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ToggleO governo do Emirado do Afeganistão e altos funcionários da Organização das Nações Unidas (ONU), assim como representantes de 25 países se reuniram, no final de junho, em Doha, para um encontro de dois dias. A delegação russa foi encabeçada pelo Representante Especial do Presidente da Rússia para o Afeganistão, Zamir Kabulov.
Essa foi a terceira reunião de alto nível sobre o Afeganistão, realizada em Doha. No entanto, é a primeira com a participação de representantes oficiais das autoridades afegãs, que não foram convidados para o primeiro evento, supervisionado pelos Estados Unidos.
Washington provavelmente pensou que, após a sua expulsão do Afeganistão, em 2021, o movimento talibã não duraria muito e era possível planejar algo sem a sua participação (provavelmente os organizadores das conferências sobre a Ucrânia pensaram o mesmo sem a participação da Rússia).
Persistência do movimento talibã e sua legitimidade internacional
Mas, como ocorreu frequentemente antes, tal plano não funcionou. Os talibãs não só permaneceram no poder como, pouco a pouco, começaram a ganhar legitimidade internacional e a estabelecer laços.
Em fevereiro de 2024, foi convocada uma segunda conferência por iniciativa das Nações Unidas. Porém, os talibãs a boicotaram porque não estavam de acordo com a ordem do dia, que incluía uma interpretação ocidental específica sobre a sociedade civil.
A escolha de Doha como sede não foi casual. O fato é que o Catar foi, durante muito tempo, mediador nas negociações entre os talibãs e funcionários dos Estados Unidos e, além disso, ali se encontra a sede do movimento palestino Hamas. Segundo parece, a eficácia desse papel é reconhecida não só no Ocidente, mas também no Oriente.
Segundo o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, o principal objetivo da terceira rodada de negociações era ampliar a cooperação internacional com o Afeganistão de forma mais coerente, coordenada e estruturada. Isso, aparentemente, foi alcançado.
Relação entre talibãs e Rússia
No primeiro dia, os talibãs agradeceram à Rússia “sua posição positiva e construtiva”. O chefe da delegação do Afeganistão, Zabihullah Mujahid, escreveu sobre isso em uma rede social. É importante ressaltar que os Estados Unidos tentaram, em várias ocasiões, impedir a melhora dos laços entre o Emirado Islâmico do Afeganistão, como os talibãs chamam agora oficialmente seu país, e a Federação Russa. Isso não foi alcançado. E a confiança política entre Moscou e Cabul alcançou um novo patamar.
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Também se sabe que, no primeiro dia, a delegação talibã manteve uma reunião em separado com Kabulov, assim como com representantes da Índia, Arábia Saudita e Uzbequistão.
Quanto aos resultados, segundo fontes oficiais afegãs, “na reunião foram assumidos compromissos para serem levantadas as restrições econômicas e bancárias”.
Segundo os observadores, provavelmente, logo serão levantadas as sanções contra o Afeganistão e as contas serão descongeladas.
Dado que Mujahid elogiou as posições não só da Rússia, China, Irã, Paquistão, Cazaquistão, Uzbequistão, Quirguistão, Turquemenistão e a Organização de Cooperação Islâmica, mas também dos Estados Unidos, trata-se de uma confirmação indireta da disposição de Washington de devolver ativos ao Afeganistão.
Pontos comuns com países do Sul e Leste Global
É preciso enfatizar que os Estados Unidos estão na lista mais por seu papel no congelamento (e potencialmente descongelamento) dos ativos bancários afegãos. Todos os demais países representam um não-Ocidente coletivo, o que é indicativo no contexto da crescente multipolaridade.
Portanto, os benefícios do potencial na cooperação com o Afeganistão serão, em primeiro lugar, dos países da Eurásia. Certamente, os talibãs manifestaram seu interesse em participar das obras do Corredor de Transporte Internacional Norte-Sul, em que a Rússia e o Irã são atores-chave. É significativo que o Paquistão tenha demonstrado o mesmo interesse no dia anterior.
E, se durante a Conferência de Doha os talibãs encontraram mais pontos comuns com os países do Sul e do Leste Global, e se mostraram decididos a cooperar em diversos campos, imediatamente surgiram divergências em nível de retórica diplomática com os representantes do Ocidente.
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Reações e posicionamentos internacionais
Por exemplo, a Secretária-Geral Adjunta da ONU, Rosemary Di Carlo, voltou a mencionar a questão da igualdade de gênero, ainda que previamente tivesse havido acordo de que o tema não faria parte da ordem do dia da conferência. Ela afirmou que tinha sido dito às autoridades talibãs que as mulheres deviam participar da vida pública e que “as autoridades não se sentarão à mesa com a sociedade civil afegã neste formato; ouviram muito claramente a necessidade de incluir as mulheres e a sociedade civil em todos os aspectos da vida pública”.
Ao mesmo tempo, afirmou que foi exposta a questão das sanções, mas que esta não foi examinada em detalhe, insinuando que a questão das sanções ainda não está resolvida e que pode depender da solução da questão de gênero.
Agnes Callamard, diretora da Anistia Internacional, antes das conversações, declarou que “cumprir as condições dos talibãs para garantir sua participação nas negociações poderia supor a legitimação de seu sistema institucionalizado de opressão baseado em princípios de gênero”.
A Agência Canadense de Assuntos Internacionais emitiu um comunicado de imprensa em que expressava sua decepção com o fato de que as mulheres do Afeganistão não estivessem representadas na reunião.
Na inauguração da cúpula, o representante talibã Zabihullah Mujahid afirmou laconicamente que os diplomatas deviam “encontrar vias de interação e entendimento mútuo e não de confronto”, apesar das “naturais” diferenças políticas. “O Emirado Islâmico do Afeganistão também se esforça para conseguir uma cooperação construtiva com os países ocidentais”, disse, acrescentando que “como qualquer Estado soberano, aderimos a certos valores religiosos e culturais e aspirações sociais que devem ser reconhecidos.”
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Garantias dos direitos sob a lei islâmica
Cabe dizer que os representantes do movimento talibã declararam, em várias ocasiões, que os direitos de todos os cidadãos estão garantidos pela lei islâmica.
Mas o Ocidente tem seu próprio ponto de vista e até cunhou o termo “apartheid de gênero” relativo à situação no Afeganistão. Basta lembrar que os mesmos “experientes” do Ocidente inventaram o “fascismo islâmico” para demonizar a República Islâmica do Irã e justificar, depois, as intervenções militares no Afeganistão e no Iraque.
Mas está acabando o tempo deles. E agora o próprio Ocidente está se tornando uma congregação de Estados delinquentes. E o Afeganistão, com sua cultura específica e sua lei islâmica, está se unindo à comunidade de potências soberanas.