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Augusto Boal: o subversivo maravilhoso

Paulo Cannabrava Filho

Tradução:

Paulo Cannabrava Filho*

Acervo da família sem identificação do fotógrafo.
Acervo da família sem identificação do fotógrafo.

Augusto Boal queria transformar o mundo. Queria um mundo em que as pessoas pudessem se realizar em todo seu potencial. Quando voltou dos Estados Unidos, em 1956, veio com uma das mais poderosas armas para o desenvolvimento humano. Veio com o teatro incorporado a seu ser, acreditando que Stanislawisk o ajudaria a levar a cabo a revolução cultural necessária. E reinventou o teatro. Naquela época o Brasil se reinventava em todos os aspectos da criatividade humana: reformas de base, teatro, cinema novo, bossa nova, poesia concreta, CPC da Une, democracia, CGT/Pua, Congresso de Trabalhadores Agrícolas, projeto nacional de desenvolvimento, plano trienal….. é, o Brasil se reinventava.

As metrópoles temerosas de perder sua fonte de riqueza deram o golpe. O teatro já não era suficiente para enfrentar a ditadura civil-militar que teimava em anular cada uma das conquistas do povo brasileiro. Liquidaram com os partidos de expressão popular, fecharam o congresso, intervieram nos sindicatos e organizações estudantis, cassaram e caçaram a inteligência e as lideranças nacionais.

Diante da impossibilidade de atuar e avançar politicamente comunistas, católicos, democratas das mais diversas cores partiram para a luta armada, como opção para livrar o país de seus algozes. Amigo de Carlos Marighella e Câmara Ferreira Boal não ficou indiferente aos novos desafios. Só o teatro já não bastava como arma para devolver a liberdade e a democracia ao povo brasileiro. Preso, torturado, saiu para o exílio e continuou a fazer do teatro sua arena de luta em favor da libertação dos povos. Boal jamais se recuperou das seqüelas da tortura: três ou mais cirurgias no joelho e, finalmente, a leucemia que mais tarde o levou deste mundo.

No exílio Boal continuou a ser perseguido e torturado pela ditadura. Deixaram-no sem passaporte. A mim também a ditadura me deixou sem passaporte. É terrível, pois no exterior o passaporte é o único documento válido e nós precisávamos trabalhar para sobreviver. Além disso Boal queria mostrar seu teatro para o mundo. Um teatro já evoluído para uma ação consciencializadora capaz de despertar as pessoas a olhar além de seu próprio umbigo e encarar critica e criativamente a realidade.

Idibal Piveta, advogado, seguidor dos ensinamentos de Boal, que como poeta e teatrólogo é o Cesar Vieira do União e Olho Vivo, impetrou mandado de injunção contra a União pelo absurdo de negar passaporte a um cidadão. O caso foi parar no Superior Tribunal de Justiça que deu ganho de causa a Boal por nove votos a favor e dois contra. Na sessão seguinte foi julgado o meu processo e os juízes votaram onze a zero. Firmou jurisprudência e a partir daí todos os brasileiros que estavam no exílio sem passaporte puderam requerer nas embaixadas e permanecer devidamente documentados.

Em 1969 nos encontramos em Cuba. Depois, vez ou outra nos encontrávamos em Buenos Aires. Na Argentina ele criou o Teatro Invisível, uma forma de fazer manifestação política em ambientes públicos, como num ônibus, metro, etc. Nessa época ele mostrou seu teatro no Festival de Nancy (1971) e ganhou seu primeiro prêmio internacional. Antes já havia sido premiado em São Paulo em reconhecimento a sua obra e seu trabalho no Teatro de Arena.

Quando o governo revolucionário de Velasco Alvarado, no Perú, iniciou a reforma na educação, na realidade uma revolução cultural que começava com uma estratégia de alfabetização e outra de educação, sugeri a Salazar Bondy, que convidasse Boal para nos ajudar na formação dos quadros que formariam o contingente de educadores. Salazar Bondy, educador, filósofo, epistemologista era o executivo do Ministério de Educação, tocava o principal projeto da revolução peruana: a formação do homem novo. Foram momentos maravilhosos conviver com Salazar Bondy, poder interagir com lideranças de uma cultura milenar como a andina. Sei que essa experiência influenciou profundamente a Boal. Foi ai que aplicando a técnica do Teatro Invisível criou o Teatro Fórum para trabalhar os conflitos intererrelacionais.

Em 1978 Boal foi para a França e no ano seguinte seu Teatro do Oprimido estava provocando uma ebulição no meio intelectual francês com repercussão por vários países da Europa. Impressionante como essa idéia extravasou fronteiras. Acumulação das experiências levou-o a utilizar o teatro como terapia materializado no Arco-Íris do Desejo.

Em 1986 Boal aceitou convite formulado por Darcy Ribeiro, secretário de Educação do Rio de Janeiro no governo de Leonel Brizola, e foi dirigir a Fabrica de Teatro Popular. A partir daí permaneceu no Brasil desenvolvendo seu projeto, dando palestras, viajando pelo mundo para difundir suas idéias e sua técnica. Em 1992 foi eleito vereador na cidade do Rio de Janeiro e aproveitou a experiência para mais uma de suas criações: o Teatro Legislativo. Mais uma ferramenta de ação cultural conscientizadora através da qual estimulava o povo a pensar a legislação necessária.

Ano passado o processo de anistia a Boal, que estava parado há cerca de nove anos, foi para julgamento na Comissão de Anistia. Num primeiro momento, para a burocracia Boal não poderia receber indenização mensal e continuada porque não havia prova documental de que trabalhava e de quanto recebia mensalmente quando foi preso, torturado e forçado a um exílio de mais de dez anos.

Chegaram centenas de cartas e emeios do mundo inteiro testemunhando o trabalho e a importância de Boal. Nem ele mesmo tinha idéia de tal abrangência de sua contribuição para a ação cultural através do teatro no mundo. Felizmente a comissão entendeu que como diretor do Teatro de Arena Boal não poderia ter carteira assinada mas era remunerado como qualquer outro diretor teatral. A reparação foi concedida.

A concessão da anistia aliviou um pouco a situação da família mas, Boal, a essa altura já estava bastante doente. Dia 27 de março deste ano teve a alegria de receber da Unesco o título de Embaixador Mundial do Teatro. Seu discurso mais que uma despedida é um testamento. Deixa pra nós sua mensagem de sempre: “Teatro não pode ser apenas um evento – é forma de vida!
Atores somos todos nós, e cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a transforma!”

Em homenagem a Augusto Boal transcrevo seu discurso:

Dia Mundial de Teatro – 27 Março, 2009

Augusto Boal

Todas as sociedades humanas são espetaculares no seu cotidiano, e produzem espetáculos em momentos especiais. São espetaculares como forma de organização social, e produzem espetáculos como este que vocês vieram ver.

Mesmo quando inconscientes, as relações humanas são estruturadas em forma teatral: o uso do espaço, a linguagem do corpo, a escolha das palavras e a modulação das vozes, o confronto de idéias e paixões, tudo que fazemos no palco fazemos sempre em nossas vidas: nós somos teatro!

Não só casamentos e funerais são espetáculos, mas também os rituais cotidianos que, por sua familiaridade, não nos chegam à consciência. Não só pompas, mas também o café da manhã e os bons-dias, tímidos namoros e grandes conflitos passionais, uma sessão do Senado ou uma reunião diplomática – tudo é teatro.

Uma das principais funções da nossa arte é tornar conscientes esses espetáculos da vida


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1967. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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