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Arte: Valeriy Osipov / Flickr

Venezuela: a Ruanda latino-americana nos planos de Washington

Não surpreende que o imperialismo tente bloquear com guerra híbrida o caminho da Venezuela, um país onde manda o povo, e não os sobrenomes
Geraldina Colotti
Resumen LatinoAmericano
Roma

Tradução:

Ana Corbisier

A Venezuela volta a estar nas manchetes internacionais. Por que tanto interesse pelos acontecimentos de um país distante do “primeiro mundo”, se a maioria dos que falam dele nem mesmo sabem indicá-lo nos mapas geográficos? Por que tanta fúria e tantos “pronunciamentos” sobre o sistema que governa a Venezuela, inclusive por parte daqueles na Europa que estão totalmente desinteressados da política? A partir de que mecanismos se desencadeiam estas “paixões”?

Tentemos enumerar brevemente alguns pontos a este respeito, tanto do lado da burguesia como do lado de quem pretende combatê-la. Venezuela é um paradigma, um novo paradigma – econômico, político, simbólico – para o século 21. Um laboratório que também deve ser considerado por aqueles que mantêm os olhos fixos no modelo europeu.

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Venezuela é o ponto de fratura mais alto que se produziu no modelo capitalista depois da queda da União Soviética. Um exemplo concreto de que as coisas podem ser mudadas não só com as armas, mas com o voto, sempre que se assuma o custo de defender o programa proposto, ainda que se “limite” a algumas mudanças estruturais, combinando os princípios do socialismo com a vontade popular.

Não se pode subestimar a força do exemplo, decisivo durante o século 20 (o século das revoluções), em que todos os oprimidos pelo sistema capitalista “queriam fazer como na Rússia”. A força do exemplo, que o imperialismo tratou de destruir, distorcer ou ocultar, desenvolvendo um gigantesco aparato multifacético, como se viu contra Cuba, Nicarágua e Venezuela.

Venezuela “uma ameaça inusual”

É necessário refletir profundamente sobre o significado da motivação dada, em 2014, pelo democrata Obama para definir a Venezuela como “uma ameaça inusual e extraordinária à segurança dos Estados Unidos”, que deve ser esmagada com a imposição de medidas coercitivas unilaterais e ilegais. A ameaça do exemplo.

O perigo que vem da Venezuela – um país em que as esperanças do socialismo se renovam mediante a transmissão da memória histórica, a memória dos insurgentes, as novas gerações – é o de recordar às e aos comunistas da Europa a questão ineludível que está em jogo, pendente desde o grande ciclo de luta dos anos 70: por que toda esta força organizada foi destruída com a cumplicidade dos partidos reformistas de esquerda?

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Por que na Europa as forças alternativas não conseguiram abrir passagem nem com as armas, nem com as urnas? Por que, quando surgiu uma oportunidade, como ocorreu na Grécia, os líderes da esquerda decepcionaram as expectativas e terminaram ajoelhando-se ante as grandes instituições europeias?

E, sobretudo, por que até mesmo alguns recém-eleitos de esquerda nas instituições europeias mostram-se mais dispostos a defender “a democracia” dos golpistas autoproclamados do que a vontade das classes populares venezuelanas, e consideram o socialismo uma “ditadura”?

Um novo paradigma imperialista

Podemos identificar pelo menos três pontos de fratura principais, cruciais para a construção de um novo paradigma imperialista para o século 21: a guerra na ex-Iugoslávia, a guerra mais importante e sangrenta no velho continente desde o final da Segunda Guerra Mundial, que estourou no princípio dos anos 90; o massacre de Ruanda, que explodiu na África em 1994; e a involução do conflito histórico pelo direito a existir do povo palestino. A isto seguiu-se a destruição do Iraque e da Líbia, com o assassinato de Saddam Hussein e de Gaddafi.

A partir daí, tomaram forma alguns “axiomas” dominantes para impor a “balcanização” do mundo, a estratégia do “caos controlado” tão bem esboçada nos programas de relançamento da Otan. Enquanto isso, destaca-se o papel dos meios de comunicação nos conflitos, atuando como pioneiros nas guerras imperialistas.

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Nos Balcãs, tratava-se de turvar as águas, mostrar os mercenários a soldo do imperialismo estadunidense como “forças do bem”, e de projetar o papel de “autoridades imparciais” para os organismos internacionais subordinados a eles. Tratava-se sobretudo de chantagear aqueles que queriam analisar a situação baseando-se no choque de interesses no terreno, um choque de interesses geopolíticos para um novo controle do mundo sem a União Soviética. Nisto, na Europa, o caminho já havia sido aberto pelo pós-modernismo, que fazia parecer tema de dinossauros qualquer referência a conceitos marxistas que permitissem identificar o campo em que nos situar.

Vale a pena lembrar que na Itália existia então um governo dirigido por um ex-comunista, Massimo D’Alema, que decidiu uma intervenção armada com o apoio “bipartidista” de todas as forças políticas. Uma agressão que violou o direito internacional e o artigo 11 da Constituição italiana, em que se “repudia a guerra”, e que dará lugar a uma série de violações do direito internacional, realizadas em nome da chamada “comunidade internacional”.

Caos controlado e diferenças étnicas

Nas guerras dos Balcãs, para divulgar a estratégia do “caos controlado”, o imperialismo avivou as chamas das diferenças étnicas, que coexistiam pacificamente no socialismo. Em Ruanda tratava-se de ocultar sob a máscara do conflito étnico, devido ao suposto caráter “selvagem” dos negros, os termos de um confronto inter-imperialista determinado pela necessidade de que os EUA impusessem uma nova hegemonia e assumissem diretamente o controle sobre os recursos da África, sem a mediação de sócios europeus.

Mas, neste caso, o que mais é preciso destacar é o papel dos meios de comunicação, inclusive os populares – neste caso emissoras de rádio como a Rádio delle Mille Colinas – na hora de fomentar o ódio étnico, construir notícias falsas e prestar-se a divulgá-las para construir o “caos controlado”.

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Mesmo hoje, a esquerda é vítima dessa propaganda defeituosa e de uma subestimação neocolonial da história concreta dos países africanos. Ruanda é um Estado de terror, mas se vende ao mundo como um Estado exemplar, com um governo exemplar, para onde a Europa quis expulsar de suas fronteiras os imigrantes rejeitados. Assim como a entidade sionista, parece intocável.

Os meios de comunicação e as instituições internacionais tratam ambos com luvas de pelica, enfatizando um processo de “reconciliação” inexistente governado por forças internacionais. Uma narrativa inventada, inteiramente dirigida ao mundo exterior. Serve para dar via livre aos camareiros do imperialismo – e em particular a Paul Kagame, o presidente imutável de Ruanda, que se considera o “irmão de Benjamín Netanyahu” – para permitir ocupar pelo imperialismo a região do grande Congo, rico em recursos preciosos. Ambos aproveitam sua carta-branca para cometer genocídio, repetindo o papel de “vítimas do genocídio”.

O paradigma da “vítima merecedora”

O paradigma da “vítima merecedora”, aplicado também com a interpretação do “genocídio de Ruanda”, é, por outro lado, outra pérfida chave de interpretação do mundo, que vemos agir como um biombo frente ao genocídio palestino, enquanto se impôs o apartheid e a limpeza étnica.

O papel pioneiro dos meios de comunicação e do aparato de controle ideológico, muito sofisticado nas complexas sociedades europeias, ficou claro na construção do inimigo a derrotar, como no caso de Saddam Hussein e Muammar Gaddafi, úteis para fazer aceitar pela chamada opinião pública internacional mentiras grosseiras como as da ampola mostrada como prova de supostas “armas de destruição em massa”.

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No “laboratório bolivariano”, nestes 25 anos de existência da revolução popular iniciada por Chávez, foram experimentadas todas estas tentativas imperialistas: desde as chamadas “revoluções coloridas” inauguradas na ex-Iugoslávia, até a intoxicação midiática multiplicada pelo crescimento exponencial das redes sociais: espelho da grande concentração monopólica da propriedade privada no econômico, que reside em umas poucas mãos.

Que o ex-twitter de Elon Musk se tenha tornado a plataforma social de extrema-direita que apoia oficialmente as políticas xenófobas do ultraliberal Donald Trump, ficou claro durante a entrevista dos últimos dias com o magnata USA, de quem Musk é partidário e financiador oficial. Um dado que permite compreender os múltiplos ciberataques à revolução bolivariana, as ameaças do magnata da rede ao presidente Nicolás Maduro e seu apoio à golpista Machado, admiradora de Milei e de Netanyahu.

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O que deveria surpreender é a adesão de certos “democratas sinceros” europeus, inclusive alguns dos que se escondem atrás da “pureza anticapitalista”, ao campo golpista venezuelano e àqueles que o apoiam. E, verdadeiramente, parece que estamos revivendo o clima espantoso do massacre em Ruanda (e da propaganda nazista), observando a campanha de ódio e de linchamentos que se está estendendo nas redes sociais, inclusive na Europa: por exemplo, contra o ex-líder do Podemos, Juan Carlos Monedero, e contra o ex-presidente espanhol José Luis Zapatero.

Ambos são atacados porque se negam – aberta ou silenciosamente– a prestar-se a ataques neocoloniais contra a democracia venezuelana, que não aceita ser posta sob proteção, como gostariam de fazer os governos da União Europeia. “O povo da Venezuela é um povo pacífico, alegre e combativo. Os povos do mundo estamos dispostos e dispostas a defender suas decisões soberanas de qualquer tentativa de ingerência”.

ALBA lança campanha

Este é o objetivo da “Campanha global pela democracia e a soberania: EUA fora da Venezuela”, lançada da ALBA Movimentos, a Assembleia Internacional dos Povos, o Instituto Simón Bolívar e a Assembleia de Povos do Caribe, e que também é divulgada nas principais línguas que se falam na Europa – espanhol, português, inglês, francês e árabe.

Também da Europa, além de organizar manifestações e debates em apoio à revolução bolivariana, os povos respondem assim às poderosas estratégias políticas e diplomáticas que, a partir dos meios de comunicação hegemônicos, buscaram instalar uma ideia de ilegitimidade do recente processo eleitoral venezuelano. Não surpreende que o imperialismo tente bloquear o caminho dos povos com a guerra híbrida, e que esta guerra tenha se desencadeado com fúria contra a Venezuela, um país onde manda o povo, e não mandam os sobrenomes.

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A Venezuela – diz o comunicado da Campanha Global – tem um lugar privilegiado no contexto geopolítico regional e global: “por sua importância na produção mundial de petróleo, seus bens comuns postos a serviço do povo, pelo lugar que ocupa no mundo multipolar junto aos países emergentes, e claro, sua liderança de um projeto de união e integração regional na América Latina e no Caribe que dá continuidade à derrota da ALCA e mantém vivo o horizonte de soberania continental longe dos desígnios dos Estados Unidos”.

Da mesma forma, os povos sabem que a melhor defesa dos resultados eleitorais de 28 de julho é visibilizar precisamente a enorme força social que o projeto da Revolução Bolivariana tem consigo, e o enorme apoio popular que dos bairros, comunidades, comunas, no urbano e no rural, segue tendo o projeto inaugurado pelo Comandante Chávez em 1998 e que hoje o presidente Nicolás Maduro continua com êxito.

Enfrentar os ataques à Revolução Bolivariana

Só quem não sabe olhar de frente a luta de classes e as múltiplas formas em que a burguesia tenta impor sua hegemonia, mudando as cartas na mesa para distrair os setores populares de seus verdadeiros inimigos, podem ter uma atitude “tíbia” ante os ataques à revolução bolivariana. Ataques desencadeados por uma oposição golpista que busca conseguir pela força o que não pôde nas urnas, enquanto constrói novos mundos de fantasia com presidentes autoproclamados em redes sociais. E assim, inclusive alguns governos progressistas que experimentaram em primeira mão as consequências destas estratégias imperialistas hesitam em reconhecer a clareza do voto na Venezuela.

O sistema eleitoral na Venezuela continua sendo o mesmo, considerado à prova de fraude até por aqueles que o denigrem. O que mudou foi o equilíbrio interno destes governos, pressionados pelos distintos setores que pretendem derrubá-los e preocupados com as relações comerciais e geopolíticas com a Europa, os Estados Unidos e as grandes instituições internacionais. Por esta razão, a Campanha Global se dedica a desarmar alguns dos principais “argumentos” e esquecimentos seletivos que a partir até mesmo dos setores progressistas vieram se instalando desde 28 de julho: “com a certeza de que a única forma de preservar a paz que caracteriza o povo venezuelano, é defender a democracia e a soberania do país frente aos ataques que dos Estados Unidos, e dos governos alinhados com o imperialismo – na região e no mundo – continuam divulgando contra ela”.

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Enquanto isso, multiplicam-se os pronunciamentos dos observadores internacionais que avalizam a transparência e a integridade das eleições presidenciais, como fizeram da Espanha 50 acompanhantes de volta de sua visita à Venezuela que, por meio de um comunicado, condenam a ingerência externa dos governos da União Europeia.

Das “democracias” europeias, e com o respaldo de ex-chavistas, hoje prófugos da justiça nos países europeus, tenta-se repetir a farsa de uma nova “autoproclamação parte 2”, encabeçada por uma golpista que jamais respeitou a constituição bolivariana, Maria Corina Machado. Um personagem que age na rede de fascistas, organizadas a partir dos Estados Unidos para repetir a Conferência de Ação Política Conservadora (Cpac), a conferência anual dos conservadores estadunidenses, e que utiliza dinheiro público, como a “ajuda humanitária para os migrantes venezuelanos” para organizar a desestabilização.

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Uma admiradora de Milei e de Netanyahu que, sem dar uma data, acaba de anunciar a seus sócios europeus “o início de uma extraordinária campanha dentro e fora da Venezuela”, e de “uma estratégia super robusta” para pôr fim ao governo chavista. Enquanto isso, os governos da Europa, começando pelo da extrema-direita na Itália, que continua aprovando leis liberticidas contra os setores populares, denunciam “a repressão da ditadura chavista” contra os “anjinhos” que queimam e matam, em nome da “liberdade”.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Geraldina Colotti

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