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ToggleDesde 16 de janeiro, ataques do Exército de Libertação Nacional (ELN) contra dissidências das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) mergulharam a região de Catatumbo, na Colômbia, em uma profunda crise humanitária. Ao contrário das Farc, o ELN não assinou um acordo de paz com o governo colombiano e segue na ação armada.
A ofensiva não poupou nem mesmo ex-membros das Farc signatários do acordo de paz: seis foram assassinados, 11 estão desaparecidos e 102 foram deslocados. Ao todo, a onda de violência deixou pelo menos 80 mortos e provocou o deslocamento forçado de mais de 50 mil pessoas.
“Com o crescimento do ELN e das dissidências das Farc, começou a haver controle territorial e das rotas do narcotráfico, e com isso confrontos que evoluíram para a atual tragédia humanitária”, afirma a senadora colombiana Sandra Ramírez em entrevista à Diálogos do Sul Global.
Natural do departamento de Santander e membra do partido Comunes, Ramirez foi integrante das Farc por 35 anos, de 1981 a 2016, ano da assinatura dos acordos de paz em Havana.
Nessa conversa, a visão histórica da parlamentar sobre o quadro na Colômbia ajuda a entender que, para além dos ataques de janeiro e do narcotráfico, a emergência em Catatumbo tem raízes na atuação de multionacionais e em décadas de abandono pelo Estado colombiano.
“Não houve investimento social, como em saúde, educação, moradia e crédito para os camponeses. Coube a eles se defenderem, ‘salve-se quem puder’. É quando o narcotráfico se instala”, afirma.
Confira.
Guilherme Ribeiro: Senadora, quais os fatores centrais que levaram ao atual conflito em Catatumbo? Além do controle da região, um dos principais elementos, há outras razões por trás dos ataques do ELN contra dissidências das FARC?
Senadora Sandra Ramírez: É preciso contextualizar o que tem sido, o que tem vivido Catatumbo. Essa tem sido uma região historicamente distante e abandonada pelos governos que passaram pela vida política do nosso país. Esse abandono trouxe vários problemas porque, inclusive, Catatumbo é muito rico, com minerais como ouro, carvão e petróleo.
Primeiro, a partir da segunda metade do século passado, a nação indígena foi paulatinamente deslocada de onde estava originalmente em direção à fronteira — diria eu —, para um canto de Catatumbo. Isso ocorreu a partir da chegada de multinacionais de petróleo, mineração ilegal e de extração de palma — além de enormes plantações de coca, a região tem enormes territórios ocupados pela palma. Todas essas corporações deslocaram a nação Barí (povo originário historicamente instalado na bacia do rio Catatumbo, na região de fronteira entre a Colômbia e a Venezuela).
Depois, chegaram à região camponeses de muitas regiões do nosso país para viver, colonizar, desmatar, derrubar a selva e sobreviver, sem nenhum tipo de apoio do Estado. Não houve investimento social, como em saúde, educação, moradia e crédito para os camponeses. Coube a eles se defenderem, “salve-se quem puder”. É quando o narcotráfico se instala em Catatumbo e passa a fornecer aos camponeses recursos para sobreviver, em troca de cultivarem e processarem a pasta da coca.
Também chegam ali outros atores, como as Farc, o ELN e o EPL (Exército Popular de Libertação). Por fim, se estabelecem grupos de extrema-direita como os paramilitares – [no Brasil, as chamadas milícias], forças militares nas quais o Estado se apoiou e se tornaram um instrumento maligno para se apropriar do território, paulatinamente eliminando líderes defensores das comunidades e dos direitos humanos. Essa tem sido a história trágica de Catatumbo, um território abandonado pelo Estado, que se encheu de conflitos de violência.
Atuação das Farc, Acordo de paz e reposicionamento
Conforme o próprio Estado colombiano reconheceu, as áreas onde nós, das Farc, estávamos presentes eram organizadas. Nos dedicamos a isso, a organizar normas de boa convivência. Atuamos como um Estado dentro do Estado, na resolução de muitos conflitos que normalmente surgem na sociedade. Além disso, tivemos enfrentamentos com o exército, em várias ocasiões com o ELN e também com os paramilitares.
A partir da assinatura dos Acordos de Havana, em 2016, nos recolhemos e nos posicionamos em um único ponto, chamado Caño Indio. Isso significa que muitas áreas ficaram sozinhas, dando lugar à ocupação das forças de segurança: como o Estado não teve a capacidade de levar investimento social — o que estava previsto nos acordos —, optou pela força, e a força não resolve os problemas, historicamente só traz mais violência.
Não só o Estado chegou com a força. O ELN também começou a crescer. Já nas Farc, em razão da leitura que fizeram do acordo e de descumprimentos do governo em relação ao nosso processo de reincorporação à sociedade, alguns companheiros se rearmaram, uma pequena quantidade, mas que cresceu diante do abandono do Estado.
61 años lleva de fundado el ELN, desde ese entonces han pasado 15 presidentes, 58 años ha Gobernado la élite de este país, la clase política tradicional que hoy es oposición.
Si bien bajo este Gobierno se han presentado errores, la guerra en el Catatumbo no nace bajo el Gobierno… pic.twitter.com/9m7Fp1Zz0I
— Sandra Ramírez (@SandraComunes) January 29, 2025
Passaram a recrutar jovens para a guerra, jovens sem futuro, que não têm um projeto de vida, um apoio para poderem continuar um estudo. Mal possuem ensino fundamental, menos ainda ensino médio, e não conseguem trabalho. Então pensam: “vamos por esse caminho, por essa rota que encontramos, que nos oferecem estar bem, um uniforme, uma arma, comida”. Assim foram crescendo as dissidências das Farc, hoje presentes no território e o ELN.
Coca: meio de sobrevivência camponesa
O quarto ponto do Acordo de Paz determina a substituição voluntária dos cultivos de uso ilícito. Inclusive, isso deve ser feito com a contribuição da comunidade internacional, já que há uma demanda permanente e a coca que se produz aqui vai para muitos países, como os EUA. O Estado não cumpriu essa determinação, deixando o camponês à deriva, nas mãos das rotas do narcotráfico, dos mafiosos. Um quilo de coca vale na Colômbia 2,7 milhões de pesos (R$ 3.750,00, na conversão atual). Isso é suficiente para o camponês sobreviver, comprar alimento, diferentemente da plantação de mandioca, banana, milho ou frutas que, sem um meio de transporte ágil, acaba perdendo valor.
Com o crescimento das dissidências — que, vale dizer, carecem de caráter político, fundamentação ideológica, regulamentação interna e externa, valores e princípios — e do ELN, começou a haver controle territorial e das rotas do narcotráfico, e com isso confrontos pela compra e venda da coca, que cresceram até evoluir para a tragédia humanitária que hoje vive Catatumbo.
Desafios à paz total
A paz total é uma das principais bandeiras de Gustavo Petro. Como o conflito impacta na luta do governo?
Senadora Sandra Ramírez: Impacta negativamente. Mas a paz total é um tema muito complexo, que começa com a implementação do acordo de paz assinado em Havana. E por quê? Simplesmente, porque se implementarmos o acordo, se transformarmos os territórios, estamos avançando na paz e superando as causas que originaram o conflito e que ainda persiste em nosso país.
O Governo Petro já executa uma parte do acordo, a reforma rural integral, relativa à distribuição e à formalização de terras. Isso é muito importante e Catatumbo precisa disso. Mas há nesse capítulo um ponto crucial: os Programas de Desenvolvimento com Enfoque Territorial (PDET, na sigla em espanhol).
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Os PDETs abrangem 170 municípios, povoados pequenos, distribuídos em 16 zonas prioritárias, incluindo Catatumbo, com 11 municípios. São regiões do país que foram abandonadas, fortemente impactadas pelo conflito e onde há uma grande quantidade de vítimas. É preciso reconhecer que a guerra não deixa ave-marias, orações: deixa profundas feridas na sociedade, destrói o tecido social. O programa é uma ferramenta superimportante para os governos e tem como essência transformar o território, mas não com obras de cimento, e sim com reforma agrária, formalização de terras, um forte investimento.
No governo de Iván Duque [2014-2018], houve um bloqueio total, uma municipalização dos PDETs. Fizeram uma leitura própria do acordo, transferindo a responsabilidade do governo central para cada um dos municípios do programa. São as localidades mais pobres do país, com um orçamento muito pequeno, que mal é suficiente para pequenas obras, quanto mais para realmente transformar a realidade.
Neste governo, do companheiro Gustavo Petro, houve significativos progressos nos PDETs, mas falta muito. Se todo o necessário fosse feito, estaríamos falando da paz total.
Neste sentido, o que acredita que precisa ser feito a curto e longo prazo pelo governo para alcançar este plano de paz total?
Senadora Sandra Ramírez: Avançar na paz dos territórios demanda que não se dispare nem uma única bala a mais, que a paz esteja acima das balas. Significa que é preciso dialogar com os diferentes grupos armados. Petro tem muita vontade, mas essa vontade política deve ser acompanhada por uma estratégia. Dialogar, com uma rota a seguir, com um plano de ação. E essa estratégia não deve vir apenas do governo, mas também dos grupos armados.
É preciso exigir que respeitem os mínimos humanitários pactuados em 2021, como respeitar a população civil e garantir sua mobilidade pelas trilhas, estradas e aldeias sem nenhum tipo de constrangimento.

Há poucas semanas, diante dos conflitos, nós, congressistas, realizamos uma audiência em Catatumbo com organizações sociais e a população. Todos nos contam sobre a difícil situação que há no local. Reforçamos a importância do respeito aos mínimos humanitários e propusemos não apenas o cessamento das hostilidades com a força pública, mas o fim de qualquer violência contra a população, e também que sejam implementados mecanismos de proteção à comunidade.
E como avalia a atuação do governo?
Senadora Sandra Ramírez: Petro decretou nesta região em particular uma medida existente em nosso país chamada Estado de Comoção Interna. Não é uma ação bem-vinda em nosso país, pois em outros episódios significou restrição de direitos. Porém, é a ferramenta que temos em mãos que pode impactar em Catatumbo. Soma-se a isso o investimento social.
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Há uma comissão responsável por avaliar o estado de comoção e decidir se o aceita, se é exequível ou não, e permitir ao governo entrar no território. A partir disso, é possível implementar mecanismos de proteção e corredores humanitários à população civil, garantindo principalmente o retorno das comunidades que estão amontoadas em três grandes pontos: Cúcuta, Ocaña e Tibú. Estão recolhidas em abrigos humanitários, se protegendo dos confrontos.
Estamos tentando avançar, levar a Catatumbo não apenas a força pública que está presente lá, mas também, paralelamente, o Estado, com investimento social. Evidentemente, também estamos fazendo grandes esforços para atender ao deslocamento enorme. Nunca será suficiente, mas lutamos para que haja paz no retorno a Catatumbo.
Paramilitares, extrema-direita e EUA
Você mencionou os paramilitares e a ligação que tinham com os governos de direita na Colômbia. Com a vitória de Petro, o que houve com esses grupos? Têm participação no conflito no Catatumbo?
Com certeza, os paramilitares têm sido essa força paraestatal presente há muitos anos em nosso país. Sobre eles recaem enormes crimes, massacres, um deslocamento interno impressionante. Parte desse deslocamento chega a Catatumbo e a outras regiões muito distantes.
O governo de Álvaro Uribe afirma ter realizado a desmobilização dessas forças. Isso não aconteceu, pois esse problema persiste em nosso país. Costumamos dizer que foi uma pantomima de Uribe — um governo que deixou uma memória nefasta em nosso país e usou as forças militares a seu favor, de maneira cruel e perversa, com os falsos positivos, por exemplo.
“Pensei que estava só, mas somos muitas”: mães de “falsos positivos” se unem por justiça na Colômbia
A Colômbia é muito grande e ainda há paramilitares em muitos territórios. Também há diálogos de paz com eles, pois é uma força movida pelo narcotráfico, que protege e se nutre das rotas. Suas ações são contra a população, contra o líder defensor do meio ambiente, da comunidade, dos direitos humanos, do território. O líder que não permite que se faça pedagogia a favor do narcotráfico entra na mira do paramilitarismo.
Grupos armados ilegales que dicen querer caminar hacia la paz, cometen estos hechos tan lamentables y reprochables en Cúcuta y otros municipios de Norte de Santander, que ponen en riesgo a la población civil.
Un llamado al diálogo, a la paz, a abandonar estas prácticas… pic.twitter.com/TfsZJPGxQh
— Sandra Ramírez (@SandraComunes) February 20, 2025
Pode haver influência externa no conflito em Catatumbo, por exemplo, na tentativa de desestabilizar Petro?
Senadora Sandra Ramírez: Sim. Há em nosso país uma direita fascista que quer resolver tudo à base da violência e que hoje, inclusive, está se aproveitando da situação em Catatumbo para vender uma segurança. Mas não uma segurança humana, em que as pessoas tenham parte de seus direitos resolvidos, mas de violência e através do aumento da força nos territórios. Então, é muito possível que esteja acontecendo. Essas forças são apoiadas pela direita fascista internacional, que faz qualquer coisa para se apropriar dos recursos naturais dos nossos territórios.
Aqui, na América, temos enormes riquezas, como o Arco Mineiro do Orinoco, que não está presente apenas na Venezuela, com a qual dividimos uma enorme fronteira: temos um pedacinho na Colômbia, uma área imensamente rica em cobre, ouro, petróleo e bauxita. Temos com o Brasil um enorme pulmão, muito grande, com uma biodiversidade imensa e que produz o que respiramos todos os dias, o oxigênio. E nossa região conta ainda o Triângulo do Lítio, entre a Bolívia, o Chile e a Argentina. Sabemos que tipo de governo há hoje na Argentina.
EUA fabricaram paramilitarismo na Colômbia e hoje usam mercenários pelo mundo
Há nove bases militares estadunidenses na Colômbia, o que nos torna uma plataforma para chegar muito rapidamente a outros países caso necessário. Em certa ocasião, ouvi a chefe do Comando Sul dos EUA, Laura Richardson, falar sobre as riquezas da região, afirmando caber a eles proteger os recursos da Colômbia, do Arco Mineiro do Orinoco, do Triângulo do Lítio e do Brasil.
Agora, temos nos Estados Unidos um governo que representa a direita fascista, ao mesmo tempo, feito por e para empresários. Isso é Donald Trump, um empresário, cercado por corporações de comunicações e de extração de minérios.
Isso já nos faz entender por que os EUA apoiam a ultradireita nesses diferentes países. E apoiar a ultradireita é apoiar os grupos armados de extrema-direita que fazem tanto mal aos territórios. Por isso, apesar de ser possível, é tão difícil conseguir conversações e acabar as as forças paramilitares da Colômbia. Contam com apoio de setores com alto poder econômico no âmbito local e da ultra direita mundialmente.
A grande mídia tem utilizado o conflito em Catatumbo para atacar Petro. Como tem sido o enfrentamento a essa guerra midiática?
Senadora Sandra Ramírez: O enfrentamento é feito utilizando os meios alternativos para, em certa medida, desmentir a desinformação, as notícias falsas e a informação limitada apresentada pelos grandes meios de comunicação em nosso país, como a Caracol e a RCN — as quais, além de tudo, chegam a todos os cantos da Colômbia. Se basearam em rumores, em informações sem verificações.
La hostilidad generalizada de los medios de comunicación contra mi gobierno, ya había sucedido lo mismo en mi alcaldia de Bogotá, pero esta vez es peor, tiene que ver conque los medios cayeron en poder de los hombres más ricos de Colombia.
El modelo de salida al neoliberalismo… https://t.co/9tLU4lRlHl
— Gustavo Petro (@petrogustavo) February 17, 2025
Temos na Colômbia um meio público chamado RTVC, permanentemente atacado pelos setores de ultra direita. Essa tem sido uma das táticas, utilizar esse sistema público. E nós que apoiamos o governo da mudança, fazemos com que nossas redes também sirvam a esse trabalho.
Alguma consideração final sobre a situação em Catatumbo, senadora?
Senadora Sandra Ramírez: Quero ressaltar a luta e a resistência das comunidades do Catatumbo. Minha solidariedade a todas as catatumberas e catatumberos, minha admiração por essa luta que mantêm em defesa do território.
Ressalto ainda a luta das mães catatumberas, a luta das mulheres que são, em particular, quem têm defendido e resistido no território, incluindo as mães que ficaram viúvas. Minha eterna admiração pelas mães do Catatumbo, cujos filhos têm terminado onde elas não gostariam que terminassem: na guerra.
