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11 anos após massacre, Paraguai reconhece direito dos agricultores a terras em Curuguaty

Mobilizados, os trabalhadores rurais estavam assentados ali desde 2004
Leonardo Wexell Severo
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

O presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez, sancionou nesta quinta-feira (22) o projeto de lei que reconhece os agricultores de Marina Kue, em Curuguaty, como legítimos proprietários de suas terras. Mobilizados, os trabalhadores rurais estavam assentados ali desde 2004.

Após uma intensa mobilização nacional e internacional, o projeto de lei já havia sido aprovado pela Câmara e pelo Senado, dando posse aos 1.748 hectares de terras às 160 famílias, respeitando as “raízes” de cada uma delas nos lotes.

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Há dois anos Marito tinha se negado a assinar a mesma medida, sabotando o Instituto Nacional de Desenvolvimento Rural e da Terra (Indert) e qualquer perspectiva de reforma agrária.

Localizada na capital do departamento de Canindeyú, Marina Kue (terras da Marinha, em guarani) esteve ocupada por um destacamento da Armada de 1967 a 1999, até ser invadida pela empresa Campos Morombi, do falecido “empresário e político” Blas Riquelme. Montado durante a ditadura do general Alfredo Stroessner (1954-1989), o milionário grupo Riquelme cresceu movido por despejos ilegais e torturas.

Confira matérias já publicadas pela Diálogos do Sul sobre Curuguaty

No caso das terras de Curuguaty, Riquelme argumentava ter direito a “usucapião” por ser o dono do local há 34 anos. Nada mais falso, como comprovei na condição de observador internacional cadastrado junto ao Tribunal de Sentença, em Assunção.

Sangrenta retirada

No dia 15 de junho de 2012, cumprindo ordens da empresa e dando as costas à legalidade, foi realizada a sangrenta retirada dos camponeses que ocupavam as terras e buscavam produzir alimentos. Com a “Justiça” de então irmanada com os grandes latifundiários – criadores de gado, plantadores de soja transgênica, narcotraficantes e cartéis transnacionais, como Bunge e Cargill – foram enviados 324 policiais fortemente armados com fuzis, bombas de gás, capacetes, escudos, cavalos e até helicóptero.

Segundo a versão dos agressores e de sua mídia, completamente desmentida pelos fatos, este verdadeiro exército teria sido “vítima de uma emboscada” por parte de 60 trabalhadores sem-terra, metade deles mulheres, crianças e anciãos com alguns facões, foices e espingardas velhas. Armas que, comprovadamente, sequer dispararam.

Mobilizados, os trabalhadores rurais estavam assentados ali desde 2004

Mateuverte/Wikimedia Commons
Marcha em 10 de dezembro de 2012 denuncia a destituição de Lugo e exige esclarecimentos sobre o Massacre de Curuguaty

O fato é que no “Massacre de Curuguaty” foram assassinadas 17 pessoas – 11 camponeses e seis policiais. Executada do alto por franco-atiradores, com adestramento de militares estadunidenses e de “técnicos” da CIA, a mortandade provocou o impeachment do presidente Fernando Lugo uma semana depois, no mesmo dia 22 de junho. “O cenário foi montado para servir de detonador do julgamento político expresso”, afirmou Lugo, líder que havia posto fim a décadas de desmandos e atropelos do governo colorado.

Conforme o professor de Direito Internacional da Universidade Católica de Assunção e ex-ministro Hugo Ruiz Díaz, “foi algo montado às pressas, completamente à margem da lei” para efetivar o golpe jurídico-midiático-parlamentar.

Além de afastar Lugo da presidência, o “confronto” colocou várias das lideranças atrás das grades por “homicídio doloso”, “associação criminosa” e “invasão de imóvel alheio”, condenando uma delas a até 35 anos de prisão e asfixiando o movimento pela reforma agrária.  

Associação de familiares e vítimas

A presidenta da Associação de Familiares e Vítimas do Massacre de Curuguaty, Martina Paredes – que teve os irmãos Fermín e Luis Agustin executados na carnificina – tornou-se ao lado de Dario Asunción, símbolo da resistência dos acampados. Martina agradeceu “a solidariedade que nos manteve animados e estimulados para que chegássemos até aqui”. “Estamos contentes, com mais de 300 hectares de mandioca, milho e vários outros produtos plantados, mas agora falta que o governo execute políticas públicas. Conseguimos chegar até aqui com o apoio de amigos, empresários e igrejas amigas, mas precisamos de estradas, escola e energia elétrica. Precisamos que o Estado cumpra o seu papel”, destacou. 

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Martina recordou que “a nossa linda comunidade foi tratada como ‘ovelha negra’, mas que dialogando e escutando uns aos outros conseguimos construir e chegar a essa vitória, que é uma conquista importante”. “Foi um processo que cansa e é pesado, tanto do ponto de vista econômico, como físico e mental. Mais do que nunca, para honrar a todos os que lutaram por esta terra, vamos seguir nesse caminho e perseverar”, asseverou.

O solo paraguaio, que produz alimentos para mais de 70 milhões de pessoas, permanece com parcela expressiva de seus 7,3 milhões de habitantes passando fome.

“Resistir e persistir”

Presa política da ditadura de Stroessner, referência na luta pelos direitos humanos e presença constante desde o começo da mobilização da comunidade agrícola, Guillermina Kanonnikoff afirma que “o mais importante é o valor da luta, da resistência das pessoas e a clareza das ideias”.

Guillermina recordou que “essas terras eram do Estado e se lutou por anos para que fossem repassadas para os seus legítimos donos, com insistência e persistência”. “Os 17 companheiros caídos nos deram força para continuar e fazer com que seu sangue não fosse derramado em vão”, frisou.

“Agora se inicia uma nova etapa de diferentes oportunidades”, apontou a ativista, “pois sabemos que para ser realizado, todo direito precisa ser exigido, senão o Estado não comparece”. “Esta é a principal lição: insistir e persistir para abrir caminho à vitória”, declarou Guillermina. “A partir de hoje, os direitos reais que estão na Constituição precisam se materializar em saúde, educação e políticas públicas, com presença real do Estado para os paraguaios e paraguaias desta terra. É isso o que precisamos em Marina Kue”, concluiu.

Leonardo Wexell Severo


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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