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“Intolerância religiosa é perversa, é o povo preto atacando a si mesmo”, diz socióloga

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

A população das igrejas evangélicas (e grande parte dos católicos, também) é de pessoas pretas, pobres e periféricas. Assim, o que vemos é muito perverso, pois se trata do povo preto atacando o próprio povo preto. Quer controle social maior que esse?”. O questionamento é feito pela socióloga Simony dos Anjos em entrevista.

Pressenza Brasil

A intolerância religiosa no Brasil se dá de diferentes formas. Das mais sutis, com expressões como “Chuta que é macumba”, até o caso de Kailane Campos, de 11 anos, que levou uma pedrada ao sair de um terreiro na cidade do Rio de Janeiro em 2015.

Segundo o depoimento de sua avó, um grupo de homens as agrediu verbalmente e um dos integrantes atirou uma pedra que atingiu a menina. Além deste caso, temos diversos relatos de terreiros atacados, de símbolos religiosos desrespeitados e de oferendas religiosas que são atacadas. O simples ato de usar as vestimentas características das religiões afro-brasileiras já desperta ódio.

Muito do crescente ódio para tais segmentos da população é atribuído aos grupos neopentecostais. Porém, existem protestantes que se posicionam contra a intolerância. Uma matéria da BBC Brasil trouxe a história de Lusmarina Campos, pastora Anglicana que organizou uma campanha de arrecadação de fundos para reconstruir o terreiro Conceição d’Lissá, situado na cidade de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro.

Para entender mais sobre esta temática, a Pressenza Brasil entrevista Simony dos Anjos, que é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mestranda em Educação na Universidade de São Paulo (USP) e tem estudado a relação entre antropologia, educação e a diversidade. Ela é autora do Blog “Sim, Genuflexos” e escreve a coluna (fé)ministas do portal de notícias Justificando.

Pressenza Brasil:  Recentemente, o Terreiro Conceição d’Lissá, que fica em Duque de Caxias (RJ), foi incendiado. Para ajudar na reconstrução, um grupo arrecadou R$ 12 mil para obras. A iniciativa foi organizada pela pastora Lusmarina Campos, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Qual é a importância de atos como este para a diminuição da intolerância religiosa no Brasil?

Simony dos Anjos: Esse tipo de atitude não deveria ser exceção, mas, infelizmente, além de rara, são muito mais comuns, vindo dos cristãos, ataques a templos religiosos e terreiros de religiões de matrizes africanas do que qualquer tipo de ajuda ou empatia. Para mim, atitudes como a da Pastora Lusmarina são essenciais por dois motivos: primeiramente, ela é uma líder religiosa que influencia os fiéis de sua comunidade. Se os líderes religiosos assumissem um discurso de tolerância e respeito ao próximo, a intolerância religiosa não existiria, pois a intolerância se aprende dentro das igrejas cristãs, ou seja, quem está ensinando os fiéis, senão a liderança das Igrejas?

O segundo motivo é pelo fato de ser um reparo. Explico, durante séculos, cristãos perseguiram, destruíram e quiseram apagar as religiões de matrizes africanas. Assim, atitudes, como a da Rev. Campos, apontam para a retratação de uma dívida histórica que nós, cristãos, temos com a população negra, em geral.

Lembrando que cristãos apoiaram a escravidão, tiveram escravos e forçaram os escravos a construírem seus templos religiosos. O racismo estrutural no qual vivemos foi, em grande parte, ratificado pelo cristianismo, infelizmente.

Perseguir as religiões de matrizes africanas é um modo de tentar apagar a existência (e resistência) de um povo que já teve tanta coisa usurpada em 300 anos de escravidão. Contudo, não conseguiram e, se depender dos cristão progressistas, não conseguirão.

Em sua visão, qual é o motivo de tanto ódio para com as religiões de matriz africana?

A religião cristã é maniqueísta, ou seja, acredita que há um sumo bem e o mal. No momento da escravidão, foi muito oportuno para os cristãos enxergarem o mal nas religiões de matrizes africanas, pois, assim, tinham legitimidade para atacar essa religião e, juntamente com ela, o povo negro.

Se olharmos com olhar sociológico para essa questão, vemos que a religião é um fator de organização e mobilização social, assim, impedir que os negros cultuassem seus deuses, da mesma forma que proibir que falassem suas línguas maternas, era uma forma de impedir que eles se organizassem. Com essa herança escravocrata que temos, a imagem passada dessas religiões é justamente a de mal, de demoníacas, de que precisam ser combatidas.

O racismo estrutural e a intolerância religiosa, no Brasil, estão intrinsecamente ligados.

Quais são as iniciativas que têm lutado pela diminuição da intolerância religiosa e buscado diálogos entre as religiões?

Basicamente, todas as organizações que têm orientação ecumênica e tendências mais progressistas. Elas são raras e dificilmente têm apoio financeiro para continuar. Contudo, esse tipo de manifestação têm crescido, posso citar, por exemplo, o CEBi (Centro de Estudo Bíblicos), que tem caráter ecumênico e tradição na leitura popular da Bíblia, ou seja, uma leitura para o povo, pelo povo e que liberte o povo.

Há algo que você gostaria de acrescentar?

Temos que ter em mente que a população das igrejas evangélicas (e grande parte dos católicos, também) é de pessoas pretas, pobres e periféricas. As igrejas estão na maioria das periferias e comunidades do Brasil. Assim, o que vemos é muito perverso, pois se trata do povo preto atacando o próprio povo preto. Quer controle social maior que esse?

Ou seja, a desunião entre as pessoas pobres é essencial para a manutenção do status quo da nossa sociedade. Quando houver solidariedade entre as pessoas pobres, independentemente, de orientação sexual, religião, modos de vida, acontecerá a verdadeira revolução. Como diria [a filósofa estadunidense] Angela Davis, quando a mulher negra se move, a sociedade inteira se move. Vocês já repararam qual é a base da igreja evangélica? Mulheres negras. É com elas que temos que falar, por isso a importância de termos líderes religiosos progressistas.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
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