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"Marie-Henri Beyle, conhecida como Stendhal (1783-1842)", óleo sobre tela de Olof Johan Södermark (1790–1848)

Stendhal e a esperança de que o futuro cobrará os crimes da classe dominante

Homem excepcional e realmente livre, Stendhal tinha aversão a religiões, mas conservou uma fé da qual fala de maneira tão natural e tão leve como se fosse uma amante
Carlos Russo Jr
Espaço Literário Marcel Proust
Florianópolis (SC)

Tradução:

Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal foi um escritor francês. Seus romances de formação O Vermelho e o NegroA Cartuxa de Parma e o inacabado Lucien Leuwen fizeram dele, ao lado de Flaubert, Victor Hugo, Balzac e Zola, um dos maiores romancistas franceses do século XIX.

Difícil encontrar uma pessoa com maior aversão à religiosidade cega

Stendhal foi um homem absolutamente livre das promessas e laços de qualquer religião. Seus pensamentos e seus sentimentos voltavam-se exclusivamente para esta vida.

Ele a sentiu e a desfrutou da maneira mais precisa e profunda. Aberto para tudo o que poderia lhe dar prazer, e isto não fez com que se tornasse insípido, porque respeitou o que havia de individual em si mesmo. Não reduziu nada a uma unidade duvidosa. Desconfiou de tudo o que não era capaz de sentir. Tudo o que registrou, tudo o que criou, conserva o calor de sua origem.

Ele amou muitas coisas e acreditou em algumas, mas tudo era milagrosamente concreto. Tudo podia ser facilmente encontrado dentro dele, sem que tivesse necessidade de lançar mão de qualquer truque ou embuste.

Esse homem que nada pressupunha, que sempre quis encontrar tudo através de si mesmo, era a própria vida como sentimento e espírito, que encontrava no centro de todo acontecimento e que também por isto era capaz de contemplar o que acontecia de fora para dentro, no qual a palavra e o conteúdo coincidem de maneira mais natural possível, como se ele se tivesse proposto depurar a linguagem por conta própria.

Esse homem excepcional e realmente livre tinha, apesar de tudo, uma fé, da qual fala de maneira tão natural e tão leve como se fosse uma amante.

Ele se contentou, sem revolta, em escrever para poucos, com a certeza de que cem anos mais tarde o leriam.

Nos tempos em que vivemos não é possível conceber uma fé na imortalidade literária que seja mais clara, mais isolada e mais modesta. Esta fé significa que a pessoa continuará existindo quando todos os seus contemporâneos deixarem de ser.

Em seus livros, desprezam-se os que alcançaram uma glória falsa, mas sente-se também desprezo diante da alternativa de combatê-los com seus próprios meios. Nem sequer se sente rancor em relação a eles, uma vez que se sabe até que ponto estão equivocados.

Opta-se pela companhia daqueles aos quais se irá pertencer algum dia: a companhia de todos os autores que são lidos ainda hoje, daqueles que falam conosco, dos quais nos nutrimos. A gratidão que se sente em relação a eles é uma gratidão eterna, aquela pela própria vida.

Matar para sobreviver nada pode significar para este estado de ânimo, porque não se trata de sobreviver agora, mas, sim, de entrar em luta apenas dentro de cem anos. Serão as obras que se confrontarão, e nada mais poderá ser acrescentado. A rivalidade propriamente dita, a que importa, começa quando os rivais já não estão presentes e o combate entre as obras nem mesmo poderá ser presenciado pelos mesmos.

Mas a obra deve existir e para que exista deve conter a maior e a mais pura medida da vida. Em Stendhal, não apenas se desdenhou a vontade de matar, mas fez-se com que entrassem para a imortalidade todos os circunstantes. Uma imortalidade onde tudo se torna efetivo, tanto o menor quanto o maior.

O reino da inimizade chega ao fim. Viva a humanidade, viva a vida!

Na Mansão de La Mole

Jean Sorel, herói do romance de Stendhal, O Vermelho e o Negro, de 1830, é um jovem pequeno burguês que do Seminário torna-se secretário do Senhor de la Mole. Mathilde, a filha do nobre, apaixona-se por ele, o único que não se arrastava a seus pés. Toda a história é ancorada num enfado pré-revolução das barricadas francesas de 1830.

Os salões dos séculos 17 e 18 nada tinham de enfadonhos, ao contrário daqueles de sua época, a do obscurantismo da Restauração, que alicerçada em valores e circunstâncias superadas, criava uma atmosfera de mera convenção, de falta de liberdade e de afetação.

Neles não se devia falar daquilo que interessa às pessoas: política e religião, tão pouco da maioria dos temas literários de um passado recente.

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Que diferença da ousadia dos salões anteriores a 1789. Que receio da aristocracia e da alta burguesia de que tudo se reproduza! Fala-se sempre sobre o tempo: fará frio ou choverá, mexericos e música. Os grandes burgueses enriquecidos por golpismo e a presença de snobs termina por enquadrar o clima.

Jean Sorel é um jovem apaixonado pelas grandes ideias da Revolução de 1789, e por Rousseau, e pelos acontecimentos da era napoleônica. Desde cedo sente repugnância pela mesquinha hipocrisia e pela corrupção mentirosa das classes que dominam o país. Além disso, é por demais fantasioso, ambicioso e sequioso de domínio para se satisfazer com uma existência medíocre.

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Sente-se em toda a obra de Stendhal, como em Cartucha de Parma, um romance quase histórico, que a história real atacou Stendhal de forma muito diferente que Rousseau e Goethe. Rousseau não a viveu e Goethe soube tirar o corpo fora.

Stendhal foi despertado pelo primeiro dos grandes movimentos modernos, realista, trágico, historicamente fundamentado, do qual participaram grandes massas humanas: A Revolução Francesa com todas as agitações que se espalharam por toda a Europa, e que não foi mais nem menos violenta que a própria Restauração.

A instrução pública foi fruto da própria Revolução, os meios de transporte de multiplicaram, tudo isto permitiu a circulação de informações de uma maneira jamais vista antes.

E Henri Beyle de Grenoble, vulgo Stendhal, incorporou a moderna consciência da realidade. Tinha 6 anos quando eclodiu a Revolução, de família burguesa e enriquecida, foi para Paris aos 16 anos, o que coincide com o golpe de Estado de Napoleão. Graças a um parente, foi influente membro do governo, viajando por toda a Europa. Com a queda de Napoleão, perde profissão e tudo o mais, tinha 32 anos. Termina vivendo sem dinheiro e nem profissão, com medo da polícia da Restauração.

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Depois da revolução libertária de 1830, os amigos lhe conseguem um emprego diplomático. Morre em 1842 de apoplexia, antes dos 60 anos.

Entre 1830 e 1842 escreve primeiro sobre música, sobre a Itália, sobre o amor.

Tinha 43 anos quando publicou seu primeiro romance. Só tomou consciência de si mesmo quando se sentiu “um náufrago num barquinho”, e na procura de um porto seguro descobriu que não havia nenhum para si, ele não pertencia a lugar algum. A literatura realista dele brotou de seu mal-estar no mundo reacionário pós- napoleônico, e na sua incapacidade de nele se inserir.

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Ele viveu enquanto um terremoto após o outro sacudia os fundamentos sociais.

Em seu tempo, teve poucos leitores: “Em 1880 ou em 1930 encontrarei leitores que me entendam”.

E tinha uma forte crença no poder de regeneração da humanidade: “No tempo em que isto for lido, as classes dominantes serão responsabilizadas pelos crimes dos ladrões e assassinos”.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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