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Terceira ou quarta guerra?

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

Seus gritos lembram o facínora de bigodinho que levou o mundo ao horror da Segunda Guerra em 1939

Flávio Tavares* 
trump12A violência habita o cotidiano com tanta naturalidade, como parte da vida, que já perdemos a noção das coisas simples ao redor. Quando fechamos o vidro do carro com medo a que nos assaltem (e nos matem) no semáforo, nem percebemos que o gesto mecânico nos torna prisioneiros de nós próprios. A rua deixou de ser espaço de convivência. Já não desfrutamos da cidade e seus habitantes nem da arquitetura, menos ainda das praças e jardins.
A antiga “civitas”, surgida para o convívio e o diálogo, tornou-se hostil até pelo ruído e a poluição. Hoje, a rua é rápido estágio para sair da prisão doméstica (com grades e muro, código secreto na porta e guardas de segurança), passar à prisão ambulante e, finalmente, chegar ao trabalho.
Eis a versão brasileira daquilo que o Papa Francisco chamou, agora, de “terceira guerra mundial”, em referência ao sacerdote de 85 anos, degolado na França por um demente fanático do Islã.

  • Não se trata, porém, de guerra religiosa ou de conflito entre religiões, mas de uma guerra por interesses de poder e de dinheiro -, frisou, em nova crítica à cobiça fomentada pela sociedade de consumo. Desde 2014, o papa chama as diferentes formas de violência, geradas pela ambição de poder, de Terceira Guerra Mundial. “Todo horror está contido ali nessa ânsia de poder que destrói até a natureza e o meio ambiente, e dali se expande”, reiterou agora, na Polônia, na Jornada Mundial da Juventude.

A violência e as guerras têm a idade da História. Ou até da pré-história, da qual não há documentos. Mas nenhum leão, mesmo faminto, devora outro leão. Nós, humanos e canibais, no entanto, enganamos e matamos os semelhantes para nos apoderar do que tenham ou do que venham a ter.
A era moderna dissimulou o canibalismo. O avanço científico-tecnológico facilitou a vida, a modernidade encurtou até a geografia e já não há distâncias. Xangai está tão próximo a São Paulo quanto Campinas, Tóquio, Belo Horizonte, Santos, Paris ou Ribeirão Preto. O mundo real se confunde com o virtual. Tudo está ao alcance da mão, basta um toque no computador ou no celular.
Também o terror da cobiça se espalhou e criou estímulos para um consumo desenfreado que aniquila o pensar e o transcendente. Cada vez mais, buscando ter mais e mais, nos empanturramos de quinquilharias. Ou perdemos o prumo e nos dobramos a ofertas difusas (ou fazemos com que se dobrem ao que oferecemos) para chegar ao poder e dele usufruir, seja de que tipo for o poder. Ou para o que for.
Alguns, estão neste caminho honestamente, pelo trabalho empreendedor. Outros, pela rota tortuosa e fácil do engano e da mentira, irmãos gêmeos da preguiça e da ignorância, parentes da loucura.
Nessa sofreguidão, os Eduardos Cunha e aqueles políticos do PT, PMDB, PP e outros “pês” menores (que, em concubinato com grandes empresários, assaltaram a Petrobras), ou os do PSDB (que armaram o “mensalão mineiro” e as tramóias no metro paulistano) se misturam aos marginais que nos assaltam na esquina.
A não ser o horror do sangue derramado, em que os réus da Lava Jato, e similares, diferem (no arrogante desfrute do poder) dos delinquentes de armas na mão?
Uns roubam milhões de dólares do setor público e, temendo a prisão, delatam tudo (ou quase tudo) para ter uma tornozeleira como prêmio. Outros, matam para roubar a bolsa, a carteira, o tênis “de marca”, ou o novo totem do século 21 – o telefone celular.
Tão perverso é o crime organizado nos altos escalões dos governos por figurões da política e do empresariado, quanto o dos delinquentes visíveis que assaltam à saída das lojas da rua José Paulino. Em ambos os casos, há uma espécie de confisco natural, já parte do cotidiano e perante o qual nos dizemos impotentes. Já nem falo do narcotráfico e da perversão da droga, que se combate de forma tão inteligente que, a cada dia, mais se alastra e se aprofunda…
Aquele horror que explode mundo afora, e que a TV nos mostra em imagens coloridas, nasce na loucura fanática do chamado Estado Islâmico e nele se simboliza. Mas está também aqui, ao alcance de nosso nariz, mesmo com outras raízes.
As consequências, porém, são idênticas. Ou até mais graves!
A destruição ambiental que a irresponsável mineração da Samarco provocou não se restringe a Minas Gerais, nem é passageira ou sanável com obras futuras ou indenização em dinheiro. Compromete por séculos (ou eternamente) a bacia do Rio Doce, esteriliza áreas agrícolas, afeta a população.
O que são aquelas crateras de 100 ou 200 metros de profundidade e quilômetros de diâmetro das extrações a céu aberto, irreparáveis ao longo dos séculos, comparadas aos monumentos que os fanáticos do Talibã destroem?
Crime maior é o de Minas – conta com nosso silêncio e, antes, contou com nossa omissão!
Tudo isto é a Terceira Guerra Mundial. É guerra moderna, com várias frentes de combate e armas novas que atualizam velhas táticas e estratégias e nos fazem pensar, até, que vivemos em paz. Frente a isso, agimos como se a violência fosse tão incontrolável como a chuva nas enxurradas. A competição virou modo de vida, “subimos na vida” à custa dos demais, rejeitamos a solidariedade, a compreensão e o amor. Aplaudimos o grosseiro, desde o mau gosto do palavrão à música do “tum-tum-tum”, sem ritmo nem harmonia. Aceitamos a violência e pedimos (estupidamente) “construir mais presídios”, enquanto o narcotráfico reina dá gargalhadas.
Ninguém pensa em educar e reconstruir as bases ético-morais de comportamento da sociedade inteira!
A violência ameaçadora, porém, está ao norte da América e nos ronda: o direitista Trump não é o inocente Pato Donald, mesmo tendo o mesmo nome.
Seus gritos já nem são os da Terceira, mas os da Quarta Guerra Mundial e, com o carrancudo silêncio de Putin, lembram o facínora de bigodinho que levou o mundo ao horror da Segunda Guerra em 1939.
*Jornalista e escritor, prêmio Jabuti de Literatura em 2000 e 2005, colabora com Diálogos do Sul
 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

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