O êxito de “O Eternauta”, uma das adaptações mais esperadas durante décadas, não é apenas um fenômeno argentino. A série da Netflix acumula críticas positivas em diferentes partes do mundo e se posicionou como uma das mais assistidas da plataforma de streaming em muitos países. Além da Argentina, “O Eternauta” ocupa o primeiro lugar em audiência na Netflix na Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, República Dominicana, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, El Salvador, Uruguai e Venezuela.
“O Eternauta”, a mítica história em quadrinhos argentina nascida em 1957, não narra apenas mais uma invasão extraterrestre: descreve como uma comunidade se organiza e sobrevive, como o herói é o conjunto dos vizinhos. No texto original (que não aparece nos primeiros seis capítulos da série), Juan Salvo se transforma no eternauta, um viajante do tempo que carrega a nostalgia do que foi perdido e a esperança de reencontrar sua família. Cada salto temporal é também um eco da história argentina (e também sul-americana).

Oesterheld escreveu a obra em uma época em que ainda era possível sonhar com um futuro melhor. Anos depois, ele seria desaparecido pela ditadura junto de suas quatro filhas (duas delas grávidas). Mas seu Eternauta continua viajando, em busca de justiça, memória e um pouco de humanidade em meio ao caos. O texto também trata disso — ainda que tenha sido apropriado por muitos que, nessa resistência, aproveitaram-se bem para encher os próprios bolsos.
A série dirigida por Bruno Stagnaro e protagonizada por Ricardo Darín também alcançou o primeiro lugar na audiência em países como Alemanha, Eslováquia, Espanha, Hungria, Itália e Turquia. A Europa também se fascinou com a adaptação do quadrinho de H. G. Oesterheld e Francisco Solano López.
“O Eternauta” é a adaptação em seis capítulos (em sua primeira temporada) da história em quadrinhos escrita por Héctor Germán Oesterheld e originalmente ilustrada por Francisco Solano López, publicada entre 1957 e 1959 na revista Hora Cero. Teve grande impacto, tornou-se um clássico, ganhou novas versões e continuações e durante décadas foi o sonho de muitos vê-la transformada em obra audiovisual.
A série só se tornou possível porque o orçamento necessário agora é viável graças à tecnologia digital. E é histórica porque os resultados são notáveis. Começa com uma nevasca mortal que cai sobre Buenos Aires e surpreende um grupo de amigos que jogam truco na casa de um deles. A partir disso, os personagens centrais precisam enfrentar a nova realidade: o mundo está sendo destruído, eles precisam sobreviver e, além disso, resgatar seus entes queridos. E descobrem que, junto com a neve letal, surgem novos perigos — talvez ainda piores — sejam eles terrestres ou extraterrestres.

A série nos presenteia com excelentes atuações, sobretudo do uruguaio César Troncoso, mas também do consagrado argentino Ricardo Darín (que interpreta o icônico Juan Salvo) e de Carla Peterson. Conta ainda, é claro, com efeitos especiais impactantes, especialmente nos cenários de uma Buenos Aires pós-apocalíptica que gelam o coração. “O Eternauta” já era uma das obras literárias fundamentais da Argentina, carregada de simbolismos sobre temas como solidariedade, tirania, mesquinharia e sobrevivência.
A série argentina mostra que, para permanecerem vivos, é preciso resistir e lutar juntos: ninguém se salva sozinho. A amizade verdadeira é aquela capaz de arriscar tudo pela honestidade e pelo bem coletivo. Ricardo Darín lidera um elenco coral que inclui Carla Peterson (Elena, ex-esposa de Salvo), César Troncoso (Alfredo Favalli, melhor amigo), Andrea Pietra (Ana) e o ator emergente Ariel Staltari, que também participou do roteiro. Completam o elenco Marcelo Subiotto, Orianna Cárdenas como Inga (personagem novo na adaptação), Claudio Martínez Bel, Mora Fisz e Leandro Sandonato como Mosca. A direção é de Bruno Stagnaro, com produção da K&S Films e consultoria criativa de Martín Oesterheld, neto do autor de “O Eternauta”.

Ricardo Darín garante que a série “é um orgulho para a Argentina”. Não é por acaso que o intérprete se sente assim e descreve a historieta icônica de Héctor Germán Oesterheld como “a nossa Bíblia”. A série conseguiu o impensável: posicionar uma produção argentina entre as três séries mais vistas do mundo na Netflix. “O amigo é aquele que corre o risco de te dizer a verdade, ainda que você não goste”, afirma, deixando clara a mensagem.
“Todos gostaríamos que o mundo fosse um lugar onde nos preocupássemos com o que acontece com quem está ao nosso lado, mas estamos nos acostumando visualmente a coisas muito estranhas, como ver famílias dormindo na rua”, acrescentou. Para Darín, a amizade é a família escolhida, uma conexão que transcende “a constituição genética cromossômica” para se tornar “uma partitura da sua vida”.
O ator relatou que, embora tenha ficado impactado na primeira vez em que presenciou uma cena dessa natureza em sua vida cotidiana, com o tempo essa visão se tornou habitual: “Não sei se como mecanismo de defesa ou o quê, mas começamos a naturalizar isso. Então, a gente diz: ‘Havia um casal com três crianças dormindo sobre uns papelões…’. O quê? É estranho. E quando chega a hora de agir, não sei quem está realmente disposto a abrir mão de algo e dar esse passo”.
Darín estabelece uma diferença clara entre as relações herdadas e aquelas que escolhemos cultivar: enquanto as primeiras são como “os preconceitos” que recebemos por herança, os amigos são os que se arriscam e assumem o risco de serem honestos, sem se importar com as consequências.

A ambição não se reflete apenas na narrativa: a trilha sonora inclui ícones da música argentina como Mercedes Sosa com “Todo cambia” e Soda Stereo com “Cuando pase el temblor”, duas canções que dialogam profundamente com a mensagem de sobrevivência e solidariedade da série e evocam o terror dos anos da ditadura cívico-militar.
Um grupo de amigos sobrevive entrincheirado em uma casa, enquanto a ameaça se espalha e o enredo avança com uma combinação singular de horror, ficção científica e crítica social. Hale destaca o traço expressivo de Solano López e o roteiro de Oesterheld, que oscilam entre a claustrofobia e a desolação, com uma atmosfera que remete a um “mar seco e mortal”.
A novela gráfica tornou-se um clássico argentino, impulsionada pelo trágico desaparecimento de Oesterheld, assassinado durante a ditadura cívico-militar, talvez em 1977. Diretores como Adolfo Aristarain, Álex de la Iglesia e Lucrecia Martel tentaram, sem sucesso, adaptar a obra, até que a Netflix finalmente conseguiu concretizá-la, sob a direção de Stagnaro. Esta versão moderniza a história, introduz celulares e novos personagens, mas segue fielmente a trama original — pelo menos até o final dos seis episódios, quando a novela gráfica se direciona a um público politicamente mais ousado.
A série não surge do nada, como uma invasão que de repente perfura a atmosfera da Terra. Não: há uma história por trás, uma longa história que acompanhou aquela que é, provavelmente, a mais importante historieta argentina, até este momento em que se concretiza sua tradução audiovisual.

“Tradução” é uma palavra apropriada para entender o que fez o diretor Bruno Stagnaro (Pizza, birra, faso, Okupas) com esta versão em série de “O Eternauta”: uma adaptação que jamais poderia ser exata — já que altera momentos históricos, lugares, nomes, idades —, mas, ainda assim, é fiel aos objetivos originais, afirma Fernando Toledo. E esta série é fiel em muitos sentidos, porque instaura um produto de ficção científica argentino, em cenários argentinos, com linguagem e hábitos argentinos no enredo e, ao mesmo tempo, apresenta o nível das melhores produções do mundo.
Mike Hale, jornalista do The New York Times, analisou a série dizendo que a adaptação não está ruim, mas deixou claro que primeiro é preciso ler a obra original.
Roberto Cafferata afirma que “em mais uma semana imperfeita, entrou em nós um resistente vírus de argentinidade. Talvez haja outra história por trás da linearidade dos fatos (quase sempre há), mas a estreia da série “O Eternauta” e as fortes declarações do presidente (ultradireitista Javier Milei) sobre o ódio insuficiente aos jornalistas se entrelaçam com o que somos. Oportuna e incomodamente”.





