De tempos em tempos o governo da Eslovênia faz algo que me deixa profundamente envergonhado de ser cidadão esloveno. Foi o que aconteceu agora. Como gesto de solidariedade a Israel, o governo esloveno (juntamente com os da Áustria e da República Tcheca) decidiu acrescentar às bandeiras eslovena e europeia hasteadas nas fachadas dos edifícios oficiais também a bandeira israelense.
A explicação oficial é que Israel está sendo atacada por foguetes vindos de Gaza e precisa se defender – nada do apelo mais usual por contenção mútua, apenas uma atribuição clara de culpa.
Mas a atual crise não começou com os foguetes de Gaza, começou na Jerusalém Oriental, onde Israel está mais uma vez tentando expulsar famílias palestinas. A frustração dos palestinos é facilmente compreensível: por mais de cinquenta anos (desde a guerra de 1967) eles estão presos em uma espécie de limbo na Cisjordânia, desprovidos de identidade, na condição de refugiados em sua própria terra. Essa protelação é do interesse de Israel: eles querem a Cisjordânia, mas não querem anexá-la diretamente porque, nesse caso, teriam que tornar os palestinos da Cisjordânia cidadãos israelenses. Por isso a situação simplesmente se arrasta – por vezes interrompida por negociações periódicas que um participante palestino soube descrever perfeitamente com uma imagem: ambas as partes sentam-se em lados opostos de uma mesa com uma pizza no meio, e enquanto conversam sobre como dividir a pizza um dos lados segue comendo-a sem parar…
A situação palestina encontrou sua expressão mais desesperada em uma série de ataques suicidas individuais contra judeus em Jerusalém alguns anos atrás – não havia nenhum movimento coletivo ou mente por trás deles, apenas o horror de não ter perspectiva alguma de saída.
Reprodução: Blog da Boitempo
Reprodução: Blog da Boitempo
Quando, para assinalar sua solidariedade aos palestinos que se manifestavam na Cisjordânia, o Hamas começou a lançar foguetes contra Israel, esse ato (que deve ser condenado) serviu muito bem aos interesses de Netanyahu. Foi o elemento que ele precisava para transformar um protesto genuíno e desesperado contra a limpeza étnica israelense na Cisjordânia em mais um conflito entre Israel e o Hamas, no qual Israel estaria simplesmente respondendo aos ataques de foguete (embora agora o próprio Netanyahu teve que admitir que a agitação civil em Israel é uma ameaça maior do que os foguetes vindos de Gaza).
Um dos pontos focais dos protestos é a cidade israelense de Lod, que conta com uma forte presença palestina. O prefeito da cidade chegou a comparar a situação a “uma guerra civil”. Uma reportagem do The Guardian descreve da seguinte maneira o cenário, marcado por gangues de ambos os lados aterrorizando indivíduos, famílias e comércios, inclusive com casos de linchamentos diretos:
“Israelenses judeus de extrema direita, muitas vezes armados com pistolas e operando em plena vista da polícia, se mudaram para regiões mistas esta semana. Em mensagens compartilhadas por um grupo supremacista judaico online, os judeus foram convocados a inundar Lod. ‘Não venha sem instrumento de proteção pessoal’, dizia uma mensagem.
As cidades israelenses de #Jaffa, Tel Aviv, #Lod, #Haifa e Acre, estão lotadas de manifestantes marchando pelas ruas
Muitos deles estão atacando pessoas árabes
O motivo alegado por eles, são os ataques do #Hamas que estão vitimando os cidadãos de #Israel pic.twitter.com/J8470s2liH
— Conflitos e Guerras (@ConflitoeGuerrA) May 12, 2021
Amir Ohana, o ministro da segurança pública, estimulou práticas de vigilantismo, anunciando na quarta-feira que ‘cidadãos de bem portando armas’ ajudavam as autoridades. Esses comentários foram feitos logo depois de um suposto atirador judeu ter sido acusado de matar um homem árabe em Lod. O ministro, sem apresentar nenhuma evidência, disse ter sido em legítima defesa.”
O aspecto mais perigoso da situação é que a polícia israelense parece estar abrindo mão até mesmo da preocupação de se fazer passar por um agente neutro da lei e da segurança pública – às vezes chegam a aplaudir turbas de judeus que aterrorizam palestinos. Em suma, o estado de direito está se desintegrando em Israel, pelo menos para seus cidadãos palestinos – eles estão cada vez mais abandonados à própria sorte, sozinhos, impossibilitados de recorrer a nenhuma agência superior que poderia intervir quando sofrem algum ataque.
Essa situação escandalosa é apenas uma consequência de algo que vem acontecendo em Israel nos últimos anos: a extrema-direita abertamente racista (que quer afirmar o que eles denominam obscenamente de “soberania total” de Israel sobre a Cisjordânia e trata os palestinos que lá vivem como intrusos indesejáveis) está sendo cada vez mais reconhecida como legítima e se tornando parte do discurso político público. Essa postura racista sempre foi, é claro, a base de facto tácita da política de Estado israelense: jamais admitida publicamente, era apenas a motivação secreta (embora conhecida por todos) da política de Israel, cuja posição oficial era (até recentemente) a do duplo Estado e do respeito às leis e obrigações internacionais.
No entanto, agora que esse verniz de respeito à lei está se dissolvendo, não basta dizer que chegamos à realidade que sempre foi a verdade por trás da aparência. As aparências são essenciais, elas nos obrigam a agir de determinada maneira, de modo que sem a aparência, a maneira como agimos também muda. A distância entre a aparência e a realidade sombria por trás dela permitiu que Israel se apresentasse como um Estado moderno de direito em contraste com o fundamentalismo religioso árabe, mas com a atual aceitação pública do racismo fundamentalista religioso, os palestinos são agora uma força de neutralidade secular enquanto Israel age como um Estado fundamentalista religioso.
O grande objetivo dos fundamentalistas judeus é reocupar o Monte, destruir a mesquita de al-Aqsa e substituir ela por um novo Templo, como o que lá havia antes de ser destruído pelos romanos (não pelos árabes). Ora, isso não lembra o que está ocorrendo na Índia, onde os nacionalistas hindus querem destruir mesquitas e erguer em seus lugares templos hindus? Não é à toa que a Índia agora desfruta de boas relações com Israel: Narendra Modi está perseguindo uma homogeneização étnica semelhante da Índia contra a minoria muçulmana.
O contexto mais amplo dessa escalada de acontecimentos em Israel torna o quadro ainda mais sombrio: primeiro na França, depois nos EUA, um considerável grupo de generais e oficiais do exército publicou uma carta alertando contra a ameaça à identidade nacional e ao modo de vida de seu país. Na França, a carta ataca a tolerância do Estado contra a islamização, e nos EUA, eles advertem sobre a política “socialista” e “marxista” do governo Biden. O mito do caráter despolitizado das forças armadas se esvai: uma parte considerável do exército apoia a agenda nacionalista. Ou seja, o que está acontecendo agora em Israel é parte de uma tendência global.
Mas o que isso significa para a identidade judaica? Como disse um dos sobreviventes do Holocausto: no passado, um antissemita era uma pessoa que não gostava de judeus; hoje, um antissemita é uma pessoa que os judeus não gostam – quais judeus? O título dado a um diálogo recente publicado no Der Spiegel sobre antissemitismo e o movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) foi: “Wer Antisemit ist, bestimmt der Jude und nicht der potenzielle Antisemit”.
“Quem determina o antissemita é o judeu, e não o potencial antissemita”. Ok, parece lógico: cabe à vítima decidir sobre seu status de vítima. No mesmo sentido que isso vale para uma mulher que alega ter sido estuprada, deve valer também para os judeus… mas há dois problemas aqui: O mesmo não deveria então valer para os palestinos na Cisjordânia? Eles não deveriam poder determinar quem está roubando suas terras e privando-os de seus direitos elementares? Quem é “o judeu” que determina quem é antissemita? E os inúmeros judeus que apoiam o BDS ou que, pelo menos, têm dúvidas sobre a política do Estado de Israel na Cisjordânia? No fundo, a posição citada não implicaria que, embora empiricamente judeus, em algum sentido “mais profundo” eles teriam traído sua identidade judaica? (Já fui ferozmente atacado como antissemita simplesmente por usar o termo “os judeus”…)
Carlo Ginzburg propôs a noção de que é o sentimento de vergonha do próprio país, e não o amor por ele, que talvez seja a verdadeira marca do pertencimento a ele.
Um exemplo supremo de tal vergonha ocorreu em 2014, quando centenas de sobreviventes e descendentes de sobreviventes do Holocausto compraram um espaço de anúncio no caderno de sábado do New York Times para veicular uma mensagem condenando o que eles chamaram de “massacre dos palestinos em Gaza e a ocupação e colonização em curso da Palestina histórica”:
“Estamos alarmados com a desumanização extrema e racista dos palestinos na sociedade israelense, que atingiu um tom febril”, dizia a nota. Talvez, hoje, alguns israelenses reúnam a coragem para sentir vergonha diante do que Israel está fazendo na Cisjordânia e mesmo no interior de Israel – não, é claro, no sentido de vergonha de ser judeu, mas, pelo contrário, de sentir vergonha pelo que a política israelense na Cisjordânia está fazendo com o legado mais precioso do próprio judaísmo.
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