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ToggleDonald Trump nunca foi sutil. Três dias antes de assumir a presidência, ele emitiu uma criptomoeda de meme com a qual poderia ganhar bilhões de dólares ao deixar a Casa Branca. Sua esposa, Melania, vendeu os direitos para um filme biográfico à Amazon por 40 milhões de dólares, e na próxima semana legisladores republicanos estarão gastando milhões em um retiro em uma propriedade de Trump na Flórida.
“Grandes empresas sempre buscaram ganhar influência em Washington. Silenciosamente canalizam fundos através de associações empresariais e lobistas”, escreve Liz Hoffman no Semafor. “Mas Donald Trump não é tão sutil… um bazar ao ar livre substituiu o mercado ilegal de compra de influências”. O colunista Ezra Klein, do New York Times, resumiu em uma frase: “no mundo de Trump, tudo está à venda”.
A fortuna de Trump é calculada em aproximadamente 6 bilhões, segundo a Forbes, mas quando concluir seu mandato em quatro anos, é muito provável que esteja ainda mais rico. Durante sua primeira presidência, Trump ganhou 160 milhões de dólares com seus negócios no exterior, e desta vez tudo indica que ganhará muito mais.
A evidência mais recente sobre como lucrar com a política ocorreu em 17 de janeiro, três dias antes de sua posse, quando o presidente declarou: “É momento de celebrar tudo o que defendemos: ganhar! Juntem-se à minha comunidade muito especial Trump. Obtenham seus $Trump agora”. O preço dessa criptomoeda disparou para 75 dólares em dois dias, o que implicava que as moedas em posse de Trump poderiam valer até 50 bilhões. Ele não pode vendê-las por três anos e, nesta segunda-feira (27), elas já haviam se desvalorizado para apenas 28 dólares cada. Fato é que o lançamento de sua moeda gerou controvérsia.
“Eu prevejo agora. Estamos prestes a entrar em uma era de fraudes antes inimaginável. Fraudes que surpreenderão e encantarão. Fraudes com pequenas fraudes secundárias agregadas. Os Estados Unidos ingressaram em sua era de corrupção sem escrúpulos, e minha aposta é que o entusiasmo de Trump nesse campo nos atingirá a todos”, escreve a jornalista de tecnologia Nellie Bowles no Free Press.
E toda a família Trump participa. A primeira-dama, Melania Trump, também lançou sua própria criptomoeda de meme e vendeu à Amazon Prime Video os direitos para produzir um olhar dos bastidores da Casa Branca por 40 milhões de dólares. Por outro lado, os negócios de hotéis e imóveis administrados por seus filhos deixaram claro que não vão parar de assinar novos contratos internacionais enquanto o patriarca estiver na Casa Branca.
“A escala da corrupção será de uma ordem de magnitude maior do que vimos no primeiro governo de Trump”, comentou a professora Kathleen Clark, da Escola de Leis da Washington University, à agência Associated Press. Claro que os democratas criticaram o presidente por tudo isso. “Trump deveria estar focado em reduzir custos para os estadunidenses, e não em enganar a população para obter suas economias e lucrar com o valor das criptomoedas para ele e sua família”, declarou a senadora democrata Elizabeth Warren em entrevista ao The Guardian.
Neste contexto, a demissão de pelo menos 12, e talvez até 18, inspetores gerais realizada por Trump na noite da última sexta-feira (24) provocou alarme, já que entre as tarefas desses funcionários federais está o monitoramento de fraudes, abusos e corrupção. O cargo de inspetor-geral foi criado no final dos anos 1970 como parte das reformas pós-Watergate, com o objetivo de instalá-los nas secretarias e em outras partes do poder executivo com certa independência. A senadora Warren afirmou que “Trump está desmantelando controles sobre seu poder e pavimentando o caminho para uma grande corrupção”.
Ao mesmo tempo, talvez para enviar outra mensagem a quem se atreva a investigar seus negócios presidenciais e atos políticos, o Departamento de Justiça ordenou a demissão de mais de 12 procuradores que participaram de investigações sobre possíveis delitos cometidos por Trump nos últimos anos.
Enquanto isso, mesmo com o empresário já instalado na Casa Branca, diversos grupos de apoio oficial a Trump continuam vendendo todo tipo de produtos com sua imagem e/ou assinatura, desde sua “Bíblia Deus Abençoe os EUA” por 59,99 dólares cada (sendo que milhares delas foram impressas na China, país que Trump acusou de roubar tudo e de ser um parceiro comercial injusto) até camisetas “oficiais” com o lema “Golfo da América” por 47 dólares, com os fundos revertidos para seu movimento MAGA.
E, por fim, apesar de ter vencido a eleição e de a lei, por ora, proibir sua reeleição, doadores ricos com interesses empresariais ou pessoais continuam contribuindo milhões para a causa de Trump por meio de seus diversos comitês políticos. Alguns calculam que, até o verão, ele terá mais de 500 milhões de dólares para usar em seu benefício político durante sua presidência — incluindo o financiamento de campanhas contra seus inimigos ou críticos, segundo reportagem do Axios.
“O negócio dos Estados Unidos é o negócio” é uma frase repetida durante décadas (atribuída erroneamente ao presidente Calvin Coolidge há um século). Mas agora parece que o negócio é de um presidente e de seus amigos bilionários.
10 mil tropas na fronteira
O governo de Donald Trump tem planos de enviar até 10 mil tropas militares ativas à fronteira com o México e duplicar a capacidade de seus centros de detenção de migrantes. Ele já ordenou aos agentes da Patrulha Fronteiriça que neguem o direito ao asilo e deportem todos que cruzarem de maneira não autorizada.
Uma nova equipe de trabalho sobre “cidades santuário” no Departamento de Justiça está preparando casos contra medidas de proteção a migrantes e ameaça investigar funcionários municipais que se atrevam a desafiar as ordens federais para o controle migratório.
Meios direitistas começaram a publicar fotos e vídeos “vazados” de imigrantes que supostamente foram presos desde 20 de janeiro.
Agentes da Patrulha Fronteiriça receberam na semana passada instruções por escrito para deportar rapidamente imigrantes mexicanos após registrarem suas impressões digitais, segundo diversos meios de comunicação estadunidenses. “Os agentes foram instruídos a deter qualquer migrante não mexicano para deportação por via aérea, em vez de retorná-los ao México”, publicou o Washington Post. “Aos imigrantes indocumentados não será permitido ver um juiz de imigração ou um oficial de asilo sob a ordem de Trump, o que, na prática, suspende as obrigações dos Estados Unidos perante a legislação doméstica e internacional para garantir que pessoas fugindo da perseguição não sejam devolvidas ao perigo”, reportou a CBS News.
Como parte do esforço do novo governo para demonstrar que está agindo rapidamente em relação às suas promessas anti-imigrantes, a secretária de imprensa da Casa Branca, Carolina Leavitt, informou a jornalistas: “Trump assinou uma ordem executiva enviando 1.500 tropas à fronteira”. Essas tropas militares se somarão às 2.200 já enviadas para apoiar as atividades da Patrulha Fronteiriça. Essas tropas são adicionais às da Guarda Nacional de vários estados, que também desempenham funções na região fronteiriça.
Um memorando interno do serviço de Aduanas e Proteção Fronteiriça (CBP), obtido pela CBS News, sugere que o governo pretende aumentar o número de tropas militares na fronteira com o México para um total de 10 mil. Em sua ordem executiva assinada na noite de 20 de janeiro, Trump apresentou uma visão ampliada do papel dessas forças, que pode incluir a detenção de migrantes em bases militares, o transporte de detidos para várias partes do país ou de volta a seus países de origem, entre outras novas funções.
O serviço de imigração também identificou quatro instalações com capacidade para 10 mil camas, além de outros 14 locais menores, com capacidade entre 700 e mil pessoas, que poderiam ser utilizados como centros de detenção. No total, segundo o Washington Post, esses espaços adicionais dobrariam a capacidade atual, chegando a quase 100 mil vagas.
Em 21 de janeiro, o Departamento de Justiça enviou um memorando a promotores federais ao redor do país, ordenando que iniciem investigações contra qualquer oficial de segurança pública local ou estadual que se recuse a colaborar com as políticas de imigração do governo federal, reportou o New York Times. Várias cidades, incluindo Los Angeles e Chicago, têm leis locais que proíbem que agentes de segurança pública cooperem com o serviço de imigração federal na perseguição de imigrantes indocumentados.
O czar fronteiriço, Tom Homan, comentou à Fox News em 22 de janeiro que a agência federal de imigração (ICE) prendeu mais de 308 imigrantes indocumentados criminosos. “Alguns eram assassinos, outros estupradores”, afirmou Homan. Ele reiterou que a prioridade, por enquanto, é a prisão de imigrantes que sejam criminosos violentos, mas que qualquer pessoa sem documentos neste país está sujeita à prisão. Redes sociais direitistas divulgaram vídeos que alegam mostrar prisões de imigrantes criminosos, mas o La Jornada não pôde confirmar a veracidade das imagens.
Ao mesmo tempo, o Congresso enviou a Trump o primeiro projeto de lei de sua presidência para promulgação, e trata-se de uma legislação sobre migração. A lei, aprovada por toda a bancada republicana e 46 democratas, obriga o serviço de imigração a deter qualquer imigrante indocumentado acusado de um delito, mesmo os menores, e a preparar sua deportação. Diferentemente do passado, um imigrante não precisaria ser declarado culpado de um crime, mas apenas acusado, para estar sujeito à chamada Lei Laken Riley.
Todas essas medidas aumentaram a tensão e o temor entre as comunidades imigrantes ao redor do país. Em 22 de janeiro, legisladores do Cáucus Progressista do Congresso, incluindo os deputados Greg Casar – presidente do grupo –, Ilhan Omar, vice-líder, e Jesús Chuy García, também integrante da liderança do cáucus, condenaram as ações anti-imigrantes. “Estamos apelando para que Trump apresente soluções reais, não propaganda para alimentar o medo e o caos”, declarou García.
Por sua vez, a União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU) apresentou uma nova ação judicial para barrar a decisão do governo de acelerar as deportações sem um processo legal justo. “Pessoas vivendo em comunidades nos Estados Unidos correm o risco de serem separadas de suas famílias e expulsas do país sem nenhum recurso legal. Isso é um ataque contra comunidades, contra nossa Constituição e contra os valores fundamentais dos Estados Unidos”, declarou Anand Balakrishnan, advogado do Projeto de Direitos de Imigrantes da ACLU.
Bilionários perdem de vez a vergonha
No passado, os multimilionários deste país se mantinham amavelmente à margem, às vezes entre sombras, para evitar aparecer de forma demasiado aberta com as cúpulas políticas, tanto democratas quanto republicanas, às quais confiavam a proteção de seus interesses. Mas, na semana passada, os multimilionários não precisaram ser tão modestos, e os homens mais ricos do mundo tiraram as máscaras ao ocupar os lugares de destaque na posse oficial do novo presidente.
A riqueza líquida combinada dos homens ricos (e sim, todos eram homens) convidados a se sentar no palco atrás de Donald Trump em sua cerimônia de posse foi calculada em mais de um trilhão de dólares. Enquanto isso, o governador do Texas e herói das forças anti-imigrantes do país, Greg Abbott, entre outras figuras proeminentes aliadas do presidente, foram relegados a uma sala remota do Congresso para assistir à cerimônia por meio de telas de televisão. Até mesmo membros de seu gabinete em formação foram acomodados atrás dos ricos.
Os multimilionários Elon Musk, Jeff Bezos e Mark Zuckerberg – os três indivíduos mais ricos do planeta – chegaram a levar suas esposas e/ou namoradas ao evento. Também foram convidados a se sentar no palco da Rotunda do Capitólio, próximos a Trump, os executivos-chefes do Google, Sundar Pichai, e da Apple, Tim Cook. Musk já faz parte do novo governo, com a tarefa ambígua de buscar formas de reduzir o orçamento federal, e diz-se que ele até terá um escritório dentro da Casa Branca – tendo passado vários dias durante a transição no clube-residência de Trump, Mar-a-Lago –, mas não se sabe por quanto tempo permanecerá nesse cargo (ou até quando o presidente e o multimilionário se suportarão).
Talvez o melhor resumo da estreia da nova presidência seja a caricatura na capa da revista The New Yorker, na qual um Musk sorridente, com a figura de Trump mal visível ao seu lado, tem uma mão levantada e a outra – junto com a de Trump – sobre uma Bíblia, fazendo o juramento presidencial. “Em 20 de janeiro de 2025, o próximo líder dos Estados Unidos – e do mundo livre – assume o poder. Também nesse dia, Donald Trump prestará juramento”, explicou Barry Blitt, o caricaturista responsável pela capa.
Trump é o presidente, mas não escondeu o fato de que as elites tecnológicas, cujas plataformas foram fundamentais na disseminação das mentiras e distorções promovidas por ele e seus simpatizantes, também são seus “amigos”, assessores e, obviamente, aqueles que esperam ser beneficiados pelo novo mandatário. No segundo dia de sua presidência, sua primeira entrevista coletiva foi concedida ao lado de Larry Ellison, o multimilionário dono da Oracle, para anunciar um novo investimento de 500 bilhões de dólares em centros de dados de inteligência artificial.
Também vale destacar que uma dúzia dos indicados para altos cargos no novo governo são multimilionários (incluindo Musk).
“Nossa oligarquia de tecnologia exerceu seu poder muito antes desta semana. E esse poder provém de mais do que apenas a liderança republicana”, explica Chris Mills Rodrigo, do projeto Inequality do Institute for Policy Studies (IPS). Afinal de contas, o presidente Obama concedeu à empresa Tesla, de Musk, quase 500 milhões de dólares em seu estímulo de 2009, e Biden resgatou o banco em apuros Silicon Valley Bank apenas no ano passado. Mas a designação de assentos é a prova mais clara até agora de que um pequeno grupo de multimilionários, enriquecidos por um mercado tecnológico em expansão, agora goza de uma influência política significativa.
Não é de se estranhar, então, que entre as primeiras ordens executivas assinadas pelo novo mandatário em seu primeiro dia estivesse o anúncio explícito de que os Estados Unidos se retirariam de um acordo da OCDE para uma taxa mínima de imposto corporativo de 15%. No segundo dia no cargo, o novo presidente reuniu-se com o Congresso para elaborar estratégias sobre como renovar os cortes de impostos para os ricos, que expiram no final de 2025, além do fato de que todos sabem que as empresas desses milionários lucram com contratos multimilionários com o governo federal.
Mas a exibição tão pública e explícita da relação entre o presidente e os multimilionários surpreendeu até mesmo o senador Bernie Sanders, a figura política mais crítica do 1% mais rico e de seu poder político. “Quando comecei a falar sobre oligarquia, muita gente não entendia o que significava. Bem, isso mudou. Quando os três homens mais ricos dos Estados Unidos se sentam atrás de Trump em sua posse, todos entendem que a classe multimilionária agora controla nosso governo. Temos que lutar contra isso.”
Ao retornar da cerimônia, a senadora democrata Elizabeth Warren destacou que, em seu discurso, Trump falou sobre tomar a Groenlândia e o Canal do Panamá, mas não mencionou o custo da saúde nem a redução do preço dos alimentos. “Os multimilionários pagam milhões para sentar-se na primeira fila, à frente até mesmo dos indicados ao seu gabinete. Isso diz bastante sobre quem estará dando as ordens.” Ela concluiu que “Trump é muito bom em nos distrair com caos para poder impulsionar políticas que tornarão a vida dos trabalhadores mais difícil e melhorarão a vida dos multimilionários.”
Entre as últimas palavras oficiais de seu discurso de despedida na Casa Branca, cerca de cinco dias antes de concluir seu mandato, o então presidente Joe Biden declarou: “Quero advertir o país sobre algumas coisas que me preocupam muito: a concentração perigosa de poder nas mãos de um pequeno grupo de pessoas ultrarricas. Hoje, uma oligarquia de riqueza extrema, poder e influência está se formando nos Estados Unidos, o que ameaça diretamente nossa democracia, nossos direitos e liberdades básicas, e a igualdade de oportunidades para todos.”
Ele sabe do que está falando, já que essa classe multimilionária multiplicou suas fortunas durante sua presidência: a riqueza dos 12 estadunidenses mais ricos aumentou em mais de 1,3 trilhão de dólares entre março de 2020 e dezembro de 2024, um crescimento de 193%, chegando a um total que supera 2 trilhões, segundo o relatório do inequality.org do IPS.
A estreia desta presidência oferece uma imagem política nacional que deveria ser contraditória: um presidente (também multimilionário) que se proclama populista e promete resgatar o “sonho americano”, cercado por um seleto grupo de seus amigos megarricos.
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