O final de semana foi agitado. Não só pela estreia da seleção feminina de futebol na Copa do Mundo, mas sobretudo pelo vazamento, no final da tarde do domingo (09), de conversas entre o ex-juiz federal e hoje ministro da Justiça, Sérgio Moro, e o procurador federal Deltan Dallagnol. O caso representa, na visão do jurista Belisario dos Santos Júnior, “um tsunami” que poderia levar à anulação do processo contra o ex-presidente Lula.
Santos é formado em direito pela Faculdade do Largo São Francisco da USP, foi membro da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB, é ex-secretário de Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo durante a gestão Mário Covas (PSDB) entre 1995-2000. Atualmente é membro da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e integra a Comissão Internacional de Juristas, com sede em Genebra, na Suíça. Em entrevista concedida nesta segunda-feira (10) à revista Diálogos do Sul, esclareceu que a defesa deve ter a mesma condição que a acusação. Se um juíz não é independente, “o esquema do sistema acusatório se desfaz”.
Questionado sobre a possível ilegalidade das provas utilizadas pelo The Intercept (já que elas foram — supostamente — conseguidas por meio de um hackeamento ilegal), o jurista diz ver com simpatia as revelações. Para ele, “agentes públicos têm um direito a privacidade atenuado, eles devem cumprir as leis. E o caso revela que eles assim não fizeram”, logo, não há problema na divulgação dos conteúdos. Na sequência, publicamos a íntegra do vídeo e a transcrição da entrevista:
Assista:
Ou leia a íntegra da entrevista:
Diálogos do Sul: Toda essa discussão começou com a relação entre o Moro e Dallagnol, mas é interessante entendermos e explicarmos melhor qual é a relação que deve haver entre um juiz e um promotor e por que os vazamentos mostram, no mínimo, uma coisa muito imoral?
Belisario dos Santos Junior:O Brasil adotou o sistema acusatório. No sistema acusatório, o juiz é uma pessoa absolutamente imparcial, ele fica distante das partes e, nesse sistema, prevalecem algumas garantias. Ou seja, a prova deve ser produzida por quem acusa e, do outro, lado estará a defesa que se oporá à acusação com os meios de prova e os princípios que a lei e a Constituição admitem, e nesse meio estão os juízes. Os juiz atua com imparcialidade, ainda que com independência. Essa imparcialidade termina quando o juiz emite a sentença, esse é o momento.
Senado Federal
Vazamentos colocam em dúvida futuro de Moro
O acusador acusa, o defensor usa os meios. E esses meios, essas garantias funcionais, são garantias absolutamente importantes pro devido processo legal. Ou seja, o processo não pode ser fora da legalidade. Nada no processo pode ser ilegal, a defesa deve ser a mais ampla possível no direito brasileiro, digo a ampla defesa, não a ampla acusação, e o possível do contraditório. O princípio do contraditório, de certa forma, a defesa tem que ter as mesmas possibilidades que têm a acusação.
Nesse quadro, o juiz tem que ser independente e se o juiz não for independente, esse esquema todo do sistema acusatório se desfaz.
Quando você falou que o sistema se desfaz, então ele é nulo?
Sim. Quando o juiz e o The Intercept parecem dar a entender isso, esses e-mails, a origem deles está sendo apurada, mas o que me parece que está claro até agora é que os promotores não negaram as mensagens, nem o juiz. Então, é possível que as imagens sejam verdadeiras, se elas forem verdadeiras, o que acontece é que o princípio da ampla defesa foi completamente prejudicado.
O princípio da independência do juiz cai por terra. Por quê? O juiz que combina com o promotor o que deve acontecer durante o processo, fora dos altos, está prejudicando a defesa, que não está sendo consultada. É muito frequente, mas quando o juiz faz isso de uma forma, eu diria, oculta, em uma comunicação entre amigos, isso não é um processo judicial. Aliás, parece que isso ocorria de uma forma absolutamente clara, eram amigos — e nada contra o juiz ser amigo do promotor —, mas quando ele usa isso para, ao invés de conduzir o processo de forma legal, que é base do estado de direito. O processo judicial existe para cumprir as leis, para adaptá-las. E quando isso falha, para fazer o jogo de grupo de amigos, ainda que com uma certa intenção de acertar, isso está completamente equivocado.
Eu li no The Intercept, ninguém me contou, conversas em que os promotores diziam como proceder para que Lula [ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva] não pudesse interferir na eleição. Então, [eles combinam:] ‘vamos conceder a entrevista sim, mas depois da eleição’. E por quê? Para uma finalidade que eles dizem claramente: não eleger um candidato do Lula.
Quando o poder judiciário funciona, mas não para o interesse da sociedade, ainda que com a melhor das intenções, isto faz com que o interesse de grupos norteie a atuação de uma instituição e isso viola o Estado de Direito e vários princípios. Quando um juiz combina com um promotor como deve ser conduzido o processo, como conduzir um direito de forma que ele se cumpra, — não no momento em que ele seria necessário, mas depois, para causar menos efeito em uma situação política — isto faz com que a justiça se faça em atenção ao interesse de um grupo. Eu repito: ainda que o grupo tenha boas intenções, isso não importa. Quando é o grupo que orienta os interesses da justiça, todos os princípios estão fadados a caírem por terra e, nos termos do Artigo 564, do Código de Processo Penal, sendo suspeito o juiz, o processo é nulo.
Por que o juiz é suspeito? Porque fez acordos com o Ministério Público. Ele descumpria oa princípioa da independência, do que nós chamamos de “Paridade de Armas” — o famoso autor, o juiz brasileiro, hoje advogado Marco Nahum usa essa expressão, que significa que o promotor foi tratado de uma forma mais benévola que a defesa, teve acesso a mais coisas. E o problema, no processo do ex-presidente Lula — e eu sei disso porque atuei no processo a pedido da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] — quando o Moro grava 400 entrevistas de advogados e seus clientes que não tinham a ver com o caso, já ali mostrava que ele não estava agindo com Paridade de Armas. Então, nessa tônica, eu comparo a divulgação que ele dá aos vídeos da [ex-presidenta] Dilma Rousseff e Lula… O vídeo foi divulgado na forma que não era certa, daquelas conversas se extraíram pautas menos republicanas do que o desejável.
Agora, quando se vê isso, a tensão não deve ser dada a quem procedeu a interferência. Não desmentidas as conversas, elas falam claramente. Os ministros do Supremo Tribunal Federal falaram em off para a imprensa hoje que estão extremamente incomodados, porque isso conduz claramente à nulidade de um processo que já se julgava acabado.
O Supremo não é conivente nesta história toda? Ao negar, inclusive habeas corpus, o Supremo está sendo conivente com o juiz acusador?
O Supremo Tribunal Federal, no episódio das gravações, das conversas de Lula e Dilma, censurou, na pessoa do falecido ministro Teori Zavascki, o juiz e determinou a destruição das gravações. O juiz descumpriu a ordem. Ele sabia, por duas comunicações da operadora, que aquele telefone não era do Instituto Lula, era de um escritório de advocacia e quando ele sabe disso, as gravações continuam sendo feitas e, portanto, de uma forma ilegal.
Esse tema de hoje revela, com todas as palavras, a ideia da falta de independência e da falta de compostura dos promotores e do juiz, que combinavam a sorrelfa, socapa e escondidamente como o processo ia seguir. Os advogados estavam marginalizados dessa conversa, isto joga ilegalidade no processo, durante o qual essas gravações foram feitas. É uma coisa pouco republicana, escandalosa, por isso está repercutindo em vários lugares.
Eu não sei se o Supremo vai compactuar com o juiz. Não há nenhum pedido para incidir sobre o processo. É matéria de revisão criminal, matéria de habeas corpus. De repente, você descobre que o juiz não é independente. De repente, você descobre que há atuação dos fatores para atuar contra o partido político ao qual o ex-presidente Lula pertencia. Isso mancha o processo.
Eu não vou entrar no mérito das provas. Agora, sobre essas conversas do The Intercept, eu tenho grande simpatia pela revelação de fatos que a cidadania deve saber. Por quê? Porque os agentes públicos têm um direito à privacidade atenuado, eles devem cumprir as leis.
Um dos promotores, talvez o que mais apareça na mídia [Deltran Dallagnol], revela certa desconfiança, um certo desconforto com a história da prova, de que elas tivessem relação com a Petrobras. Porque se elas não tivessem relação com a Petrobras, esses fatos deveriam ser apurados em São Paulo, porque é onde Lula morava e é onde estão o sítio e o apartamento. Então não tem nada a ver com Curitiba, salvo este item, sobre o qual se sabe agora, que os promotores não tinham nenhuma convicção sobre o caso. E aliás, o juiz afirma na sua sentença que o caso não tem a ver com a Petrobras, o que é uma coisa grave do ponto de vista da competência. Mas eu acho que isto tudo vai produzir uma comoção.
Eu estava lendo [o escritor português] Valter Hugo Mãe ontem e o romance que o levou a um prêmio importante tinha um prefácio de Saramago que dizia: ‘esse livro é um tsunami!’. Então, a gente pode comparar essas revelações do The Intercept, são um tsunami nesse processo. Esse processo começa por ter a nulidade, inclusive muitos juristas ouvidos dizem que Dallagnol e Moro podem não ser punidos: tudo bem, mas o processo vai ser manchado.
Gostei da imagem do tsunami, porque realmente, se a gente levar isso a sério, ele anula até a eleição…
Eu não concordo… O que aconteceria se houvesse a entrevista [de Lula vetada pela Justiça no período eleitoral]? Isso é um fato indireto que anularia a eleição? Eu acho que não. É um fato que não diz respeito a nenhum dos candidatos, nenhum deles pode ser responsabilizado por isso. Coloca uma dúvida na eleição, mas não ao ponto de anulá-la. Não se trata de abuso de poder, nada disso, isso não levará à anulação das eleições, mas ela [a revelação] é um tsunami, porque leva à anulação do processo, a meu ver.
Algumas pessoas que saíram em defesa do Moro, da Lava Jato, disseram que uma força tarefa é algo excepcional e, por isso, permite a coordenação entre juízes e procuradores, investigadores em uma ação coordenada porque é contra algo maior que, no caso, seria a corrupção. Isso é correto?
No direito penal democrático não. Talvez no direito de um regime autoritário possa acontecer isso. Nada é mais grave do que o atentado à democracia. Na democracia não há nada que seja excepcional, no direito de derrogar as leis. A corrupção é um fato grave e não é de hoje, não é de ontem, e sempre lidamos com isso. Nossa resposta ao crime é o Direito, o Pacote Penal, com a proteção da Constituição Federal. Não há qualquer possibilidade de justificar a excepcionalidade do crime com a diminuição da qualidade nos direitos do acusado, de forma nenhuma.
Então, no Direito do Código Penal democrático, e no sistema acusatório, o promotor acusa de acordo com o que ele deve acusar, o juiz preside a defesa faz a sua parte, tendo a seu favor todos os princípios inerentes do sistema condicional democrático e aos princípios de defesa. Não tem a menor possibilidade. Esse não é o Direito Penal da democracia, esse é o Direito Penal autoritário. A funcionalidade do caso não justifica um agir diferente.
Em determinadas situações de democracia [diz, em alusão ao período ditatorial latino-americano] haviam os juízes encapuzados e etc, por esta ou por aquela razão, mas isso na democracia brasileira não existe, não está previsto em lugar nenhum que uma situação de excepcionalidade possa fazer com que os juízes façam pouco do Código Penal que, inclusive foi o que os juízes e promotores fizeram. Pelo poder que eles têm, fizeram pouco do Direito Penal.
Em uma das falas do The Intercept, o Dallagnol fala para o Moro: ‘olha a repercussão das suas palavras’. Todos preocupados com a repercussão das palavras. O que é uma coisa triste, porque o que deve levar promotores e juízes a comemorar é quando o Direito se faz e ele se faz de acordo com as normas legais. A defesa, nesse caso, foi profundamente prejudicada. Eu participei, a pedido da OAB, quando verifiquei o episódio das gravações. E concluí que, após a ordem do Supremo Tribunal Federal de anular aquelas gravações, o juiz demorou um ano e meio, depois de saber que eram gravações ilegais, para tomar providências.
O tribunal Regional Federal do Rio Grande do Sul deliberou destruir as gravações, mas esquivou-se de qualquer conduta em relação a Moro. Talvez baseado nas intenções, mas veja, o Direito Penal não tem nada a ver com as boas intenções de um ou de outro. A lei deve ser cumprida, os direitos constitucionais devem ser exauridos. Então eu não acho que talvez Dallagnol ou muito menos Moro sejam punidos por essas questões. No Brasil, em situações excepcionais, quem leva a culpa é o porteiro. Então eles talvez não respondam por isso, ainda que as notícias da tarde de hoje sejam de que o Ministério Público esteja se preocupando em analisar a conduta dos promotores, dessa troca de informações, essa coisa partidária. Aliás, ela não era partidária, embora aja elogios aqui e ali, ela é contra um partido. Eles se moviam contra o partido de Lula, contra Lula. Essa é uma coisa que o Direito não respalda.
Todo esse vazamento foi obtido, provavelmente, ainda não temos informação, de uma forma ilegal, hackeamento… Nesse caso, quando essas informações não podem figurar como provas, qual o caminho legal. O que nós temos?
Eu reitero duas coisas que eu falei. A primeira é que os promotores não têm o direito de privacidade — como agentes públicos — igual ao que temos nós, cidadãos comuns. Eles têm o princípio da privacidade um pouco atenuado. E segunda coisa, o que prevalece no nosso direito é a ampla defesa, não a ampla acusação. Então é muito possível que isso seja usado na defesa do ex-presidente.
E dizer que isso é fruto podre de uma árvore de frutos podres — essa é a doutrina das nulidades — não funciona. O que é podre nessa história toda é essa conspiração entre promotores e juízes, muito mais importante do que quem terá hackeado, que não foi quem divulgou. Eu não tenho dúvida de que é mais importante que uma pessoa tenha sido condenada com base em provas do que dizer que ‘minha privacidade foi rompida’. O importante aí é o princípio do Estado de Direito e eu acho, com isso, com o que nós vimos e lemos hoje, que ele foi profundamente afetado.
* Colaborou Mariane Barbosa