para termos um panorama da situação de cada comunidade, das suas lutas e reivindicações. As palestras serão disponibilizadas em vídeo no Youtube e, ao final, queremos fazer uma publicação também, analisando as situações relatadas”, explica Quintero.
Em entrevista ao Sul21, o cacique Saci falou sobre os problemas enfrentados pelos povos indígenas no Estado em um contexto de crescente violação de direitos, pelo governo Bolsonaro, e das ameaças que pairam no horizonte, no curto, médio e longo prazo.
Sul21: Qual a situação das comunidades indígenas no Rio Grande do Sul, mais de sete meses após o início do governo de Jair Bolsonaro?
Cacique Saci: Os políticos precisam respeitar a dignidade de cada família e de cada povo indígena. Essa nossa luta vem de longe. Nós lutamos muito contra a ditadura militar, por exemplo, porque muitas famílias, tanto indígenas quanto não indígenas, estavam perdendo suas línguas e suas culturas. Desde esse período, nós criamos um sistema de organizações indígenas no Brasil e conseguimos, em 1988, aprovar duas leis que são importantes para toda a sociedade brasileira, garantindo direitos no processo de demarcação de terras, na saúde e na educação diferenciada que nós temos. Somos o segundo maior povo no sul do Brasil que fala sua língua e que tem sua cultura. Mais uma vez agora, com esse novo governo, se cria uma mentira para a sociedade que ameaça engolir a Constituição brasileira. Esse novo governo começa a aniquilar os direitos da cidadania, não só para os indígenas, mas para toda a sociedade. Achamos que está se criando mais um ditador no Estado brasileiro.
Quais são alguns dos problemas concretos que vocês estão enfrentando em função dessa nova orientação política no país?
Em primeiro lugar, o governo está querendo impor ao Estado brasileiro que não demarque mais as terras indígenas. Eles também querem que a gente pare de falar a nossa língua e fale a língua portuguesa. Na minha terra, hoje, 100 por cento fala a nossa língua, temos nossa cultura, nossas pinturas. Não é só com os indígenas. O Estado também está mexendo com o povo negro, com os camponeses, com os direitos dos pequenos agricultores. Ele coloca povo contra povo. Aqui no nosso Estado, tivemos o exemplo daquela vez que o Luiz Carlos Heinze e o Alceu Moreira disseram, em Vicente Dutra, que nunca tinham visto índio naquela região. Eles começaram a mentir para a sociedade, como se nunca tivesse existido índio no Brasil. Isso fere a vida social dos indígenas e também dos agricultores atingidos pela demarcação. Nós não queremos violência, mas sim que a Justiça brasileira defina a vida social do pequeno agricultor, que são aniquilados pelo agronegócio e pelos latifundiários. As terras indígenas também devem ser garantidas. Os dois lados devem ter seus direitos garantidos e isso está muito precário com esse governo que está aí.
Como está essa questão da demarcação de terras na região de Vicente Dutra?
Hoje, somos 48 famílias, com 218 indígenas. Temos um postinho de saúde e uma escola adequada de educação indígena. Temos professores indígenas que são falantes da língua. Se a Justiça está dizendo que os agricultores não tem direito àquelas terras isso não é problema do índio. O problema é de responsabilidade da Justiça brasileira. Se a Justiça decidir que os povos indígenas têm direito à demarcação de suas terras em Vicente Dutra, isso não é mais problema do índio. O Ministério da Justiça reconheceu aquela terra como terra indígena e mandou demarcar aquela área. Então, na nossa visão, não tem mais volta e vamos esperar pela decisão final da Justiça.
Como está a relação de vocês com os pequenos agricultores dessa região, que é bastante marcada por conflitos de terra?
Os pequenos agricultores estão cientes da situação, mas tem alguns políticos que ficam mentindo pra eles, dizendo que lá não é terra de índio, que nunca houve índio lá. Essa é a maior mentira que fica sendo dita naquela região. Nós nos damos bem com os pequenos agricultores, não temos nada contra eles. Mas não somos nós que vamos declarar a retirada deles. É a Justiça que tem que adequar isso, não os povos indígenas. A Justiça já declarou a terra onde vivemos como terra indígena. Não tem mais como eles querer retirar esse direito. O que eles precisam declarar agora é o direito do pequeno agricultor, dizendo onde ele vai viver e morar.
Quantos kaingang ainda estão aguardando demarcação de terra aqui no Estado?
Temos 28 terras pequenas que são alvo de demarcação. Nosso povo tem esse direito que foi garantido em 88. Mas esse governo que está aí agora, antes de se eleger já dizia que nenhum milímetro de terra seria demarcado. Ele vai querer cumprir isso agora. Mas nós travamos uma luta desde 1500 e continuaremos travando. No ano passado, fizemos uma caminhada em Brasília com mais de três mil indígenas. Entendemos que é só na base de pressão que vamos conseguir os nossos direitos, defender os nossos territórios e defender também os pequenos agricultores que precisam sobreviver.
Além do governo federal, as comunidades indígenas também tem que lidar com o governo estadual e com governos municipais. Em muitos casos, aqui no Rio Grande do Sul há um alinhamento quase que completo de visão que concorda com a política do atual governo federal. Como está sendo a experiência de lidar com essa realidade?
Nunca foi fácil essa relação, seja quanto à negação de direitos, de demarcação ou da saúde. Esse governo que está aí piorou isso ainda mais. O governo Lula deu um pouco de direitos, mas foi uma luta de foice, que teve trancamento das BR e uma mobilização mais agressiva das populações que queriam sobreviver. Aí se conseguiu alguma credibilidade. Mas nunca foi fácil, nem na vida do pequeno agricultor para criar uma espécie de credibilidade no banco. Agora ficou pior, quando o governo declara que não vai direito nenhum pra sociedade.
Os kaingang e os guarani são os dois principais povos indígenas aqui no Sul do Brasil. Os dois povos estão conversando entre si para enfrentar essa realidade mais adversa ainda que está se conformando no horizonte?
Sim. Estamos bem articulados. Inclusive esse ano fizemos uma grande assembleia dos povos indígenas, em Iraí. Nossa posição é ou morrer ou conseguir os direitos dos povos indígenas. Estamos preparados pra isso. Estamos nesta luta há 519 anos e não conseguiram matar todos nós. É uma luta contínua e de toda a sociedade brasileira.
Quais são, na sua avaliação, as ameaças mais imediatas em relação às lutas e reivindicações dos povos indígenas?
Em primeiro lugar, o governo brasileiro quer implantar um mesmo pacote de retirada de direitos em todo o País. Ele quer terminar com as nossas línguas dentro das terras indígenas. Eles já têm um projeto pra isso, mas nós temos uma declaração da ONU que defende o direito de permanência da língua dos povos indígenas. Eles ainda não têm como mexer nisso.
Além disso, eles também querem que fiquemos subordinados aos municípios. Querem que a escola, por exemplo, seja municipal. Querem que a saúde também fique a cargo do município. Nem um município até hoje, na história do povo indígena, deu adequação de qualidade de vida tanto na saúde como na educação. Nunca fizeram nada pelo índio. Por isso a gente lutou muito para criar especialização dentro das terras indígenas. Nós não temos acesso à saúde nem à educação pelos municípios. Não teríamos nada se a gente não tivesse conquistado o que conquistou de 88 pra cá. É uma briga contínua.
Quais são as medidas que os povos indígenas estão pensando adotar para enfrentar essa ofensiva contra seus direitos?
Em primeiro lugar, não aceitaremos que esse governo faça reintegração de posse contra nenhum índio brasileiro. Se ele fizer qualquer reintegração de posse em terra indígena, nós vamos confrontar esse governo com as nossas organizações, com nosso corpo e com nossa alma. Nós sonhamos alto, Sonhamos com um pedaço de terra onde a gente possa sobreviver, onde a nossa cultura possa sobreviver. Vamos lutar contra o genocídio dos povos indígenas.
Os índios, sejam guarani ou kaingang, já ocupam hoje territórios tradicionais deles. No momento em que o governo mexer com um guarani ou tiver a morte de um guarani pelo governo brasileiro, vamos somar forças com os outros povos indígenas e vamos confrontar o governo brasileiro. Vamos confrontar o governo brasileiro e não a sociedade como um todo. Isso precisa ficar claro para a sociedade. Por isso temos as nossas organizações. Faço parte dessa coordenação e vamos somar forças para poder solucionar a vida social do índio.
Como vê a opinião média da sociedade em relação às lutas e reivindicações territoriais, sociais e culturais dos povos indígenas?
Sobre isso eu acho importante falar na questão ambiental. A demarcação da terra indígena também tem a ver com isso, que é um interesse de toda a sociedade. Basta ver o risco de destruição da Amazônia hoje. As matas estão sendo destruídas e envenenadas com agrotóxicos. A gente é contra os agrotóxicos. Hoje, no momento em que as pessoas tomam a água que está saindo da torneira, estão tomando veneno junto. A minha sogra faleceu há alguns dias com 99 anos. Nós não vamos chegar a 99 anos. O risco não é só para o índio, mas para toda a sociedade brasileira.
Estamos defendendo a sociedade como um todo e a humanidade. A preservação da Mata Atlântica tem uma interferência direta na vida social do povo brasileiro. Por isso, as demarcações são importantes para toda a sociedade. Não queremos mais todo o Brasil, não queremos as cidades. Queremos uma terra que facilite a vida dos povos indígenas onde eles já estão. Nós não queremos Porto Alegre, queremos nossos direitos. Queremos viver uma vida com nossos pássaros, com nossos animais. A gente se criou dessa forma e isso precisa ser respeitado. Nós somos contra o envenenamento da terra porque nela tem vida, tem vida do índio, do pequeno agricultor, da sociedade, da cidadania do Estado brasileiro. É preciso defender essa vida social.
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