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“Se o projeto de López Obrador fracassar, estaremos na escuridão”, avalia Boaventura

Boaventura de Sousa Santos vê no México a possibilidade de uma reviravolta na história que tem marcado os governos de esquerda na América Latina
Miguel Ángel Velázquez
La Jornada
Cidade do México

Tradução:

Como bandeirolas de fogo, Boaventura de Sousa Santos, doutor em sociologia pela Universidade de Yale, coloca no topo da política regional a “enorme” responsabilidade do governo de Andrés Manuel López Obrador com a América Latina porque adverte: “Se o México cair, se o projeto de López Obrador fracassar, realmente estaremos na escuridão total sem projeto político e, o que nos sobra no continente”?

O português De Sousa Santos se nega a ver morrer – “democraticamente”– a democracia, e vê no México a possibilidade de uma reviravolta na história que tem marcado os governos de esquerda na América Latina.

Boaventura de Sousa Santos vê no México a possibilidade de uma reviravolta na história que tem marcado os governos de esquerda na América Latina

Brasil 247
O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos

Confira a entrevista:

La Jornada: Mas, as esquerdas devem deixar que as esquerdas governem? Há dados que nos falam das esquerdas inimigas dos governos de esquerda. 

Boaventura de Sousa Santos: Penso que realmente as esquerdas deveriam ser cuidadosas neste momento, e deveriam, pacificamente, organizar a rua, as organizações sociais, lutar nos tribunais como fazem as organizações indígenas, usar todos os meios institucionais possíveis para pressionar o governo desde abaixo, mas têm tido uma posição totalmente brutal, têm entrado em certa lógica de esquerda radical, e os atacam como se fossem de direita, mas eu julgo que é um erro total.

Como explica que aconteçam governos como o de López Obrador?

Andrés Manuel López Obrador tem um capital simbólico importante. Primeiro, chega à Presidência depois de lhe haverem roubado uma eleição, e finalmente as pessoas conseguiram eleger quem queriam. Segundo, porque é um senhor que não é corrupto, pelo contrário, e é um gênio da política simbólica; não estou falando da política econômica, mas da política simbólica, por isso firmou ante um tabelião que não se reelegeria; isso é um dado genial. Olhe o que fez Hugo Chavez ao tentar permanecer indefinidamente.

López Obrador receberá pressões brutais da direita, e por isso deve tomar experiência de governos como o do Brasil, da Argentina ou do Equador que cederam a essas pressões e aceitaram a construção de megaprojetos, entre outras condições do neoliberalismo.

O que aconteceu com a democracia? Em 1998 o senhor escreveu. Reinventar a democracia, e em 2004, Democratizar a democracia, mas a democracia se converte, quase em todos os lados em cúmplice da corrupção, em distorção das esperanças de muita gente.

Sim, aconteceu o pior, porque não somente não se reinventou, mas está morrendo democraticamente porque em seu nome estão elegendo neofascistas antidemocratas, como no Brasil, como Trump nos Estados Unidos, como o que acontece na Itália, Hungria e Polônia; são gente de direita, de extrema direita que realmente não entende, que não gosta da democracia, mas que são eleitos democraticamente.

Tem razão. Chama a atenção que realmente a democracia liberal não tem condições para resistir à dureza do capitalismo. Depois da queda do muro de Berlim, o capitalismo deixa de ter inimigos, assim como já se escreveu; o capitalismo tem que ter medo de si mesmo, não de seus inimigos, porque quando não os tem se torna selvagem, é suicida, suas ganâncias o tornam autodestrutivo. Pretendeu-se que fosse a democracia que regulasse o capitalismo, mas é o capitalismo o que vai regular a democracia. Ou seja, existe a democracia enquanto lhe é funcional, enquanto é boa para o capitalismo, se não o é, a democracia não funciona, e se funciona é como a forma mais legítima de reproduzi-lo. 

O único capitalismo exportável é o dos Estados Unidos, de matriz neoliberal, que começa a ser reproduzido pelo Fundo Monetário Internacional, pelo Banco Mundial, pelas agências multilaterais. Merrill Lynch (a qualificadora) publicou um informe há muito tempo dizendo que as duas áreas mais rentáveis para o capitalismo no futuro eram a educação universitária e a saúde, e nesse momento começa o movimento de privatização em todo o mundo.

E a honestidade é suficiente para reinventar a democracia?

Não basta a honestidade, tem que haver um projeto político. No meu entender a honestidade é uma virtude, e não pode ser a única. Ser honesto, sim, mas também ser solidário. Penso na honestidade politizada. Pode-se ser honesto, mas muito insensível com as injustiças que o capitalismo, o socialismo, o patriarcado, a homofobia estão produzindo em nossas sociedades. A democracia, para salvar-se, tem que ir à rua nas próximas décadas. A democracia atual é boa, mas é pouca e como pouca não resiste. 

A força dos indígenas

De Sousa Santos faz uma pausa, toma um gole de café, adverte que é preciso construir um pacto político novo, um novo contrato social que deve incluir o que ensina a natureza e sustenta: “temos a obrigação de defendê-la (a natureza). E depois, em sua reflexão, explica que hoje no México se vive um momento de transição, e “não podemos exigir a ninguém, a um governante, que mude totalmente tudo de um dia para outro. Tem que passar de um modelo monocultural de proteger somente a economia capitalista que é o que faz o México, a proteger a economia cooperativa, a economia camponesa, a economia familiar, a indígena. 70 por cento de nossos produtos alimentares vêm deles, mas não são protegidos efetivamente”.

De Sousa fala rápido, mas certeiro, e nos recorda com certa nostalgia o que aconteceu com os governos de esquerda no Brasil, no Equador e na Argentina, e recomenda a AMLO, como ele o chama, que se mire nesses exemplos e que não cometa os mesmos erros.

Levanta vozes de alarme, diz que já está provado que é tanta a vingança da direita ao voltar ao poder que devasta os países, e regressa sobre os nomes das entidades onde assegura, se entronizou a fascismo, por isso recomenda às esquerdas que sejam cuidadosas em suas críticas, porque se convertem em inimigas do projeto que ansiavam, ou se acomodam e esquecem da defesa dos governos que pretendiam. 

As ameaças regionais

Anuncia que assistimos a uma mudança no império. Primeiro, assegura, trata-se de um grande investimento no sistema judicial latino-americano, sobretudo na Colômbia e no Brasil para criar um sistema inquisitorial e sustenta que já não se necessitam as forças militares para manter a hegemonia do império; agora se trata de um conjunto de forças financeiras muito bem organizadas, um projeto que se iniciou no ano 2000. Trata-se de fazer que o Poder Judicial seja muito conservador, cúmplice da iniciativa privada, de treinar e formar os magistrados em agências de inteligência como a CIA. Sem que ninguém perceba, aparentemente, do que está acontecendo. 

E um segundo elemento que vai ser muito importante: são as igrejas evangélicas, pentecostais, sobretudo com uma influência maiúscula, com o investimento público dos estadunidenses e financiamento da sociedade civil, ou seja, o que dizíamos antes que era a CIA, os militares, agora é outra coisa, agências com nomes bonitos para promover a democracia, como as igrejas, e sem esquecer dos meios que estão dentro de uma estratégia muito bem identificada, em um plano que se chama “Atlas” para intervir, para conseguir mudanças de regime sem necessidade de ditaduras militares porque, após a queda do muro de Berlim as ditaduras não tinham legitimidade. O que se requeria era empobrecer, domesticar ainda mais. 

Explica que se voltar a direita, o fará com a ideia de vingança total, com ressentimento, porque as elites aqui não só são capitalistas, mas também colonialistas. Vão tentar destruir e produzir um efeito que se chama “gás paralisante”; ou seja, os movimentos sociais ficam paralisados. São muitas as formas da vingança da direita no caso de voltar ao poder.

Ao doutor pela Universidade de Yale, que nosso país reconheceu com o Prêmio México de Ciência e Tecnologia em 2010, lhe perguntamos: que futuro há para a democracia? E reflexiona:

“Obviamente tem que haver um futuro, mas não essa democracia, pensemos em uma democracia reinventada, radicalizada, e realmente com muitas coisas que temos perdido. 

“Há muitas formas de libertação, e vocês aqui têm uma riqueza muito interessante que desperdiçaram durante muito tempo: os povos indígenas”. 

De Sousa Santos partiu do México para seguir nesse trabalho que iniciou há muito tempo, e do qual não desiste: reinventar a democracia antes que ela morra, democraticamente.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Miguel Ángel Velázquez

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