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Para o governo, reprimir e encarcerar o povo mapuche é muito mais fácil, prático e barato, afirma Soraya Maicoño (Imagem: Reprodução)

Soraya Maicoño, artista mapuche: Milei nos estigmatiza para entregar Patagônia ao extrativismo

O governo Milei culpou os mapuche pelos incêndios ocorridos na Patagônia no início do ano; Soraya Maicoño vive em uma das localidades mais afetadas pelo fogo e revela a verdade sobre a estratégia

Laura Litvinoff
Página 12
Buenos Aires

Tradução:

Ana Corbisier

Os incêndios na Patagônia não só deixaram matas e ecossistemas destruídos, como também várias perguntas que permanecem latentes, enquanto os governos provinciais, o governo da Argentina e o Poder Judiciário, racistas e patriarcais, tentam ocultar suas responsabilidades criminalizando mais uma vez o Povo Mapuche. “Voltam a nos hostilizar para entregar os territórios às empresas extrativistas”, denuncia Soraya Maicoño, atriz e cantora mapuche de Mallín Ahogado, uma das localidades mais afetadas pelo fogo em Río Negro.

A perseguição, assim como ocorreu em 2022, é principalmente contra as mulheres de sua comunidade, guardiãs de uma cultura e espiritualidade ancestral que representam um obstáculo para um sistema econômico que só enxerga na natureza uma oportunidade de negócio.

Soraya faz uma revisão dos fatos e assegura que, embora os discursos de ódio contra seu povo por parte dos governos tenham se intensificado desde a presidência de Javier Milei, diferentemente de outros anos, já não estão causando o mesmo efeito: “Cada vez mais pessoas e organizações repudiam o ataque sistemático contra as comunidades e sabem que é urgente um despertar de consciência. Perceber a importância da terra: Quem está ficando com ela? O que estão fazendo com ela? E o que acontece com quem a defende?”. Confira a entrevista a seguir.

Assim ficou Mallín Ahogado, perto de El Bolsón, em Río Negro, depois do incêndio que arrasou milhares de hectares em janeiro passado. (Foto: Hernán Vitenberg)

Que fato você considera o estopim desta nova perseguição ao povo mapuche?

A criminalização das comunidades pelos governos é algo histórico, mas no começo deste ano o despejo fracassado da Lof Paillako — que reivindica seu território no Parque Nacional Los Alerces, em Chubut — foi um fato-chave para tudo o que aconteceu depois. Naquele dia, dezenas de viaturas policiais, caminhonetes, agentes do Ministério da Segurança de Patricia Bullrich, policiais provinciais, funcionários dos Parques e até um tanque militar entraram na comunidade para realizar o despejo. Mas os moradores decidiram se retirar antes, não porque aquele lugar não seja território mapuche, mas porque sabem da brutalidade com que atuam nesses casos e não iriam arriscar suas vidas. Essa ação desestabilizou completamente o governo, que não conseguiu levar adiante sua encenação repressiva nem usar o despejo para o que tinham planejado: voltar a instalar a ideia de que o povo mapuche é terrorista.

Alguns dias depois começou o primeiro dos incêndios, na localidade de Epuyén, e logo o governo passou a responsabilizar as comunidades…

Sim, o governo de Chubut organizou uma coletiva de imprensa para voltar a nos criminalizar, e a maioria das pessoas citadas são mulheres. Mas até hoje não conseguiram apresentar nenhuma prova. Em Epuyén ninguém sustentou a versão do governo, porque a maioria das pessoas acredita que foi um acidente. E sem dúvida pode ter sido, porque aqui há uma seca tremenda, as plantações de pinheiros são combustível para o fogo, e naquele dia havia muito vento e o clima estava extremamente seco. Em duas horas, queimaram-se 70 casas; muitas das pessoas que perderam tudo são mapuche. Mas eles continuam insistindo com mentiras para espalhar na sociedade a ideia de um inimigo interno que deve ser combatido.

O segundo incêndio começou aqui, perto de Mallín Ahogado, justamente dois dias depois de o intendente de El Bolsón, Bruno Pogliano, dizer que é preciso acabar com toda a ruralidade da região. Como você analisa essa coincidência?

Foi uma coincidência muito estranha e também deixou claro que o plano do governo é beneficiar todos os empreendimentos imobiliários e turísticos das empresas multinacionais desta região. Por isso a ruralidade não lhes convém. Mas Mallín Ahogado é profundamente rural, desde as hortas familiares até as plantações de lúpulo. Na Comarca Andina somos um tecido social: a produção, a ruralidade, os ciclos naturais nos unem. Temos escolas agrotécnicas, a escola primária tem vacas, as crianças aprendem a semear, a ter suas próprias hortas, a serem independentes. Também há o Centro de Educação Agropecuária, que ensina ofícios ligados à prática rural e forma profissionais na área. Essa é a essência deste lugar — e justamente é isso que, para o intendente, deve acabar.

Ao despejo fracassado da Lof e aos dois incêndios na comarca, somaram-se a detenção de pessoas que ajudavam a apagar os incêndios e a intervenção da patota enviada por Lewis na porta da delegacia de El Bolsón…

Claro, naquela tarde houve uma convocação espontânea em frente à delegacia para exigir a libertação dessas pessoas, e aí apareceu a patota de Lewis a cavalo, com rebenques e paus, para agredir não só as pessoas que estavam se manifestando, como também uma policial que estava ali. Esse fato demonstrou o nível de máfia e impunidade de quem detém o verdadeiro poder, além da falta de governabilidade do intendente. Depois, realizaram uma grande batida na região de El Hoyo, Chubut, e prenderam mais seis pessoas, mas no dia seguinte tiveram que libertá-las por falta de provas.

Soraya fala do Bem Viver da cosmovisão mapuche e reflete sobre o ódio contra sua comunidade, que começa a se reverter com o desastre climático provocado, entre outras coisas, pelo extrativismo. (Foto: Hernán Vinterberg)

Você acha que os governos provinciais, em consonância com o Poder Judiciário, os grandes grupos econômicos e o governo nacional, poderiam ter gerado esse caos social para justificar os despejos e as batidas nas comunidades?

É uma possibilidade. Foram 11 batidas no total e aconteceram de maneira massiva e simultânea em várias partes de Chubut, em comunidades e residências particulares. E, assim como nos despejos, as operações policiais foram desmedidas. Agrediram mulheres e idosos, confiscaram livros, computadores, celulares, destruíram casas e espaços das comunidades e prenderam Victoria Núñez Fernández, uma mulher integrante da Lof Pillán Mawiza, na localidade de Corcovado. Também inventaram toda uma história para tentar culpá-la, mas dias após a detenção ela foi colocada em prisão domiciliar, porque a defesa apresentou evidências que demonstraram que tudo era falso. A única prova que o governador utilizava para responsabilizar o povo mapuche pelos incêndios não pôde ser sustentada e, mesmo assim, nenhum funcionário ainda se pronunciou sobre o assunto.

Que interesses você acha que existem por trás de tudo isso?

Principalmente a apropriação de grandes extensões de território que vêm sendo cuidadas e protegidas pelas comunidades há muito tempo. São milhares de hectares de florestas e de água pura, onde há cada vez mais interesses estrangeiros. A terra está realmente nessas mãos, mas eles insistem em dizer que somos nós, os mapuche, que não reconhecemos o Estado e que a única bandeira que deve ser hasteada é a argentina, quando, na realidade, a Benetton possui quase um milhão de hectares no país, e Lewis e os cataris possuem milhares de outros. Para o governo, reprimir e encarcerar o povo mapuche é muito mais fácil, prático e barato, já que não temos o aparato midiático nem econômico para conter todo esse avanço repressivo.

Soraya Maicoño em imagem de divulgação de Lucinda, peça teatral que protagonizou e cuja história se baseia no assassinato de uma avó mapuche da região de Puelmapu em 1993 (Foto: Reprodução)

As vozes dos povos originários e a situação que estão enfrentando ainda não têm visibilidade suficiente no restante da sociedade. Por que você acha que isso acontece?

Há algo na vida urbana que nos afasta das coisas mais essenciais. As pessoas que vivem na cidade foram perdendo o contato com a natureza. Eu, por exemplo, acordo todos os dias aqui; agora que é verão, está tudo verde, no inverno verei as lengas avermelhadas, no outono vou colher minhas ameixas e ver as folhas caírem. E o que vai mudando na natureza também vai mudando em mim. Na comarca, há realmente uma tentativa de outro modo de vida, uma troca de saberes, de respeito e gratidão pelas possibilidades de bem viver que a terra nos oferece. Quando as pessoas realmente puderem se conectar com a natureza de outra forma, e não como se fossem suas donas, poderão entender o quão injusto é responsabilizar o povo mapuche pelos incêndios apenas para nos tirar uma forma de vida — que, aliás, não é apenas uma escolha nossa, mas de muitas outras pessoas que também estão fazendo essa escolha.

Soraya Maicoño em sua casa de Mallín Ahogado, Río Negro (Foto: Hernán Vitenberg)

Muita gente está escolhendo outra forma de vida porque parece perceber que o sistema capitalista-extrativista está destruindo o planeta, não?

Sim, de fato a detenção dos brigadistas que estavam ajudando a apagar os incêndios também teve a ver com isso: são pessoas que se organizaram de forma solidária, espontânea, comunitária, sem líderes. Essas formas incomodam muito o sistema e o poder. E também por isso, agora, diferentemente de outros anos, os discursos de ódio contra nosso povo já não estão surtindo o mesmo efeito. Porque cada vez mais pessoas e organizações repudiam o ataque sistemático às comunidades e sabem que é urgente um despertar de consciência. Perceber a importância da terra: quem está ficando com ela, o que estão fazendo com ela e o que acontece com quem a defende. Para o governo, todas as pessoas que estão se opondo ao sistema extrativista automaticamente passam a ser terroristas, mas, paradoxalmente, quem entra em nossas casas para nos reprimir e nos causar terror são eles.

Página/12, especial para Diálogos do Sul Global – Direitos reservados.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Laura Litvinoff Graduada em Artes Audiovisuais com ênfase em Roteiro (UNA) e professora. Escreve no Las12.

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