Antes mesmo de assumir, o presidente eleito anuncia iniciativas que evidenciam conduta oposta, hostiliza os mais importantes parceiros comerciais do Brasil e atrela os interesses nacionais à política bizarra de Donald Trump.
Há 38 anos, a Resolução 478 do Conselho de Segurança da ONU definiu como uma violação do Direito Internacional a manutenção de qualquer embaixada em Jerusalém, uma decisão que expressou impressionante consenso internacional. Desde então, apenas os EUA de Donald Trump e a Guatemala desrespeitaram a norma (o Paraguai até que tentou, mas recuou). A parte oriental de Jerusalém foi ocupada militarmente por Israel em 1967 e, depois anexada, o que nunca foi reconhecido pela comunidade internacional. Por conta disso, os países mantém suas embaixadas em Tel Aviv. Os governos brasileiros sempre seguiram essa orientação, inclusive os governos militares. A clássica postura de neutralidade do Itamaraty, aliás, credenciou o Brasil como um interlocutor legítimo em todos os esforços pela conquista da paz no Oriente Médio.
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O presidente eleito, Jair Bolsonaro, conversa com jornalistas após visita ao Comando da Aeronáutica. Foto Jose Cruz /Agencia Brasil
Perguntado sobre os efeitos da pretendida mudança, Bolsonaro disse: “Se o Brasil mudar a capital para o Rio de Janeiro, mudou, não tem problema. Eu não vejo um clima pesado de você mudar a embaixada em Israel, não vejo nenhum problema, tá OK? Não é questão de vida e de morte”. Que o presidente não veja problemas neste tema não é surpreendente. Isso é parte, aliás, do grande problema que o Brasil terá de lidar nos próximos anos. O fato é que o Brasil não ganha nada com a transferência da embaixada além da simpatia de Netanyahu e da extrema-direita israelense. Não satisfeito com esse anúncio, Bolsonaro também antecipou que o Brasil não reconhecerá a Palestina como Estado e que sua embaixada em Brasília deverá ser deslocada “por estar muito próxima do Palácio do Planalto”.
O alinhamento com os interesses de Israel desconstrói nossa tradição diplomática, isola o Brasil e tende a agregar grande prejuízo econômico. O Brasil é o primeiro produtor do mundo de carne halal (carne preparada segundo os preceitos islâmicos) e pode crescer muito nesse mercado estimado em 1,8 bilhão de consumidores. A estimativa é que o setor possa crescer 60% nos próximos dois anos, ampliando as vendas para a Indonésia. A postura de alinhamento com Israel produzirá retaliação comercial dos países árabes, o que só fará bem para as economias da Turquia, Argentina e Austrália.
Na verdade, a mudança da embaixada para Jerusalém é muito apreciada por grupos evangélicos dos EUA e do Brasil que aguardam pelo retorno do Messias (o outro, aquele que nunca defendeu a tortura e que nunca propôs a violência) para a “cidade sagrada”. A medida procura agradar a esses grupos e sinaliza que o fundamentalismo religioso terá um lugar proeminente nas ações do novo governo.
O presidente eleito também deu sucessivas declarações nada simpáticas aos chineses, chegando a declarar que “a China não pode comprar o Brasil”. Bolsonaro já havia feito questão de não ir à China em sua viagem à Ásia no início do ano, mas visitou Taiwan, país que os chineses não reconhecem. Essa visita, aliás, teve, para o governo chinês, o sentido de um tapa no rosto sendo que a embaixada da China comunicou a Bolsonaro, por escrito, que a visita a Taiwan era uma “afronta à soberania e à integridade territorial da China”. Bem, a China é segunda economia do mundo, o maior parceiro comercial do Brasil (intercâmbio comercial de 75 bilhões de dólares em 2017) e um país com o qual mantemos relações superavitárias. Ela está disposta a investir pesadamente em infraestrutura, o que pode viabilizar bilhões de dólares em projetos fundamentais para nosso futuro. Entre 2007 e 2017, mais de 100 empresas chinesas se instalaram no Brasil. Muito provavelmente, o Brasil só conseguirá alterar a realidade deplorável de sua infraestrutura se dobrar os investimentos no setor, o que significa saltar de 1,7% do PIB, para mais de 3%. Sem uma forte parceria com a China, isso não será feito. Qual o sentido, então, de sinalizar má vontade para com os chineses?
A explicação só pode ser encontrada na submissão à política externa norte-americana e na preponderância de um viés ideológico de um sujeito que saiu direto da Guerra Fria para a pós-modernidade, sem escalas. A ideologia comanda também a viagem ao Chile, que deverá ser o primeiro compromisso internacional do presidente eleito. A opção causou estranheza na Argentina, nosso principal parceiro comercial na América Latina, que tradicionalmente é o destino da primeira viagem dos presidentes brasileiros. Para azedar ainda mais o clima, Paulo Guedes respondeu à correspondente argentina Eleonora Gosman, do jornal Clarín, que nem a Argentina, nem o Mercosul serão prioridade do novo governo. Ainda acrescentou: “não estou preocupado em te agradar”. Qualquer funcionário em um Posto Ipiranga seria mais educado e diplomático. No Chile, o presidente eleito poderá conhecer um perverso modelo de Previdência Social que manteve apenas os militares no sistema estatal, que prejudicou muito as mulheres e favoreceu enormemente o setor privado. O autor dessa reforma imposta pelas baionetas é outro ídolo de Bolsonaro: Augusto Pinochet.
(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016)