Uma das legislações mais avançadas do continente em termos de combate ao monopólio e promoção da pluralidade e diversidade nos meios de comunicação, a Lei de Serviços Audiovisuais (26.522), da Argentina, completou uma década neste mês de outubro. Mas não há muito o que comemorar: em quatro anos de governo do mega-empresário Mauricio Macri, o setor viu derreter 4 mil postos de trabalho e a concentração midiática disparar, ampliando a hegemonia do grupo Clarín no setor.
Construída após um longo processo de debate público, com direito a marchas multitudinárias nas ruas do país, a chamada “Ley de Medios” foi sancionada em 2009, durante o governo de Cristina Kirchner. Judicializada pelo Clarín, muitos dispositivos que, na prática, desmontavam o monopólio da empresa, não saíram do papel.
“A Justiça já os protegia, mas Macri foi além e se utilizou de decretos arbitrários para garantir que a lei afetasse o menos possível os negócios do Clarín”, afirma Luis Lazzaro, coordenador da Coalizão por uma Comunicação Democrática, que aglutina a sociedade civil em torno do debate sobre a democratização da comunicação.
Um dos autores da lei em questão, Lazzaro explica como o governo conseguiu colocar a lei, construída para oxigenar o ecossistema midiático do país, a serviço de quem o domina.
“O macrismo agiu em duas frentes. Primeiro, moveu as peças para que o Clarín não precisasse se adequar aos tópicos da lei que o afetava. Para se ter ideia, o governo atrasou a concorrência das empresas de telefonia no mercado audiovisual, que era um dos grandes temores do Clarín. Aprovada em 2014, a Lei Argentina Digital passou a permitir que empresas de telecomunicações competissem com eles, que reinavam soberanos no setor”, afirma.
“Macri freou as empresas de telecomunicações por dois anos para consolidar as posições do Clarín, que saltou na frente e comprou grandes nacos deste setor”.
Kaloian / Cubadebate
É preciso fortalecer os meios alternativos, pois será a forma mais eficaz de criar uma conjuntura favorável para enfrentar o Clarín.
O governo também interferiu diretamente nas autoridades de aplicação da lei. Antes eram organismos om representantes federais, acadêmicos, trabalhadores e empresários, característica que Macri liquidou na base da canetada, substituindo por um diretório sob seu controle. “Sem nenhuma possibilidade de intervenção do Congresso, Macri colocou boa parte da lei à serviço da concentração, cruzando o audiovisual com a telecomunicação em benefício de um grupo em particular. Além disso, enquanto dezenas de veículos de pequeno e médio porte compartilham migalhas, o Clarín abocanha quase todo o bolo da verba publicitária oficial”, acrescenta Lazzaro.
O balanço do décimo aniversário da Ley de Medios parece ruim, mas conforme explica Lazzaro, piora. “Houve favoritismo por um player do mercado, abandono do caráter democrático e plural dos órgãos de fiscalização e isso ainda se soma à grave crise econômica atravessada pelo país. Mas não é só. Diversos meios e agências foram vítimas de perseguição por parte do governo”, denuncia, destacando os casos das agências C5N e Telam que, sob ataque, apelaram para demissões – só a Telam demitiu 357 funcionários – e terminaram totalmente esvaziadas.
“Os efeitos das políticas de Macri para o setor são brutais”, avalia. Diretor-executivo da TV Pública da Argentina durante o primeiro governo de Néstor Kirchner, no começo dos anos 2000, Lazzaro argumenta que além da sabotagem do governo de turno, há o fator crise econômica, com tarifaços recorrentes, que inviabilizam as atividades de muitas empresas. “Muitos veículos de pequeno e médio porte, e até mesmo agências notícias, fecharam as portas”. Segundo ele, “os serviços de tecnologia de informação são extremamente concentrados e os serviços satelitais estão, em boa parte, sob controle estrangeiro, como o caso da Arsat, criada pelos governos progressistas anteriores a Macri para interconectar o país onde o mercado não tem interesse e competir com posições dominantes do mercado”.
Com eleições marcadas para o domingo, 27 de outubro, o povo argentino terá a oportunidade de expressar a sua aprovação ou o seu rechaço ao governo Macri. Nas primárias, realizadas em agosto, o rechaço venceu de forma estrondosa – sete institutos de pesquisa distintos apontam que Macri pode perder ainda no primeiro turno. Mas em caso de vitória da chapa encabeçada por Alberto Fernández e com Cristina Kirchner como vice, o que esperar? “Se teremos um governo com vontade política para recuperar o mercado interno, distribuir a riqueza e colocar limites ao capital financeiro, ou seja, um governo progressista, inevitavelmente este governo precisará de uma política de comunicação que respalde sua agenda, pois é certo que encontrará uma oposição feroz e agressiva por parte dos grupos midiáticos”, alerta. “Primeiro, porém, é preciso ganhar a eleição no domingo”.
Para Lazzaro, ter uma visão liberal ou mesmo ingênua sobre os meios de comunicação é um erro que tem de ser evitado. “A visão liberal clássica é de que trata-se de um quarto poder. Mentira. É o primeiro, há muito tempo, na economia e na política. É preciso disputar a opinião pública e, só assim, haverá uma correlação de forças que permita voltar a avançar no combate ao monopólio”.
Diretor da Rádio Encuentro e presidente da Fórum Argentino de Rádios Comunitárias (Farco) no momento da sanção da Lei de Serviços Audiovisuais, em 2009, Nestor Busso relata que, além do enfraquecimento dos pequenos veículos e meios regionais, a perseguição aos meios divergentes, críticos a Macri, deram a tônica de sua política para o setor. “É o que está passando em toda a América Latina”, pontua. “O projeto do poder hegemônico, cujos interesses estão ligados às grandes potências estrangeiras, tem seus pés fincados nos grandes meios de comunicação. Espero que dêem uma trégua, mas certamente voltarão a fazer o que o próprio Clarín chama de ‘jornalismo de guerra’”.
De acordo com Busso, o momento é de reconstrução. “O importante, caso Fernández vença a eleição, é fomentar os meios locais em todo o território nacional, estimulando e fortalecendo as redes de comunicação alternativas, populares e comunitárias”, receita. “Hoje, isso é mais urgente que enfrentar os grandes grupos. É preciso fortalecer os meios alternativos, pois será a forma mais eficaz de criar uma conjuntura favorável para enfrentar o Clarín. No marco de 10 anos da lei, precisamos retomar o seu sentido original: expressar vozes diferentes e que todos falem”.
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O Coletivo de Comunicação Colaborativa ComunicaSul está cobrindo as eleições na Bolívia, Argentina e Uruguai com o apoio das seguintes entidades: Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé; Hora do Povo; Diálogos do Sul; SaibaMais; 6 três comunicação; Jaya Dharma Audiovisual; Fundação Perseu Abramo; Fundação Mauricio Grabois; CTB; CUT; Adurn-Sindicato; Apeoesp; Contee; CNTE; Sinasefe-Natal; Sindicato dos Metalúrgicos de Guarulhos e Região; Sindsep-SP e Sinpro MG. A reprodução é livre, desde que citados os apoios e o autor.
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