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Trump flertou com a ideia de provocar uma crise constitucional e de detonar uma crise econômica (Foto: Casa Branca / Flickr)

Trump enfraquece instituições dos EUA e transforma caos em política do Estado

Diante do avanço autoritário, cresce, porém, uma resistência plural que une progressistas e conservadores em atos de solidariedade, cultura e afeto

David Brooks
La Jornada
Nova York

Tradução:

Beatriz Cannabrava

Uma recente capa da The Economist – revista da cúpula econômica mundial – resumiu perfeitamente a conjuntura dos EUA: “Faltam apenas 1361 dias”, com a imagem de uma águia americana ferida, vendada e com as penas caídas. O fim de março marcou os primeiros 100 dias do regime de Trump, e para muitos, aqui e em outras partes do mundo, isso que mal começou já é sentido como uma eternidade.

Tem sido um espetáculo político repleto de crueldade contra imigrantes – incluindo a deportação de crianças cidadãs estadunidenses, uma delas com apenas dois anos de idade – juntamente com ataques incessantes contra a mídia, universidades, escolas públicas, servidores públicos, artistas e instituições culturais, as ciências, o meio ambiente, juízes, promotores e até mesmo funcionários considerados críticos e desleais. Com isso, flertou com a ideia de provocar uma crise constitucional e de detonar uma crise econômica, enquanto desmantela o sistema econômico e político internacional criado em grande parte por Washington. Nada parecido ocorreu na história moderna do país.

O assalto frontal, vindo de dentro, contra aquilo que até recentemente era celebrado como o farol mundial da democracia, dos direitos humanos e da liberdade, gerou chamados à resistência não só por parte de setores e figuras progressistas, mas também de conservadores “tradicionais”, incluindo políticos, intelectuais e generais. Assim, nos últimos dias, o colunista conservador David Brooks, do New York Times (que roubou o nome deste que vos escreve), apelou por uma “insurreição cívica” contra Trump, enquanto analistas, líderes e políticos de esquerda como Bernie Sanders denunciam a entrega do poder aos oligarcas, que o tomaram. Repetem que os três homens mais ricos do país – convidados de honra na posse de Trump – possuem uma fortuna maior que a metade inferior da população do país, cerca de 170 milhões de pessoas.

O ritmo e o tom histérico do governo Trump, no qual todos que se atrevem a se opor são imediatamente proclamados inimigos do povo, antiestadunidenses e parte de um complô da extrema-esquerda, devem-se em parte a dois fenômenos que definem o futuro do país.

Primeiro, os Estados Unidos são cada vez menos anglo-saxões, machistas e protestantes por dentro. Até 2050, os brancos serão apenas mais uma minoria num país de minorias (ainda que a maior delas). A população do país não crescerá sem imigração; por ora, os imigrantes e seus filhos representam 26% da população nacional, e até 2050 serão 34%, segundo o Pew Research Center. Isso ajuda a explicar a motivação racista de tentar expulsar o máximo possível de imigrantes não brancos (por ora, o único programa para acolhimento de refugiados impulsionado por Trump é dedicado a fazendeiros brancos da África do Sul que, segundo o presidente, são maltratados por seu governo negro).

Segundo, os Estados Unidos são uma potência imperial em declínio. Talvez o resumo mais simples seja o do economista francês Thomas Piketty, que recentemente escreveu: “a realidade é que os Estados Unidos estão perdendo o controle do mundo”, um país agora guiado por um líder “instável e errático” que “é essencialmente nada mais do que um líder colonial frustrado”.

Em meio aos 100 dias de governo, o presidente – que inventou ter recebido um “mandato” esmagador (capturou apenas um terço do total do eleitorado) – é reprovado pela maioria dos estadunidenses, segundo uma média das principais pesquisas recentes, registrando um dos índices mais baixos para um presidente no início de seu mandato. De fato, na pesquisa da ABC News/Washington Post, conta com apenas 39% de aprovação, a taxa mais baixa para qualquer presidente nos seus 100 primeiros dias de governo em 80 anos.

“Caótico” é como 66% dos entrevistados pelo New York Times descrevem Trump; outros 59% o percebem como “sinistro”. Resta saber se essa desaprovação e os crescentes focos de resistência pelo país transformarão essa eternidade nos próximos 100 dias.

Atos de resistência

Ante a avalanche de notícias cruéis, obscenas, sádicas, cínicas – e às vezes certo humor demasiado bobo ou obscuro para se rir – que emana do novo regime estadunidense encabeçado pelo perigoso bufão na presidência, cada dia se torna mais essencial ter um pouquinho de ternura.

Retratos de deportados sem o devido processo legal e, portanto, inconstitucionalmente pendurados ao lado da Casa Branca como se fossem troféus de caça; uma menina de 2 anos que ficou abandonada quando seus pais foram detidos e expulsos do país; ofertas – como se fossem atos de enorme generosidade – das forças armadas para intervir em outro país; declarações do mandatário afirmando “não saber” se deve cumprir a Constituição; propostas e medidas para cortar gastos em educação, ciências e saúde pública; ameaças incessantes contra universidades e instituições culturais; alertas do Comitê de Proteção de Jornalistas de que a liberdade de imprensa no país está em xeque; sequestros, por parte de agentes do Estado, de estudantes estrangeiros que ousaram criticar a política externa deste país; preparativos para um desfile militar sem precedentes em Washington para celebrar o próximo aniversário do atual mandatário; e, como se faltasse algum absurdo, um tuíte oficial com a imagem do presidente gerada por inteligência artificial fantasiado de Papa.

Por outro lado, os atos de resistência – com os mais efetivos focados em se opor à criação de uma oligarquia – se multiplicam por todo o país e, embora ainda estejam longe de ser suficientes para frear o assalto direitista, estão formando uma oposição cada vez mais ampla.

Junto a grandes marchas, comícios e outras manifestações civis, realizam-se incontáveis pequenos atos de solidariedade e afeto – ou seja, ternura – com muitos que nem se consideram parte da “resistência”, mas que o são em essência.

Entre os atos de ternura cada vez mais comuns estão, por exemplo, amigos e aliados compartilhando versões de Bella Ciao – o original em italiano, mas agora também em chinês, árabe, inglês, entre outros. A ternura também se expressa com jovens que chegam pela primeira vez a uma marcha, uma manifestação, um ato de protesto, erguendo a cabeça e ouvindo um senador de 83 anos lhes lembrar que a luta dos mártires de Chicago, em 1886, continua atual, e que agora está nas mãos dessas novas gerações. Ou com a presidenta do sindicato de comissários de bordo, Sara Nelson, apontando para o céu com a mão e declarando, diante de manifestantes e ativistas, que daquele avião voando a 35 mil pés de altura, há uma comissária que está enviando abraços de solidariedade aos que estão na luta por democratizar este país.

Ou ainda, numa praça, uma criança de 6 ou 7 anos se encanta com um músico tocando um violino elétrico e começa a dançar; em uma cena da série “Mo”, num bar em Houston, um palestino, um afro-americano e uma mexicana fazem piadas sobre como sobreviveriam numa prisão se os agentes da migração prenderem o muçulmano. Uma poeta oferece seus versos em um pequeno centro de reuniões da esquerda e, mesmo que não seja muito boa, sua tentativa de compartilhar palavras faladas de dor e luta é aplaudida, inclusive por poetas que talvez se arrisquem na próxima vez. Ou aquela mãe que tenta tranquilizar o filho quando ele pergunta se os agentes da migração podem levá-la a qualquer momento e, com isso, se une – ainda que com medo, mas também com essa combinação de ira e amor – aos milhões que estão resgatando este país, dia após dia.

“Um dos elementos básicos da ternura é que é um ato livre”, comentou há anos John Berger. “É assim porque se escolhe ser terno e, diante de tudo o que nos rodeia, isso se torna quase um ato de desafio.” Agora, mais do que nunca, é urgente desafiar o que está acontecendo com um tantinho de ternura.

La Jornada, especial para Diálogos do Sul Global – Direitos reservados.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

David Brooks Correspondente do La Jornada nos EUA desde 1992, é autor de vários trabalhos acadêmicos e em 1988 fundou o Programa Diálogos México-EUA, que promoveu um intercâmbio bilateral entre setores sociais nacionais desses países sobre integração econômica. Foi também pesquisador sênior e membro fundador do Centro Latino-americano de Estudos Estratégicos (CLEE), na Cidade do México.

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