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ToggleO rastro do Terceiro Reich continua visível na Europa. O sangue, o dinheiro e suas ideias ainda palpitam e circulam no continente que serviu de berço ao fascismo, cujo legado percorreu o restante do século 20 após a Segunda Guerra Mundial e continua latente entre as elites governantes atuais do bloco europeu. No contexto do 80º aniversário do Dia da Vitória, que comemora a derrota do nazismo e do fascismo europeu pelas mãos da União Soviética, essa tendência torna-se mais do que evidente.
Mas trata-se de uma certeza oculta, deliberadamente, pelas mesmas elites europeias que a repetem incansavelmente como um ciclo político, econômico e cultural.
Quando a Segunda Guerra Mundial chegou ao fim, em 1945, iniciou-se um processo simbólico de “desnazificação” na Alemanha e em outros países que estiveram sob controle nazista. No entanto, o que não se menciona com tanta frequência é que muitas figuras-chave do Terceiro Reich conseguiram evitar o castigo por seus crimes e chegaram a ser absorvidas pelas novas estruturas políticas, militares e econômicas surgidas na Europa Ocidental durante o pós-guerra.
Hoje, 80 anos depois, existem indícios preocupantes de como certos elementos ideológicos, redes pessoais e dinâmicas de poder associadas ao nazismo continuam influenciando os círculos de poder europeus.
De Berlim a Bruxelas: Ratlines e a integração de criminosos nazistas
Ao final da Segunda Guerra Mundial, milhares de criminosos de guerra nazistas escaparam da justiça graças às chamadas Ratlines (“rotas de rato”), vias secretas organizadas principalmente por setores do Vaticano, serviços de inteligência ocidentais — inclusive os estadunidenses — e redes da ultradireita europeia.
As Ratlines permitiram que altos funcionários nazistas, entre eles membros das SS e gestores de campos de concentração, fugissem para as Américas e outros continentes.
Mas nem todos escaparam. Muitos permaneceram na Europa e, longe de serem perseguidos, foram recrutados pelas potências ocidentais para colaborar na Guerra Fria contra a União Soviética.
A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), fundada em 1949, incorporou antigos oficiais de alto escalão do exército alemão (Wehrmacht) e até mesmo membros das SS, como Reinhard Gehlen, que dirigiu uma rede de espionagem alemã contra a União Soviética, posteriormente absorvida pelos Estados Unidos.
Um estudo intitulado Nazism, NATO and West-European Integration – Correlation revela como ex-oficiais alemães foram reinseridos em postos estratégicos dentro da estrutura atlântica. Da mesma forma, historiadores documentaram casos como o do general Hans Speidel, chefe do Comando Supremo Aliado na Europa (SACEUR), que combateu ao lado de Erwin Rommel na África e foi reabilitado pelas potências ocidentais.
Essa integração operativa e simbólica marcou o início de uma normalização tácita do passado nazista dentro das instituições europeias, com o principal respaldo dos Estados Unidos, autodeclarado vencedor da Segunda Guerra Mundial.
O capital de ontem e de hoje financiou o Führer
Uma das páginas menos conhecidas da história do nazismo é sua estreita relação com a elite empresarial alemã. Durante os anos 1930, grandes conglomerados industriais como Krupp, Thyssen, IG Farben e Siemens não apenas financiaram a chegada de Hitler ao poder como também se beneficiaram enormemente do regime nazista, explorando mão de obra escrava em campos de concentração e lucrando com a produção do complexo industrial-militar.
Como mostra o artigo da Jacobin intitulado “Nazi Billionaires: Capitalism Under Hitler”, essas empresas não só sobreviveram à derrota do Reich como também se tornaram pilares do “milagre econômico” alemão do pós-guerra.
Mais ainda: essa continuidade econômica e política ajudou a moldar o desenvolvimento do capitalismo europeu contemporâneo, estabelecendo um modelo profundamente entrelaçado com interesses corporativos que já haviam colaborado com o nazismo.
A elite econômica alemã atual é herdeira direta dos capitalistas colaboradores dos nazistas, e alguns deles fizeram parte da nomenclatura governamental do Terceiro Reich.
Ursula von der Leyen, Friedrich Merz e os fantasmas do passado
Um caso emblemático que ilustra essa persistência do legado nazista no establishment atual é o de Ursula von der Leyen, presidenta da Comissão Europeia na atualidade.
Seu pai, Ernst Albrecht, esteve intimamente vinculado à administração nazista, atuando na ocupação da Holanda — atual Países Baixos. Apesar desse passado sombrio, ele não apenas conseguiu se reinventar politicamente, como chegou a ser presidente regional do estado federado da Baixa Saxônia, funcionário da União Europeia e mentor de Angela Merkel.

Segundo investigações jornalísticas, Albrecht não apenas evitou acusações por crimes de guerra, como também recebeu o perdão oficial das autoridades britânicas devido às suas supostas “contribuições para a reconstrução europeia”.
Esse exemplo mostra como indivíduos ligados ao nazismo puderam se reintegrar ao sistema liberal europeu sem prestar contas públicas por seu passado, contribuindo ainda para a formação das gerações posteriores de líderes europeus.
Além disso, diversos documentos históricos indicam que ele foi direta e indiretamente responsável pelo massacre de civis holandeses e participou de decisões que levaram a execuções sumárias.
O escritor e editor alemão Peter Kuras, em um artigo publicado em 2021 na Foreign Policy, escreveu categoricamente:
“A árvore genealógica de von der Leyen traça um legado de poder e brutalidade que incorpora não apenas alguns dos nazistas mais importantes da Alemanha, como também alguns dos maiores traficantes de escravos da Grã-Bretanha e, por meio do matrimônio, alguns dos maiores proprietários de escravos dos Estados Unidos.
Von der Leyen descende diretamente de James Madison, que possuía mais de 200 escravos quando eclodiu a Guerra Civil.
Poderia parecer mesquinho condenar alguém por sua ascendência: os pecados do pai, afinal, não recaem sobre o filho — ou, neste caso, sobre a filha. Mas a própria von der Leyen evocou esses antepassados sem pedir desculpas, sem pensar duas vezes.”
Mas há mais: o novo chanceler alemão, Friedrich Merz, tem um antepassado direto que fazia parte do Partido Nazista: seu avô, Josef Paul Sauvigny, entrou para a Schutzabteilung, a força paramilitar nazista das camisas pardas, em julho de 1933, apenas seis meses depois de Hitler se tornar chanceler. Também foi prefeito de Brilon durante o Terceiro Reich, ocasião em que mandou rebatizar uma avenida central da cidade com o nome de Adolf-Hitler-Strasse.
Confira aqui mais análises sobre o Dia da Vitória contra o nazismo.
Que implicações isso tem sobre a legitimidade moral das instituições atuais? Ao que parece, nenhuma — com a consciência europeia tranquila, inclusive apoiando regimes com filiação explícita ao nazismo e/ou a suas ideias práticas.
A Nova Ordem de Hitler e o projeto da União Europeia
A chamada Nova Ordem Europeia (Neuordnung), concebida por Hitler e seus assessores, pretendia reestruturar o continente sob princípios de hierarquia racial, dominação econômica e centralização política. Embora grotescamente distorcido pelo racismo e pelo militarismo, esse projeto compartilhava traços estruturais com o atual modelo da União Europeia (UE).
Nas palavras do eurodeputado britânico Gerard Batten, citado pelo The Independent, o plano original da UE teria sido inspirado, em parte, por ideias desenvolvidas por burocratas nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.
Embora essa afirmação possa parecer exagerada, há evidências históricas de que certas estruturas burocráticas e modelos de integração econômica foram adotados — e adaptados — pelos arquitetos do projeto europeu após a guerra.
A Neuordnung buscava criar um espaço econômico comum, dominado pela Alemanha, com instituições centrais que imporiam normas uniformes aos países conquistados. Hoje, a UE também opera com instituições supranacionais — como a Comissão Europeia ou o Banco Central Europeu — que tomam decisões que afetam toda a comunidade, muitas vezes sem consulta direta aos cidadãos.
Além disso, a Alemanha tem sido por anos a principal liderança econômica da Europa e o centro nevrálgico da tomada de decisões do capitalismo europeu.
Unha e carne: a íntima conexão entre o nazismo, o imperialismo anglo-saxão e a Otan
Nesse sentido, embora os valores e objetivos sejam diametralmente opostos, as formas de organização são inquietantemente similares.
Especialmente desde a crise financeira de 2008, a UE tem adotado uma abordagem burocrática e autoritária que remete — ainda que de maneira distinta — ao centralismo germânico do século 20.
Não se trata de equiparar literalmente ambas as realidades, mas de nos perguntarmos que modelos de poder e hierarquia se repetem historicamente na Europa. E a tendência parece clara, como escreveu o poeta e político anticolonial Aimé Césaire em 1950:
“Que se queira ou não, no final do beco sem saída da Europa —quero dizer da Europa de Adenauer, de Schuman, de Bidault e de alguns outros— está Hitler. No final do capitalismo, desejoso de perpetuar-se, está Hitler. No final do humanismo formal e da renúncia filosófica, está Hitler.”
Ucrânia, geopolítica e o retorno do proibido
No contexto da guerra na Ucrânia e no Donbass, outro aspecto crítico é o apoio incondicional das elites europeias a Kiev, ignorando sistematicamente a presença de grupos neonazistas e partidários da ideologia banderista dentro do establishment ucraniano.
Organizações como o Batalhão Azov, inicialmente paramilitar e com forte identidade nazista, foram oficialmente integradas ao exército ucraniano, enquanto símbolos e discursos oriundos do nacionalismo extremista são celebrados por dirigentes europeus.
Existe uma tendência alarmante nos países bálticos e na Finlândia em direção a movimentos ultraconservadores, revisionistas e abertamente fascistas.
Além disso, parlamentares europeus financiaram projetos educativos e culturais na Ucrânia que promovem a ideologia de Stepan Bandera, colaborador ucraniano do hitlerismo durante a Operação Barbarossa, e figura venerada por muitos neonazistas ucranianos.
Essa contradição levanta perguntas incômodas para os próprios europeus: por que se tolera o uso de símbolos fascistas quando favorecem os interesses geopolíticos europeus, enquanto se condena qualquer manifestação semelhante em território russo ou de outros adversários?
80 anos do Dia da Vitória: a tarefa de defender a memória soviética frente à fantasia ocidental
Não estamos assistindo a uma dupla moral que legitima seletivamente certos fascismos conforme sua utilidade estratégica?
A Europa como repetição encoberta
A história europeia do século 20 nos ensina que os regimes fascistas não surgem do nada; estão enraizados em estruturas sociais, culturais e econômicas que sobrevivem aos seus líderes. As elites europeias atuais, tanto políticas quanto econômicas, não podem lavar seu passado sem enfrentar honestamente as raízes obscuras que ainda pulsam no coração do projeto europeu.
Desde a integração de antigos nazistas na Otan até as conexões familiares de figuras-chave como Ursula von der Leyen, passando pelas estruturas institucionais que lembram a Neuordnung hitleriana, fica claro que o legado do nazismo está muito presente na Europa contemporânea.
Hoje, mais do que nunca —em um momento de ascensão fascista no Ocidente e com tudo o que significa o Dia da Vitória, a 80 anos da queda do Terceiro Reich—, faz-se necessário revisar esses legados e romper com aquelas lógicas de poder, exclusão e violência sistêmica que, sob novas formas, continuam determinando o rumo da Europa. Assim escrevia Césaire, como se estivesse falando das elites europeias do século 21, para concluir:
“Sim, valeria a pena estudar, clinicamente, em detalhe, as formas de agir de Hitler e do hitlerismo, e revelar ao mui distinto, mui humanista, mui cristão burguês do século 20 que leva consigo um Hitler e que o ignora, que Hitler o habita, que Hitler é seu demônio, que, se o vitupera, é por falta de lógica, e que, no fundo, o que não perdoa a Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, mas o crime contra o homem branco, é a humilhação do homem branco, e o fato de ter aplicado na Europa procedimentos colonialistas que até então só cabiam aos árabes da Argélia, aos coolies da Índia e aos negros da África.”