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Trinta anos após sua morte, música afro-cubana jamais esquecerá Nicolás Guillén

Aos trinta anos de sua morte comemoremos o poeta que reivindicou a “cor cubana” da mestiçagem afro-antilhana e cantou seus versos em ritmo de son
Juan Carlos Salazar del Barrio
La Paz

Tradução:

Nasceu com a independência formal de seu país, na Cuba da emenda constitucional que concedia aos Estados Unidos o “direito” de intervenção, fato que marcaria sua vida política e literária como intelectual comprometido.

Filho de pais mulatos, síntese da cubanidade, Nicolás Guillén, o poeta que reivindicou a “cor cubana” da mestiçagem afro-antilhana, cantou seus versos em ritmo de son. 

Tinha 28 anos quando o jornal Diário de Marinha, em Havana, publicou pela primeira vez seus “Motivos de son” (1930), oito poemas rítmicos e sonoros como a música afro-cubana, que inicialmente se constituíram motivo de escândalo mais que de elogio, não pelo som, que dava ritmo ao tradicional otossílabo, mas sim por seu conteúdo reivindicativo da mestiçagem e a afirmação de um orgulho que impregnaria também o seguinte livro de título onomatopaico: “Sóngoro cosongo” (1931).

“Tratei de incorporar à literatura cubana, não como simples motivo musical, mas sim como elemento de verdadeira poesia, o que poderia chamar-se poema-son, baseado na técnica desse tipo de dança tão popular em nosso país”, explicaria anos depois. “Meus poemas-sonetos – agregaria – me servem ademais para reivindicar o único que nos vai ficando que seja verdadeiramente nosso, sacando-o à luz e o utilizando como um elemento poético de força”.

Filho de um combatente pela independência que morreu em uma das tantas lutas entre liberais e conservadores de princípios do século passado, Nicolás Cristóbal Guillén Batista, conhecido apenas como Nicolás Guillén, nasceu na província de Camaguey em 10 de julho de 1902.

Foi educado nos princípios católicos de sua mãe, Argélia Batista Arrieta, e nas ideias igualitárias de seu pai, o senador liberal Nicolás Guillén Urra, credo e ideário que alimentariam sua poesia e seu afã pela justiça social. 

Perdeu seu pai, assassinado por soldados do regime conservador da época, aos seus 15 anos, fato que o obrigou a cuidar do sustento familiar como primogênito entre seis irmãos.

Deixou constância do seu amor filiar em um de seus poemas: 

“No puedo hablar pero me obligan
el perfil de mi padre, su índice del recuerdo;
no puedo hablar, pero me llaman
su detenida voz y el sollozo del viento”

(Elegia Camagueyana).

Fez o curso primário e o secundário em Camaguey, época na qual comparecia em horário noturno às aulas de preceptiva literária do professor Tomás Vélez, com quem estudou os autores do Século de Ouro espanhol (Quevedo, Góngora e Lope de Vega). Publicou seus primeiros poemas nas revistas Gráfico e Camaguey.  

Ao terminar seus estudos básicos, transladou-se a Havana para estudar Direito, carreira que abandonou pouco tempo depois pelo amor à poesia e pela falta de recursos econômicos.

Escrevia “uma ou outra notinha” para os jornais locais e comparecia toda sexta-feira à noite à Tertúlia literária do café Martí. “Eu que pensava em uma branca senda florida, onde esconder a vida sob o azul e um sonho, hoje, apesar da inocência daquele dourado empenho, morri estudando leis para viver a vida”, referiu-se com ironia à sua passagem pela universidade. 

Retornou a Camaguey, onde dirigiu a revista literária Lis, enquanto ganhava a vida como tipógrafo, revisor e redator do jornal El Camagueyano, mas não demorou em voltar para Havana, em 1926, com 24 anos, em busca de novos horizontes. Por essa mesma época entrou em contato com vários poetas, entre eles Federico García Lorca (1898-1936) e o afro-americano Langston Hughes (1902-1967).

Aos trinta anos de sua morte comemoremos o poeta que reivindicou a “cor cubana” da mestiçagem afro-antilhana e cantou seus versos em ritmo de son

Divulgação
Guillén incorporou à poesia a musicalidade do son, o ritmo afro-cubano por excelência

“Motivos de son” e a “mestiçagem branquinegra”

A publicação de “Motivos de Son”, em 1930, o lançou à fama, já que vários poemas do livro foram musicados por compositores da época. 

Não foi essa a única razão porque o livro de poemas converteu-se em um grande acontecimento cultural, senão – e sobretudo – porque Guillén incorporou à poesia a musicalidade do son, o ritmo afro-cubano por excelência, e a fonética, e modismos da linguagem mestiça da ilha, algo que não havia ocorrido até então na literatura antilhana.

Chamaram-no de “poeta da negritude”, mas, na realidade, como ele mesmo dizia, o que sempre quis reivindicar foi a “cor cubana” da “mestiçagem branquinegra”.

“A injeção africana nesta terra é tão profunda, e se cruzam e entrecruzam em nossa bem regada hidrografia social tantas correntes capilares, que seria trabalho de miniaturista desenredar o hieróglifo”, como escreveu no prólogo de “Sóngoro cosongo”.

“¿Por qué te pone tan brabo,
cuando te disen negro bembón,
si tiene la boca santa,
negro bembón?

Bembón así como ere
tiene de to;
Caridá te mantiene,
te lo da to”.

Mario Benedetti (1920-2009) elogiou “o ritmo e a música verbais” de Sóngoro cosongo, o “versilibrismo” de West Indies Ltd. e o “humor travesso” de El Gran Zoo, como mostras de sua grande versatilidade.

Citou seu poema “Todo Mezclado” para assinalar que, embora em sua poesia estivesse “tudo misturado”, as tendências e estilos se complementavam sem se estorvar, porque na obra do cubano cada “movimento se origina no anterior, quase sem contradizê-lo, simplesmente abrindo seus leitos, gerando afluentes, incorporando palavras recém nascidas”.

Em uma carta dirigida ao autor da poesia mestiça, o escritor e filósofo espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936) lhe confessou haver sentido o ritmo e a música dos negros e mulatos em cada um dos versos de “Motivos de Son” e “Sóngoro cosongo”. “É o espírito da carne, o sentimento da vida direta, imediata terrena. É, no fundo, toda uma filosofia e uma religião”, lhe escreveu.

Denúncia política e social do racismo

Como recordam os estudiosos de sua obra, Guillén manteve em “Sóngoro Cosongo” a “linha negrista” da poesia que inaugurou em “Motivos de Son”, mas ao mesmo tempo aprofundou a denúncia política e social, produto de sua observação da discriminação, marginalidade e pobreza em que viviam negros e mulatos. 

“Não ignoro, é evidente, que estes versos lhes repugnam a muitas pessoas, porque eles tratam assuntos dos negros e do povo. Não me importa. Ou melhor dizendo: me alegra”, escreveu Guillén em “Las grandes elegías y otros poemas”. 

“¡Ay, negra,
si tú supiera!
Anoche te bi pasá
y no quise que me biera.
A é tú le hará como a mí,
que cuando no tube plata
te corrite de bachata,
sin acoddadte de mí.
Sóngoro cosongo,
songo bé;
sóngoro cosongo
de mamey;
sóngoro, la negra
baila bien;
sóngoro de uno
sóngoro de tré”.

“West Indies Ltd.” e visita a Espanha

Guillén publicou “West Indies Ltd.” em 1934, um ano depois da “revolta dos sargentos”, encabeçada pelo coronel Fulgencio Batista, instigada pelos Estados Unidos, obra na qual denuncia a injustiça social e a intervenção estrangeira

“¡West Indies!
Nueces de coco, tabaco y aguardiente…
Éste es un oscuro pueblo sonriente,
conservador y liberal,
ganadero y azucarero,
donde a veces corre mucho dinero,
pero donde siempre se vive muy mal”.

Três anos depois, em 1937, visitou o México para participar em um congresso organizado pela Liga de Escritores e Artistas Revolucionários do México, onde se encontrou com dezenas de escritores e artistas socialistas e comunistas, como o compositor Silvestre Revueltas e os muralistas Diego Rivera e Alfaro Siqueiros.

Nesse mesmo ano foi à Espanha em plena Guerra Civil (1936-1939), para assistir o II Congresso Internacional de Escritores para a Defesa da Cultura, evento no qual conheceu e fez amizade com Antonio Machado, Miguel Hernández, Pablo Neruda, Octavio Paz, Rafael Alberti, César Vallejo e León Felipe, entre outros.

“No sé por qué piensas tú”

Dessa época datam seus livros de poemas “Cantos para soldados y sones para turistas” (1937) e “España. Poema en cuatro angustias y una esperanza” (1937). O primeiro inclui o poema “No sé por qué piensas tú”,  musicalizado por conhecidos intérpretes como Joan Manuel Serrat, Daniel Viglietti, Horacio Guarany e Mercedes Sosa, muito popular como “canção de protesto” na Bolívia das ditaduras militares.

“No sé por qué piensas tú,
soldado, que te odio yo,
si, somos la misma cosa
yo,
tú.
Tú eres pobre, lo soy yo;
soy de abajo, lo eres tú;
¿de donde has sacado tú,
soldado, que te odio yo?”.


Comunismo, anti fascismo e o Lenin da Paz

Comovido profundamente pela experiência da Guerra Civil espanhola, ingressou no fim dos anos 30 no Partido Comunista, no qual militaria toda a sua vida.

Depois de ter assistido o congresso de escritores na Espanha, regressou a Cuba em companhia de León Felipe. Desenvolveu uma intensa atividade política entre 1939 e 1941 como dirigente da Frente Nacional Antifascista. Chegou inclusive a se candidatar sem êxito à prefeitura de Havana. 

Em 1945 iniciou uma turnê de três anos por Venezuela, Colômbia, Chile, Peru, Brasil, Uruguai e Argentina. Na Argentina publicou “El Son Entero” (1947). Anos depois recolheria as experiências de seu périplo no livro “La paloma de vuelo popular” (1958).

Visitou Paris, Bucareste, Varsóvia, Budapeste e Bruxelas. Participou do Conselho Mundial pela Paz em Praga e Viena, viajou à União Soviética, à República Popular da China e à Mongólia. Em 1954 recebeu o Prêmio Lênin da Paz, durante sua estadia em Estocolmo para o Congresso da Paz.

Sierra Maestra e o retorno à Cuba

O triunfo dos guerrilheiros de Sierra Maestra o surpreendeu em Buenos Aires, mas retornou de imediato a Havana para se somar ao movimento.. 

Um mês depois do ingresso triunfante de Fidel Castro em Havana, escreveu a Rafael Alberti, comunista como ele: “Aqui estamos em um clima de verdadeira revolução e a consigna é protegê-la e fazê-la avançar. Visto de perto, Fidel Castro melhora, se é que isso é possível, a excelente impressão que dá visto de longe. Me parece um homem valente, audaz, temerário, disposto a levar longe o que se conquistou e que não têm medo de que o chamem de 'vermelhinho' ou vermelho de uma vez, coisa que é claro que não é (…).  Os fuzilamentos continuam e o povo os elogia e agradece, tantos foram os crimes – cada dia aparecem novos – e atropelos cometidos por aquela gente”.

Chê, Bolívia e “Guitarra en duelo mayor”

Admirador do Che Guevara, dedicou-lhe quatro poemas, um dos quais leu em 18 de outubro de 1967, dez dias depois de sua execução em La Higuera, na multitudinária homenagem que lhe foi tributada na Praça da Revolução, presidida por Fidel Castro:

“No porque hayas caído
tu luz es menos alta.
Un caballo de fuego
sostiene tu escultura
guerrillera
entre el viento y las nubes de la Sierra.
No por callado eres silencio.
Y no porque te quemen,
porque te disimulen bajo tierra,
porque te escondan
en cementerio, bosques, páramos,
van a impedir que te encontremos
Che Comandante,
amigo”.

Outro poema, “Guitarra en duelo mayor”, ao qual Paco Ibáñez pôs música, está dedicado ao soldado boliviano:

“Soldadito de Bolivia
soldadito boliviano.
Armado vas de tu rifle
que es un rifle americano
que es un rifle americano
soldadito de Bolivia
que es un rifle americano”.


Também se ocupou da Bolívia em circunstâncias menos dramáticas. Como recordava Pedro Shimose, citado pelo jornalista Harold Olmos, Guillén se refere em um de seus poemas ao Pilcomayo e ao Mamoré “como si los hubiera navegado y conocido sus recodos, cuando no era así, pues los mencionaba sólo por el gusto musical que sentía al pronunciar sus nombres”.

Shimose conheceu o cubano quando foi à Havana para receber o Prêmio de Poesia Casa de las Américas (1972)

“América malherida,
te quiero andar,
de Argentina a Guatemala,
pasando por Paraguay.
Mi mano al indio en Bolivia
franca tender;
que el Pilcomayo me lleve,
que me traiga el Mamoré”.

“De qué callada manera”

“Guitarra en duelo mayor” e “No sé por qué piensas tú” não são seus únicos versos musicalizados. Pablo Milanés levou ao pentagrama onze poemas de Guillén, entre eles a canção “De qué callada manera”, uma das mais populares do cantor e autor da Nova Trova

“¡De qué callada manera
se me adentra usted
sonriendo
como si fuera
la primavera!
Yo, muriendo”.

 

Como disse a acadêmica chilena Norma Castillo Eichin, os compositores não necessitavam modificar os textos do poeta, porque sua construção era rítmica e para transformá-los em canções bastava agregar-lhes melodia.

O próprio Guillén havia escrito:

“Tengo el alma hecha ritmo y armonía;
todo en mi ser es música y es canto,
desde el réquiem tristísimo de llanto
hasta el trino triunfal de la alegría”.

Guillén: Poeta Nacional de Cuba

O Poeta Nacional de Cuba, título que lhe foi concedido pelo governo de Castro, militou no Partido Comunista até o dia de sua morte, em 16 de julho de 1989, aos 87 anos; também dirigiu até o fim de seus dias a União de Escritores e Artistas de Cuba (Uneac), fundada em 1961.

Tratou de distanciar-se fisicamente no “caso Padilla”, ao não comparecer por “doença” na célebre sessão de “autocrítica” do poeta dissidente Heberto Padilla, convocada pela Uneac, mas não pode evitar o descrédito entre os intelectuais de todo o mundo.  

Decepcionado com o socialismo, Padilla havia ganho o prêmio nacional de poesia em 1971, convocado pela Uneac, por seu livro “Fuera del juego”, que foi considerado posteriormente como “contra revolucionário”. Detido com sua esposa, a também poeta Belkis Cuza Malé, foi formalmente acusado de “atividades subversivas”. Depois de 38 dias de reclusão, foi obrigado a se retratar de suas obras e ideias em uma humilhante “autocrítica”.

Simone de Beauvoir, Susan Sontag, Marguerite Duras, Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Juan Rulfo, Octavio Paz, Jean-Paul Sartre, Juan Goytisolo, Alberto Moravia e Mario Vargas Llosa, entre outros conhecidos intelectuais, acusaram o governo castrista de haver obrigado Padilla a renegar publicamente de suas ideias, no que consideravam uma “confissão” típica de um “julgamento estalinista”. A crítica alcançou Guillén. Também a ruptura. 

Por essa mesma época a saúde de Guillén começou a quebrantar-se por causa de graves transtornos cardíacos. Deixou de ir ao seu escritório na Uneac e à sede da Casa de las Américas, onde costumava se encontrar com escritores e jornalistas e se recluiu em seu apartamento do Vedado, em frente ao Malecón. Avesso a entrevistas, gostava de conversar com seus ocasionais interlocutores sobre seus temas favoritos, a política e a literatura.   

Seu amigo, o escritor argentino Armando Almada Roche, o recordava como um homem “simpático, doce, conversador incansável e sonoro como seus poemas”, com “uma lucidez extraordinária e uma vitalidade assombrosa”, “alegre como uma criança”.

Para o docente mexicano Gerardo Farías Rangel, era “um homem mais apegado às suas circunstâncias sociais”, moldado por “seu trabalho jornalístico, sua atitude anti-imperialista, a constante crítica social e sua militância política”.

Aos trinta anos de sua morte e aos 90 da publicação de seu primeiro livro, ninguém o recorda como o soldado disciplinado e abnegado da revolução castrista, como ele mesmo se definia, mas sim como o bardo que soube encontrar motivos poéticos no son cubano.

Juan Carlos Salazar del Barrio, Jornalista. Ex-diretor de Página Siete

Ilustração: Marcos Loayza

Tradução: Beatriz Cannabrava

Edição: João Baptista Pimentel Neto


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Juan Carlos Salazar del Barrio

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