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ToggleDesde antes mesmo da Guerra Fria, os Estados Unidos vêm refinando sua estratégia de controle hemisférico sob uma abordagem multifacetada. Se, nas primeiras décadas, recorreram a intervenções militares abertas e ao apoio a ditaduras, depois, as técnicas de dominação passaram a exigir ferramentas mais sofisticadas, como o sabotagem econômica, a manipulação midiática e uma guerra cultural executada por agências como a USAID e a NED, cuja influência se estende a setores estratégicos como ONGs indígenas, movimentos ambientalistas e organizações esportivas. Embora seu espectro de ação abranja desde comunidades rurais até elites urbanas — todas convertidas em campos de batalha ideológica —, o caso da indústria musical na Venezuela e em Cuba ilustra com crueza o modus operandi dessa máquina de influência.
Raúl Antonio Capote, pesquisador cubano especializado em operações encobertas da CIA, desmonta uma rede na qual, sob a máscara da “promoção democrática”, essas agências buscam erodir identidades coletivas, cooptar símbolos populares e reescrever narrativas históricas. Enquanto, na Venezuela, o financiamento a bandas como Rawayana — glorificadas em palcos globais — serve para normalizar discursos opositores, em Cuba, projetos como o apoio a Los Aldeanos, dos anos 2000, revelam como o soft power estadunidense transforma a arte em arma de desestabilização. A guerra já não se trava apenas nos campos de batalha, mas também nos festivais de rock, nas letras das músicas e nos algoritmos das redes sociais.
Com um orçamento de cerca de US$ 1,7 bilhão para a América Latina em 2023, a USAID opera como braço financeiro da política externa dos Estados Unidos. Sua retórica de “direitos humanos” e “assistência humanitária” esconde um histórico obscuro, desde o financiamento da Operação Condor até as “revoluções coloridas”. Entrevistado pela teleSUR, Capote lembra que “a Aliança para o Progresso nos anos 60 foi o Grande Plano Marshall para instalar ditaduras”. Hoje, o objetivo é semelhante: desgastar governos não alinhados por meio de uma guerra multiforme.
A NED, por sua vez, destinou mais de US$ 2,9 bilhões a projetos na região, muitos focados na cultura. Como aponta Capote, “não é filantropia: é engenharia social”. Exemplo paradigmático é a Venezuela, onde ambas as agências investiram em festivais de rock e “novas bandas”, como revelaram documentos obtidos por meio da Lei de Liberdade de Informação em 2011. O caso de Rawayana, grupo premiado no Grammy e vinculado a figuras como María Corina Machado, expõe como a arte é instrumentalizada.
Guerra cultural: música, redes e juventudes
Capote reforça que “um grupo musical com milhares de seguidores é tão estratégico quanto um tanque”. Em Cuba, a CIA infiltrou o rap e a música urbana nos anos 2000, promovendo artistas como “Los Aldeanos” — financiados pela NED — para semear narrativas contrarrevolucionárias. Na Venezuela, o manual se repete quando a USAID patrocina festivais como o Festival de Novas Bandas, onde o rock alternativo serve de veículo para mensagens antipolíticas.
O pesquisador cubano detalha que “não escolhem os mais talentosos, mas os mais úteis. Oferecem-lhes fama internacional em troca de se tornarem porta-vozes”. Isso explica por que figuras esportivas e musicais são tentadas com contratos em ligas ou gravadoras estrangeiras, desde que critiquem seus governos. Nicolás Maduro já denunciou esses vínculos, mas o dano é profundo: quando um ídolo juvenil normaliza o discurso da “ditadura”, a desestabilização ganha terreno.
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A USAID sob Trump
A decisão de Trump de subordinar a USAID ao Departamento de Estado — com Marco Rubio como administrador interino — não se dá por acaso. Capote adverte que “buscam convertê-la em um aparato mais eficiente e alinhado ao trumpismo”. O objetivo é reciclar uma agência acusada de corrupção e falta de transparência (administra US$ 22 bilhões anuais globalmente) para escalar a guerra híbrida.
Rubio, arquiteto das sanções contra a Venezuela, agora controla os fios da “ajuda externa”. Sob seu comando, os fundos para “promover democracia” (código para desestabilizar) aumentaram: em 2023, US$ 447 milhões foram destinados a esse setor na América Latina. A lógica é perversa, mas conhecida: asfixiar economicamente um país, culpar seu governo pela crise e, depois, oferecer “soluções” por meio de ONGs e artistas financiados por Washington.
A guerra cultural promovida pela USAID é um projeto documentado, com raízes em laboratórios da CIA que estudaram técnicas nazistas de manipulação em massa. Como sentencia Capote, “é uma máquina de criar realidades fictícias: governos autoritários versus salvadores democráticos”.
A América Latina enfrenta hoje o desafio de desmascarar o soft power que transforma canções em propaganda e artistas em mercenários. A batalha não é apenas econômica ou militar; é simbólica. E, como ensinou Alí Primera, só vencerá quem conseguir que as palavras — e os violões — não sejam vendidos.