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Sem lockdown e vacinas, Amazonas está condenado à pandemia eterna, diz cientista

Em entrevista, Lucas Ferrante diz que alertou autoridades sobre a segunda onda, porém foi ignorado pela falta de ação e providências para conter a pandemia
Eduardo Nunomura
Amazônia Real
Manaus

Tradução:

O jovem cientista Lucas Ferrante, doutorando do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, tem a coragem de vir a público para dizer que o presidente Jair Bolsonaro comete “crime de responsabilidade” ao conduzir um governo negacionista do novo coronavírus. “Essas falas do presidente já passaram da conta. Ele passa informações conflituosas para a população, que atrapalham na tomada de decisão”, resume. Não faltam pesquisadores insatisfeitos e revoltados contra a negligência do governo federal na condução do combate à pandemia. Ferrante é mais um deles, porém a sua fala deve ser levada em consideração. Ele e seu grupo multidisciplinar de pesquisadores anteciparam, em 7 de agosto, uma segunda onda da pandemia no Amazonas, em artigo publicado na revista científica Nature Medicine

A partir de modelos epidemiológicos, o grupo de pesquisadores já prevê que o estado do Amazonas enfrentará uma terceira onda, em quatro ou cinco meses, e a pandemia se arrastará até 2022 se não forem adotadas medidas urgentes para frear a proliferação do novo coronavírus. Ferrante estudou o primeiro caso de reinfecção em Manaus e uma das descobertas é a de que a imunidade natural não é duradoura em todos os casos. Se somar isso ao negacionismo das autoridades, à presença de novas cepas mais transmissíveis, ao frágil sistema hospitalar no Amazonas, à ausência de um rígido lockdown e a uma incerta campanha de vacinação, “a pandemia em Manaus será eterna, perpétua”, alerta Ferrante. Não é uma entrevista agradável, mas extremamente necessária.

Lucas Ferrante durante palestra no INPA (Foto: FER)

Confira a íntegra:

Amazônia Real – Poderia dar mais detalhes sobre essa questão da perda de imunidade?

Lucas Ferrante – Temos um estudo de caso, já submetido a uma revista com revisão pelos pares, de uma pessoa que não gerou imunidade como se esperava ao novo coronavírus. Ela teve um contato natural com a doença. Temos ainda vários estudos ao redor do mundo que demonstram que essa imunidade natural é extremamente temporária, não sendo maior que cinco meses. De três a cinco meses as pessoas já estão suscetíveis ao vírus.

E o que se sabe sobre essa nova cepa encontrada no Amazonas?

A gente sabe muito pouco e não estamos trabalhando especificamente com esta nova cepa. O que tentaremos, no futuro, é através de cenários de modelagem epidemiológica entender como essas duas variantes vão agravar a pandemia. Para a primeira cepa surgida na China, a população de Manaus já está perdendo a imunidade. Depois temos a segunda cepa, uma variante que surgiu na Europa e já chegou ao Brasil porque os aeroportos estão abertos. É questão de tempo para que essa mutação chegue em Manaus. E temos essa variante que surgiu no Amazonas. Potencialmente, três linhagens distintas rodando no Amazonas que vão agravar a situação dessa segunda onda. 

Uma situação, infelizmente, previsível.

Avisamos dessa segunda onda em um artigo publicado na Nature Medicine, que é uma das maiores revistas científicas do mundo, em 7 de agosto do ano passado. Inclusive dávamos recomendações de que essa segunda onda surgiria por uma negligência e negacionismo dos tomadores de decisão. Frente ao surgimento dessa nova cepa, agora se vê o mesmo negacionismo e a mesma falta de tomada de decisão, se justificando que naturalmente as coisas vão ficar bem. Não vão. Elas tendem a piorar. A falta de ação e providências para conter a pandemia, utilizando esses artifícios deixando de que é melhor deixar a coisa circular, deve ser encarada como um crime contra a saúde pública. Pessoas estão morrendo e atitudes poderiam estar sendo tomadas para mitigar esse dano na população. Esses políticos têm de ser responsabilizados.

No artigo da Nature, quais eram os aspectos utilizados para prever a segunda onda e que ainda hoje se repetem?

Esse negacionismo é o principal ponto. A pandemia em Manaus nunca deu sinal de remissão com um declínio no número de casos, internações e mortes. Em agosto, a pandemia não dava sinais de que ela se extinguiria naturalmente. Quando você utiliza esses dados em modelos epidemiológicos, eles indicam um cenário que até então não estava sendo vislumbrado. Utilizamos ferramentas epidemiológicas por meio de um modelo chamado Seir (Susceptible – exposed – infected – removed), que mede a taxa de infecção e de expostos para medir o aumento de casos. Esses modelos epidemiológicos sempre foram muito claros sobre a iminência de uma segunda onda. Muitas pessoas, e até pesquisadores de outras áreas, tentaram utilizar regressões logísticas, simples, para demonstrar que a pandemia estava terminando. Mas elas não são metodologias adequadas, porque o risco do ressurgimento da doença é real e essas análises não conseguem contemplar esse tipo de fenômeno.

Em entrevista, Lucas Ferrante diz que alertou autoridades sobre a segunda onda, porém foi ignorado pela falta de ação e providências para conter a pandemia

Márcio James/Amazônia Real
Transferência de pacientes com covid-19 em Manaus para São Luiz.

Isso pode ter desestimulado o isolamento social.

Temos que entender que o número de internações aumenta normalmente 14 dias depois das aglomerações e as mortes 21 dias depois, 7 dias após as internações. O que estamos vendo agora em Manaus não é nem reflexo do Natal, das confraternizações de fim de ano. Ainda teremos em Manaus o impacto das aglomerações do Natal e do ano novo. E aí vemos algumas desculpas sendo utilizadas de maneira completamente inconsequente para tentar justificar esse fato. Foi anunciada a necessidade de fechar a cidade diversas vezes. Mas prevaleceu a pauta econômica em vez dessa questão de saúde pública. Tivemos reuniões com o Ministério Público, a FVS (Fundação de Vigilância Sanitária) e a Aleam (Assembleia Legislativa do Amazonas), mostrando pelos nossos modelos epidemiológicos que era iminente uma segunda onda. Mas isso sempre foi negado.

Algo que pode estar se repetindo.

Algumas desculpas que têm sido utilizadas, como a de hoje (sexta-feira, 15), pelo prefeito (David Almeida), que a BR-319, a ausência dela e o isolamento social, seria responsável pelo isolamento da cidade, é uma baboseira. Normalmente, locais interligados por rodovias na Amazônia sofreram aumento populacional, às vezes de até cinco vezes a sua população, e o que vemos é um plano para asfaltamento da BR sem se preocupar com o aumento da demanda do serviço de saúde pública. Se fôssemos ligados ao resto do País, nesse momento, primeiro estaríamos exportando essa variante com maior facilidade. E essas migrações que viriam para Manaus atrapalhariam ainda mais o colapso do sistema de saúde. 

Quais fatores explicam essa segunda onda?

Foram responsáveis a volta às aulas prematuras, como avisamos no artigo da Nature, o negacionismo sobre uma segunda onda e o fato de se tentar imbuir na população uma ideia de imunidade de rebanho, que é completamente falaciosa e falastrona. Tivemos políticos bolsonaristas que fizeram lobby para que as pessoas deixassem o isolamento social com essa justificativa. E agora essas campanhas anti-vacinação, como esse lobby feito pelo próprio presidente da Aleam (Josué Netto), que tentou passar um projeto de lei pela não obrigatoriedade da vacina. São esses fatores políticos que condenaram a Amazônia a uma segunda onda.

Vocês foram o primeiro grupo que detectou um caso de reinfecção em Manaus?

Sim, oficialmente foi um trabalho já submetido, mas ainda não publicado, de reinfecção por perda de imunidade. Não é da nova cepa. Essa pessoa (do estudo de caso) não gera IGG, que é o anticorpo duradouro de resposta (contra um vírus). Na verdade, não é tão duradouro e deve durar de três a cinco meses. Só que essa pessoa em específico não soro converte para os anticorpos de memória como o IGG. Existe um fenótipo recessivo na população, onde parte de Manaus não gera anticorpo e não adquire imunidade em contato com o vírus, independente de qual cepa seja. 

O presidente Jair Bolsonaro tem se apressado em tirar sua responsabilidade sobre essa tragédia humanitária no Amazonas.

O presidente da República e o Ministério da Saúde usam de uma desculpa sem evidência científica para dizer isso. No artigo da revista Nature, já avisamos que com cepa nova ou não, Manaus passaria por uma nova segunda onda. Foi anunciado que seria negligência política. Várias vezes ele falou contra o isolamento social. Ministros dele, inclusive o Osmar Terra, chegaram a fazer campanha anti-isolamento social. Isso tem responsabilidade direta nos atos das pessoas, principalmente em Manaus que tem um grande eleitorado do presidente Jair Bolsonaro. Essas pessoas se expuseram mais. Poderia ter feito n-coisas que não fez e utiliza essa desculpa (da nova cepa) como simplesmente algo ao acaso que surgiu para gerar toda essa situação. Não, essa situação surgiu por causa da negligência do senhor presidente da República Jair Messias Bolsonaro, por conta do governador do estado, Wilson Lima, e de outros tantos políticos que defenderam que Manaus estava superando a pandemia.

Doação de oxigênio medicinal para atender familiares em risco de morte em Manaus
(Foto: Foto: Raphael Alves/TJAM)

Independente de haver uma nova cepa, caberia ao governo tomar uma atitude muito mais combativa, não?

Já se esperava uma atitude mais severa para Manaus. Agora se faz ainda mais necessária. O presidente Jair Bolsonaro, o Ministério da Saúde, ao utilizarem essa desculpa, estão incorrendo em crime de responsabilidade. É fundamental que o Ministério da Saúde tome uma atitude defendendo o isolamento social. Essas falas do presidente já passaram da conta. Ele passa informações conflituosas para a população, que atrapalham na tomada de decisão, como existe também tentativas de atrapalhar os órgãos públicos para que eles resolvam o problema. Um exemplo é o sucateamento da Anvisa, que já anunciamos em outro artigo na revista Environment Conservation, da Universidade de Cambridge, desde 2019. Vimos agora uma pressão na Anvisa para que não se aprovasse a Coronavac. 

Qual é o cenário que pode acontecer daqui por diante? 

O agravamento em Manaus é iminente. A situação vai piorar nas próximas semanas. Não temos visto todo o reflexo das internações e das mortes por conta do Natal ou do ano novo. Essa segunda onda já tinha sido projetada pelo nosso grupo, inclusive sendo apresentada na Aleam apenas com a primeira variante do vírus. Temos então essa variante, que deve ser nova, mas (o atual caos) ainda não é reflexo dela e temos também a variante da Europa que está chegando. Vamos ter tudo isso atuando em sinergia. Além disso, temos o problema da perda de imunidade da população que já se contaminou lá atrás, e muitas pessoas demandam assistência de atendimento hospitalar por sequelas, o que não tivemos na primeira onda. A ausência de um lockdown e um plano de vacinação irão condenar o Amazonas a uma terceira onda. A pandemia em Manaus será eterna, perpétua, se nenhuma atitude for tomada. 

Vocês já estão fazendo projeções de um prolongamento da pandemia?

Com essas atitudes irresponsáveis que os políticos têm tomado, Manaus não irá sair dessa crise de saúde pública. Estamos projetando esse cenário drástico até 2022, com mais um terceiro pico acontecendo já no meio de 2021. Precisamos de um isolamento social severo, restringindo ao máximo o isolamento das pessoas, fechando as fronteiras do Amazonas e um plano de vacinação urgente para o próximo mês. 

O cenário que desenha é de nunca sairmos dessa pandemia.

Exatamente. A pandemia não será remissiva para Manaus, enquanto não for realizada em conjunto um lockdown extensivo e imediato para frear a ocorrência de uma terceira onda e um plano de vacinação concomitante logo após esse isolamento social. Nossos modelos mostram que Manaus vive um sistema perpétuo de retroalimentação. As pessoas vão perder a imunidade e voltar a se reinfectar. Nunca alcançaremos essa imunidade de rebanho. Isso é impossível. Vamos ter picos suscetíveis. Atualmente na literatura, a reinfecção é mais severa do que o primeiro contato com a doença. As projeções são de piora. 

Obrigado pela entrevista, mas não posso deixar de dizer que fiquei deprimido com o que ouvi.

Estamos avisando há meses. A gente tentou desde o prefeito anterior (Arthur Virgílio Neto) marcar várias reuniões antes dos eventos de Natal. Fomos ignorados por todos os políticos, exceto o deputado Álvaro Campelo, que deu ouvido a nosso grupo, preocupando-se com as projeções de segunda onda em Manaus. Ele, além de divulgar o estudo publicado na Nature Medicine, chegou a convocar uma assembleia pública na Aleam para que os cientistas fossem ouvidos, sofrendo até críticas pelos seus pares por divulgar esses resultados e avisar sobre a segunda onda. Já está na hora da população começar a ouvir os especialistas. Ser negacionista não resolve o problema. Estamos vendo Manaus como um rabo de cavalo. Quanto mais cresce, mais para baixo. A situação está virando um poço sem fundo. Quando se acha que pode chegar no pior momento, ainda dá para cair mais um pouco. Isso é extremamente deprimente para nós. Sabemos que essas projeções são terríveis, mas que poderiam ser facilmente resolvidas pelos políticos, que hoje se negam a resolver o problema da população. Temos hoje um presidente da República que se porta como inimigo da nação e abandonou a Amazônia, abandonou Manaus.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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