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ToggleA chegada da pandemia do novo coronavírus a Cuba coincidiu com a decisão do governo Donald Trump de recrudescer as medidas de bloqueio que os Estados Unidos impõem há quase 60 anos contra o país. Entre outras medidas, os EUA proibiram pelo menos 20 voos que levavam suprimentos e equipamentos para Cuba, incluindo aí máscaras de proteção, kit para testes de covid-19, respiradores e insumos químicos necessários para a produção de equipamentos. Agora, no início de setembro, Trump anunciou a prorrogação das medidas de bloqueio por mais um ano. Para enfrentar situações de crise como essa, em meio à escassez provocada pelo cerco que os EUA mantém desde a Revolução Cubana, o governo cubano adotou uma série de medidas que incluem a adoção de políticas de medicina preventiva, de distanciamento social e de desenvolvimento de medicamentos e de uma vacina própria por meio de seus centros de pesquisa e de produção na área da saúde e da biotecnologia.
Produtos biofármacos como Heberon, Heberferon, Jusvinza e Itolizumab, entre outros, vem contribuindo para a diminuição de pacientes graves e críticos e para a redução da taxa mortalidade (para 0,8/100.000), uma taxa aproximadamente dez vezes menor do que a média mundial. A Biocubafarma garante hoje a produção de 22 medicamentos para o tratamento do Covid-19. Um deles é o Interferon Alfa humano recombinante 2B que, junto com um grupo de medicamentos, faz parte do protocolo de enfrentamento da covid-19 e de complicações inflamatórias decorrentes da doença
Divulgação
Interferon Alpha 2B é um dos 22 medicamentos produzidos pela Biocubafarma para o enfrentamento da Covid-19.
No dia 11 de setembro, Cuba registrava 4.593 diagnosticados com a covid-19, dos quais 3.844 já recuperados, 641 em tratamento e 106 óbitos, um dos mais baixos índices de mortalidade do mundo (oito mortes para cada milhão de habitantes). Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), até o início de setembro, o maior índice de mortalidade era o do Peru, com 871 mortes por milhão de habitantes.
Segundo Luís Herrera Martinez, assessor científico da presidência da BioCubaFarma, as políticas adotadas pelo governo cubano para enfrentar o novo coronavírus basearam-se, entre outras coisas, na avaliação de que não estamos lidando com um fato exclusivamente sanitário e sem conseqüências futuras para o mundo inteiro, em diferentes dimensões. Para resumir a natureza dessas medidas, ele cita um artigo publicado na Revista Anais, Academia de Ciências de Cuba, onde presidente Miguel Diaz-Canel Bermúdez e o professor Jorge Nuñez Jover, presidente da Cátedra Ciência, Tecnologia e Sociedade, na Universidade de Havana, que contextualiza as escolhas feitas pelo governo cubano no cenário de uma economia mundial ainda dominada por políticas neoliberais. No artigo intitulado “Gestión gubernamental y ciencia cubana en el enfrentamiento a la COVID-19”, eles sustentam que o novo coronavírus mostrou que esse modelo neoliberal é totalmente incapaz de dar conta dos múltiplos desafios colocados por uma pandemia como essa que o mundo enfrenta agora.
Eles questionam: a que se deve o fato de que países com economias solventes e capacidades científicas e tecnológicas consideráveis tenham demonstrado tantas dificuldades para enfrentar a crise? Os dogmas do neoliberalismo e suas políticas associadas são capazes de lidar com os complexos processos ambientais, sanitários, econômicos e de governança global que o mundo está enfrentando? Entre esses processos, Diaz-Canel e Jorge Jover destacam algumas tendências globais que só vem se acentuando. O mundo assiste a uma pressão crescente sobre os limites planetários para a vida. Com isso se elevam a taxa e a escala de problemas e desastres ambientais e sociais. Convergem aí múltiplas crises: sanitárias, ambientais, desigualdade e exclusão social, entre outras. Cada país e região – e também em nível global – tem que aprender a lidar com sistemas complexos (envolvendo não linearidade, irreversibilidade, fortes interconexões, emergências inesperadas e incertezas) que demandam abordagens interdisciplinares e exigem colaboração intersetorial, interinstitucional e também transnacional. Tudo o que o Brasil não vem fazendo, cabe assinalar.
Na avaliação do governo cubano, a crise atual é sanitária, mas também socioeconômica e humanitária, e não pode ser enfrentada com dogmas neoliberais como Estado mínimo, privatizações, desregulação, desnacionalização, visão do mercado como panacéia, destruição de bens comuns e desmonte de políticas públicas e do Estado como um todo. Para Cuba, há várias pandemias em curso, que incluem também a pobreza e a fome: “A pandemia agudiza problemas de um planeta marcado por profundas desigualdades, onde 600 milhões de pessoas vivem em situação de extrema pobreza e onde quase a metade da população não tem acesso a serviços básicos de saúde”, resume ainda o artigo, apontando os graves erros das políticas neoliberais nos últimos quatro meses que levaram à redução da capacidade de gestão e de enfrentamento da crise pelos Estados.
A chegada do coronavírus e o aumento do bloqueio dos EUA
O primeiro caso de covid-19 foi detectado em Cuba no dia 11 de março de 2020. As primeiras medidas, porém, para o enfrentamento do novo coronavírus, começaram a ser tomadas no final de janeiro, quando o Conselho de Ministros aprovou um Plano para a prevenção e Controle do Coronavírus. No dia 3 de fevereiro, começou a primeira etapa de capacitação de profissionais da saúde e servidores de outras áreas do Estado em temas de biosegurança. Ainda no mês de fevereiro, foram criados o Grupo de Ciência para o Enfrentamento da Covid-19 , o Observatório de Saúde Covid-19 e o Comitê de Inovação. No dia 28 de fevereiro, foram aprovados os primeiros cinco projetos de pesquisa para a Covid-19. No dia 1o de junho, já havia 460 pesquisas em curso no país.
Cuba enfrentou um desafio adicional para implementar essas medidas, destaca ainda Luís Herrera Martínez. Meses antes do surgimento da pandemia da covid-19, o país enfrentou o recrudescimento da política de bloqueio econômico, comercial e financeiro implementada pelos Estados Unidos, dirigida a estrangular o comércio do país, o acesso aos combustíveis e a divisas internacionais. A combinação do recrudescimento do bloqueio com a pandemia do novo coronavírus representou um duro teste para o sistema de saúde e para a estrutura científica cubana. “A obra de anos dedicando recursos para desenvolver e fortalecer a saúde e a ciência foi posta à prova, e a evolução da pandemia em Cuba nos últimos meses está demonstrando o quanto podem impactar as políticas de investimento social no enfrentamento dos maiores e inesperados desafios”, diz o presidente Miguel Diaz-Canel Bermúdez.
Cuba destina 27,5% de seu orçamento para saúde e assistência social
Mesmo em meio ao bloqueio promovido pelos Estados Unidos nas últimas seis décadas, Cuba desenvolveu durante as últimas décadas uma política de saúde pública, universal e gratuita. O país dedica 27,5% de seu orçamento para gastos e investimentos em saúde e assistência social. Um dos instrumentos mais importantes dessa política é o sistema de atenção básica, cuja proximidade com as comunidades favorece o intercâmbio direto com a população, permitindo uma resposta rápida em caso de eventos adversos como o do pandemia da covid-19. Outra peça importante do sistema de saúde cubano é a indústria médico-farmacêutica que, em uma situação de escassez de recursos, combina ciência avançada e inovações criativas que dão ao país “um nível razoável de soberania tecnológica no setor da saúde”.
Mesmo com as dificuldades de recursos impostas pelo bloqueio dos EUA, Cuba não abre mão também da cooperação internacional e mantém cerca de 28 mil profissionais de saúde em 59 países. Hoje, 34 brigadas médicas cubanas, integradas por mais de 2.500 profissionais, estão atuando em 26 países, a pedido de seus governos, para mitigar os impactos da pandemia.
O governo cubano implementou um conjunto de ações para enfrentar a chegada da covid-19 na ilha. Entre elas, destacam-se: desenvolvimento de modelos matemáticos para o prognóstico, enfrentamento e avaliação da progressão da pandemia; sistema de geolocalização aplicado à gestão epidemiológica; adoção de escala de classificação de pacientes graves; estudo de biomarcadores da severidade da enfermidade; criação de mapas das áreas de risco com a identificação dos grupos de risco envolvendo pessoas com mais de 60 anos, em nível nacional; produção de meios de proteção para os profissionais da saúde; desenvolvimento de protótipos de ventiladores pulmonares de emergência; desenvolvimento de uma lâmpada de descontaminação com luz ultravioleta; uso de técnicas de big data para avaliar a mobilidade da população durante a pandemia; desenvolvimento de cinco candidatas vacinais cubanas; aplicação do anticorpo monoclonal Anti-CD6, do peptídeo CIGB258 e do Heberferón em pacientes com a covid-19, entre outras.
Os produtos biotecnológicos cubanos evitaram consideravelmente a morte de pacientes críticos e graves, conseguindo salvar cerca de 80 % deles, enquanto no mundo cerca de 80% deles morrem, afirmam ainda Miguel Diaz-Canel e Jorge Jover que destacam a contribuição da biotecnologia cubana ao combate contra a covid-19 tanto com o anticorpo monoclonal Anti-CD6 quanto com o peptídeo CIGB-258, desenvolvido pelo Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia.
Outro elemento da política cubana para enfrentar a pandemia é a participação da população na implementação das medidas adotadas pelo governo. Na avaliação do representante da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização Panamericana de Saúde (OPAS) em Cuba, José Moyá, no território cubano, a comunicação do governo com a população desempenhou um papel muito importante, para que todos se mantivessem informados sobre a evolução da pandemia dentro e fora do país. Moyá elogiou as medidas adotadas por Cuba desde o início da pandemia, como o isolamento de casos suspeitos e de viajantes que regressavam do exterior, alem do fechamento de escolas e universidades. Alem disso, destacou o distanciamento social adotado e a adesão da população a ele como chave na batalha para enfrentar o novo coronavírus.
O papel da indústria biofarmacêutica
O papel da indústria biofarmacêutica cubana é um capítulo a parte no processo de enfrentamento da pandemia. Luis Herrera Martinez é um dos autores de um artigo “A indústria biofarmacêutica cubana no combate contra a pandemia da covid-19”, que sistematizou o que foi feito até aqui. Essa indústria garantiu o fornecimento de medicamentos do protocolo estabelecido pelo Ministério da Saúde Pública, segundo o qual vários produtos em fase de desenvolvimento foram reposicionados para sua utilização na covid-19. Assim, biofármacos como Nasalferon, Biomodulina T e Hebertrans foram utilizados para a prevenção da infecção pelo vírus em grupos de risco; Heberon e Heberferon foram administrados como tratamentos antivirais, enquanto Jusvinza e Itolizumab foram usado para deter a reação hiperinflamatória. Esses produtos, destaca Luis Herrera, contribuíram para a diminuição de pacientes graves e críticos (em menos de 7%) e para a redução da taxa mortalidade (para 0,8/100.000), uma taxa aproximadamente dez vezes menor do que a média mundial.
Com 35 anos de vida, a indústria biofarmacêutica cubana tem 35 anos de vida. Foi criada por Fidel Castro que sempre viu o setor como estratégico para o país. Sob bloqueio dos EUA, Cuba desenvolveu um modelo próprio de ciência e inovação, obtendo resultados reconhecidos pela comunidade internacional. Em 1965, foi criado o Centro Nacional de Investigações Científicas (CNIC), que reuniu cientistas com a responsabilidade de criar outras instituições, a maior parte delas relacionadas com a saúde humana e animal. A década de 1980 assistiu a um boom da biotecnologia em Cuba com a criação da Frente Biológica, do Centro de Investigações Biológicas, em 1982, do Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia, em 1986, do Centro de Imunoensaio, em 1987, e outras instituições que constituíram, em 1992, o Pólo Científico de Havana, que passou a abrigar mais de 10 mil trabalhadores.
Em 2012, essas instituições se fundiram com as empresas da indústria farmacêutica, dando origem à organização empresarial BioCubaFarma, que abriga hoje 32 empresas, fornece mais 800 produtos ao sistema de saúde, possui 182 objetos de patente, realiza com seus produtos mais de 100 ensaios clínicos simultâneos em 200 sítios clínicos e exporta seus produtos para mais de 50 países.
A vacina Soberana 01
No dia 24 de agosto, a vacina Soberana 01 entrou em fase de testes clínicos em humanos, convertendo-se na primeira da América Latina a avançar para essa segunda fase. A OMS tem registradas, hoje, 167 vacinas potenciais contra a covid-19. A Soberana 01 é uma das 29 que a Organização Mundial da Saúde já aprovou para testes clínicos. Seis delas estão na fase 3, que envolve a testagem em humanos em grande escala. Na América Latina, há outras vacinas sendo desenvolvidas, mas a cubana é a única que já avançou para a fase dois. Nesta fase, a vacina será testada em 676 pessoas, entre 19 e 80 anos. A previsão é de que os resultados sejam divulgados no dia 1o de fevereiro de 2021.
As autoridades médicas de Cuba esperam cumprir todas as etapas de teste para que a vacina Soberana 01 seja aprovada e esteja disponível para os 11 milhões de cubanos a partir de fevereiro de 2021 (ver vídeo abaixo). Além disso, com o apoio da Organização Panamericana de Saúde, pretende disponibilizar a vacina também para outros países da região. Das onze vacinas que integram o programa nacional de imunização, Cuba produz oito delas. Esse programa tem uma cobertura superior a 98% e a vacinação é gratuita e universal.
Seis meses depois da confirmação dos primeiros casos de covid-19 na ilha, o governo cubano decidiu estender, até o final de setembro, um conjunto de medidas restritivas de circulação (de pessoas e de veículos) em Havana em função de um aumento do numero de casos que começou a se manifestar desde o final de julho. Segundo Reinaldo García Zapata, governador de Havana, as medidas são necessárias para conter o risco de propagação da epidemia pela cidade e outros municípios da região.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul