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Marina foi atacada não por um erro, mas por existir. Por ser mulher, por ser negra, por vir da floresta e se recusar a trair suas raízes (Foto: Lula Marques/Agência Brasil)

Sem pão, sem aço: o ataque a Marina Silva e a luta por uma industrialização socioambiental

O episódio com Marina Silva no Senado revelou, mais uma vez, uma ferida aberta da democracia brasileira: o uso da estrutura institucional para desferir violência simbólica contra aqueles que ousam desestabilizar os pactos do poder hegemônico

Carolina Pavese Paulon Machado, João Renato Lima Paulon
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Com o alvorecer do golpe parlamentar de 2016, não apenas se desfez a estabilidade institucional, como também se desmontaram importantes instrumentos de soberania nacional. Entre eles, a revogação do regime de partilha do pré-sal representou uma ruptura de um pacto estratégico de futuro.

A revogação da obrigatoriedade da Petrobras como operadora exclusiva no pré-sal, estabelecida pela Lei nº 13.365/2016, alterou significativamente a dinâmica de exploração dessas reservas. Anteriormente, a Petrobras era responsável por conduzir todas as atividades de exploração e produção, garantindo que os recursos provenientes do pré-sal fossem direcionados ao Fundo Social, criado pela Lei nº 12.351/2010, com destinação prioritária para educação (75%) e saúde (25%), conforme estabelecido pela Lei nº 12.858/2013.

Com a flexibilização introduzida pela nova legislação, outras empresas passaram a operar no pré-sal, o que impactou nas receitas do fundo e consequentemente na destinação dos recursos. A participação da Petrobras, que antes era obrigatória, tornou-se opcional.

Essa mudança resultou em uma menor arrecadação para o Fundo Social, já que a participação da União nos lucros da produção diminuiu. Estudos de 2016 indicavam que, até 2022, as perdas para educação e saúde alcançariam R$179 bilhões.

A ofensiva contra Marina Silva

Mas os interesses ditos “estratégicos” não descansam. Em 2024, voltaram-se contra a Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, não por conta de uma política impeditiva, mas por sua coragem em criticar abertamente a tentativa de flexibilizar regras ambientais em nome de uma falsa urgência desenvolvimentista. O pivô do ataque? A criação de uma unidade de conservação marinha na Margem Equatorial, no Amapá — região sensível do ponto de vista ambiental e agora geopolítico com intensa exploração internacional.

O Senado chamou a ministra para “prestar esclarecimentos”, como se estivesse bloqueando o progresso nacional. Mas a própria ministra esclareceu, em audiência na Comissão de Infraestrutura, que a criação da área protegida não inviabiliza a exploração de petróleo, desde que os projetos passem por licenciamento ambiental adequado.

Essa fala desmontou o discurso alarmista de setores que acusam Marina de “travar o desenvolvimento”. A ministra não nega a importância estratégica do petróleo. O que ela reafirma é a necessidade de conciliação entre soberania ambiental e energética, ou seja, o mesmo dilema que Josué de Castro formulou com clareza: pão e aço, e não pão ou aço.

O problema não está na proposta técnica de conservação ambiental — que pode e deve ser debatida com base em evidências e resultados — mas no que Marina Silva simboliza. Sua trajetória política representa uma inflexão ética e ecológica na condução do Estado brasileiro. Trata-se de um desafio frontal ao modelo extrativista historicamente dominante, sustentado por isenções fiscais às corporações transnacionais, desregulação ambiental deliberada, violência institucional contra comunidades tradicionais e negligência sistemática quanto às consequências socioambientais da exploração de recursos.

Esse modelo, além de produzir injustiças internas, fragiliza gravemente a soberania jurisdicional brasileira. Em sua omissão ou leniência, o Estado abre margem para que países hegemônicos, a pretexto de proteger os direitos de seus nacionais, acionem legitimamente os mecanismos do direito internacional — inclusive tribunais estrangeiros — para julgar as mazelas ambientais ocorridas em território nacional. É o que se observa no emblemático “caso Mariana”, julgado atualmente no Reino Unido, onde a mineradora BHP Billiton, sediada em Londres, responde por danos causados a mais de 620 mil brasileiros atingidos pelo colapso da barragem de Fundão. O episódio ilustra com clareza o esvaziamento da capacidade nacional de administrar e punir adequadamente os crimes socioambientais praticados por atores econômicos transnacionais, cujas sedes jurídicas frequentemente se encontram fora do país, mas cujos efeitos devastadores recaem sobre nosso povo e território.

A crítica implícita é clara: ao não exercer plenamente sua autoridade regulatória e judicial, o Brasil entrega a terceiros o poder de definir a justiça que ele próprio deveria garantir. E, nesse processo, enfraquece-se não só a autonomia institucional, mas também a confiança dos próprios brasileiros no papel do Estado como defensor de seus direitos e guardião de seu futuro.

“Fizeram logo o projeto sem ninguém testemunhar,
(…) Se a Floresta, meu amigo, tivesse pé pra andar,
Eu garanto, meu amigo, no perigo não tinha ficado lá.”
A Saga da Amazônia, Vital Farias

Atacar Marina Silva — mulher, negra, amazônida, com legitimidade democrática e respeito internacional — é, mais do que um ato político: um reflexo de nossa persistente herança colonial. O progresso, para muitos, ainda exige o silenciamento das vozes que denunciam seus custos sociais e ambientais.

O episódio no Senado revelou, mais uma vez, essa ferida aberta da democracia brasileira: o uso da estrutura institucional para desferir violência simbólica contra aqueles que ousam desestabilizar os pactos do poder hegemônico. 

Marina foi atacada não por um erro, mas por existir. Por ser mulher, por ser negra, por vir da floresta e se recusar a trair suas raízes. O mais doloroso, contudo, foi o silêncio: o silêncio da base que deveria sustentá-la. O silêncio cúmplice que naturaliza o ataque e consente com a exclusão.

Mas essa cena não é exceção. Ela é sintoma. Sintoma de um sistema que ainda reage com ódio à presença dos corpos dissidentes — mulheres, negros, indígenas, pobres — quando esses ocupam, com firmeza e competência, os lugares que lhes foram historicamente negados.

Pão e aço

E é nesse ponto que entra Josué de Castro, que, já nos anos 1950, em sua obra Geografia da Fome, denunciava com clareza visionária o que chamou de “o dilema brasileiro: pão ou aço”. Ele alertava que “o aniquilamento progressivo dos recursos naturais, sem atenção ao equilíbrio ecológico, não levaria ao fim da pobreza, mas sim à ampliação da miséria e da desigualdade social.” Para ele, “a verdadeira emancipação nacional exigia pão e aço juntos, em equilíbrio — não a exclusividade de um sobre o outro, mas uma distribuição racional, justa e enraizada nas circunstâncias sociais reais do povo brasileiro.

Ele advertia, com lucidez profética, que o “povo brasileiro estaria sim disposto a dar sua cota de sacrifício em nome do progresso — desde que esse sacrifício fosse igualmente compartilhado por todas as classes sociais”. E arrematava com um aviso que ressoa até hoje, como um soco na consciência nacional: “E não estou muito seguro de que isso esteja acontecendo.

70 anos depois, esse diagnóstico continua atual. O “sacrifício” do povo continua sendo exigido — mas os lucros seguem concentrados. O aço se acumulou nas mãos de poucos. E o pão, esse continua faltando na mesa de muitos. 

Perdemos os bilhões da partilha, que destinavam os royalties do petróleo à educação e à saúde do povo. Com essa revogação, entregamos o futuro às multinacionais. Perdemos a chance de construir uma soberania educativa, científica e ecológica. Perdemos a chance de romper o ciclo secular da pobreza.

Sem 179 bilhões, sem pão e sem aço. Sem educação e garantias de preservação ambiental, sem pesquisa e desenvolvimento aplicados, poderíamos comprar oito submarinos nucleares. Mas de que serve esse investimento, se entregamos o pré-sal por nossas próprias mãos?

Blindamos os mares — mas vendemos o chão. Essa é a contradição silenciosa que ameaça o Brasil contemporâneo: proteger militarmente aquilo que já não nos pertence economicamente.

Além de tudo, a quem interessa calar a voz que defende um dos maiores patrimônios do Brasil: a sua Fauna e Flora? Desmerecer e tentar calar a voz mais significativa e internacionalmente reconhecida na luta pela proteção da natureza brasileira revela um plano de futuro ameaçador, e que merece a nossa atenção. 

Para as hegemonias capitalistas, onde o lucro é visto como de fundamental importância, a ponto de desmatar, queimar e matar a natureza por onde passa, tudo se atropela e o interesse reina sobre quaisquer questões existenciais.  Não à toa, estas mesmas potências trabalham, dia após dia, para se entranhar nas mentes dos cidadãos comuns, através da mídia, a ponto de que, tamanha familiaridade com a sua cultura e modo torpe de pensar, achem normal e — o pior — aceitável o uso e abuso dos nossos recursos. 

Estaríamos nós novamente entrando no dilema do indígena e do português? Onde, se nos oferecerem um espelho ou uma coisa qualquer sem valor, poderão entrar em nossas terras e levar tudo o que é nosso? 

Estarão as nossas raízes brasileiras ainda tão ligadas aos colonizadores, a ponto de nos deixarmos ser colonizados novamente? 

As mesmas hegemonias que promovem a inserção de seu modo de agir em nosso povo — e por tabela nos fazem aceitar o que eles fazem e desejam — são as mesmas que lutam, com todas as forças, para derrotar qualquer movimento de insurgência, valorização e preservação nacional. 

Pessoas como Marina, Chico Mendes, Dom Phillips e Bruno Pereira nos mostram que, tão valiosas quanto as riquezas naturais que possuímos, pode ser o nosso povo: basta que olhemos para dentro: de quem somos, do que somos, o nosso lugar atual e potencial no mundo. Só assim poderemos conhecer, de fato, quais são as nossas lutas, valorizando aqueles que se propõem a lutar pelo patrimônio que é de todos nós. Para que, um dia, não sejamos mais o segundo país mais letal para ambientalistas no mundo.

Uma triste atualização da Saga da Amazônia de Vital Farias, que permanece assustadoramente atual:

“Mataram o índio
que matou grileiro
que matou posseiro…

Disse um castanheiro
para um seringueiro
que um estrangeiro
roubou seu lugar…”


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Carolina Pavese Paulon Machado Advogada, especialista em Direito Internacional e Direitos Humanos pela PUC Minas. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Direito Internacional (NEPEDI/UERJ). Atua na articulação entre temas jurídicos relacionados a direito internacional, comércio exterior, defesa e resolução de conflitos internacionais.
João Renato Lima Paulon Advogado, mestrando em Estudos Estratégicos pela UFF/RJ, pós-graduado em Direito Público e Privado pela AMPERJ e em Relações Internacionais: Geopolítica e Defesa pela UFRGS. Atua na articulação entre temas jurídicos e geopolíticos, com foco em soberania, integração regional e disputas estratégicas globais.

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