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5 anos após tragédia em Mariana, moradores vivem até hoje com descaso e negligência

Muitos dos atingidos, cansados de esperar tanto tempo, estão aceitando acordos que violam seus direitos, conforme revelado pela força-tarefa
Cristina Serra
Projeto Colabora
Rio de Janeiro (RJ)

Tradução:

O desastre da Barragem de Fundão, da mineradora Samarco, em Mariana (MG), começou em 5 de novembro de 2015 – quando matou 19 pessoas – e ainda não acabou. São 1.825 dias de uma tragédia que invadiu o cotidiano dos moradores da bacia do rio Doce, área quase do tamanho de Portugal. Eles convivem até hoje com o mesmo descaso e negligência que estão na origem do rompimento, simbolizados agora nos metais pesados que envenenam o rio, na falta de indenizações justas e no vazio dos povoados em ruínas.

Cinco anos depois do colapso da barragem, não há explicação plausível para as três comunidades mais devastadas não terem sido reconstruídas. Nem mesmo a pandemia serve de justificativa, considerando que a previsão inicial de conclusão das obras era muito anterior à chegada do coronavírus. Foram três os lugares mais atingidos: os distritos rurais de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, ambos em Mariana, e Gesteira, no município vizinho de Barra Longa. Os moradores permanecem em casas alugadas pela Fundação Renova, entidade criada pelas mineradoras e governos estaduais e federal para reparar os danos do desastre.

Trata-se de uma população acostumada com o meio rural e nem todos se adaptaram às características da cidade. Nos seus terrenos, criavam animais, plantavam, tinham árvores frutíferas, pescavam nos rios próximos. Tudo isso teve que ser substituído pelas compras no supermercado, mudança que nada tem de trivial, com muitos impactos na saúde física e mental das vítimas. E aí chegamos a mais um ponto dessa trama de violências cotidianas.

Até hoje, não existe estudo abrangente sobre os efeitos do desastre na saúde dos moradores. As consequências são diferentes ao longo da bacia. Há os que tiveram contato direto com a lama e/ou respiraram o pó do rejeito quando ele secou. Outros continuam usando a água do rio para consumo próprio e dos animais. E a pesca segue, apesar do perigo e da proibição judicial.

A falta de solução para a maioria das indenizações também é fator de muito estresse emocional. Eu mesma percorri duas vezes os 660 quilômetros, do local da barragem até a foz do rio Doce, em Regência, no Espírito Santo, e ouvi muitos relatos sobre depressão, problemas respiratórios, renais e dermatológicos.

Difícil de entender é que, passados cinco anos, os governos de Minas Gerais e Espírito Santo, as prefeituras e a Fundação Renova não tenham se articulado para avaliar esses impactos. Não custa lembrar: Vale e BHP, acionistas da Samarco e financiadoras da Fundação Renova, estão entre as maiores mineradoras do mundo. Talvez a ausência de estudos sobre a saúde das comunidades (se eles existem, não foram divulgados), esteja relacionada às indenizações – ou, melhor dizendo, à falta delas. Como calcular uma justa compensação, se os impactos não foram devidamente dimensionados?

Muitos dos atingidos, cansados de esperar tanto tempo, estão aceitando acordos que violam seus direitos, conforme revelado pela força-tarefa

Gustavo Basso/NurPhoto
Cinco anos depois do colapso da barragem, não há explicação plausível para as três comunidades mais devastadas não terem sido reconstruídas.

Catástrofe judicial 

Segundo a força-tarefa Rio Doce, do Ministério Público Federal, cerca de 100 mil pessoas ainda não tiveram resposta da Fundação Renova aos pedidos de indenização. Por outro lado, muitos dos atingidos, cansados de esperar tanto tempo, estão aceitando acordos que violam seus direitos, conforme revelado pela força-tarefa, em entrevista semana passada. Segundo o MPF, o juiz da 12ª Vara Federal e Agrária de Belo Horizonte, Mário de Paula Franco Júnior, encarregado dos processos cíveis, está homologando acordos de indenização com cláusulas prejudiciais aos atingidos.

O MPF afirma que nesses acordos as pessoas só recebem os pagamentos se assinarem para a Fundação Renova a quitação definitiva e a desistência de qualquer ação futura no Brasil e no exterior. A cláusula chama atenção porque a justiça britânica está para decidir se aceitará ação bilionária contra a BHP, que tem sede no Reino Unido. Um escritório britânico, com sócios brasileiros, representa 200 mil atingidos, alegando a morosidade do judiciário brasileiro em indenizar as vítimas.

O MPF entrou com mandado de segurança no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília, pedindo a anulação de atos do juiz nesses acordos. Procurei o juiz Mário de Paula Franco Júnior, mas ele disse que não vai se manifestar.

O MPF argumenta também que as indenizações foram fixadas em tempo recorde, sem prévia análise de danos e em valores irrisórios. O dano moral, por exemplo, foi calculado em R$ 10 mil. Os procuradores também levantam suspeitas de “lide simulada” entre o escritório de advocacia que lidera os pedidos de indenização (constituído em junho deste ano) e as mineradoras, que de forma inusual, não contestaram as sentenças.

A outra ponta dessa tragédia judicial ocorre na Justiça Federal em Ponte Nova (MG), encarregada do processo criminal. Das 22 pessoas denunciadas pelo Ministério Público, 15 já conseguiram se livrar. Os que ainda estão no processo e mais quatro empresas (as três mineradoras e a consultoria que emitiu o laudo de estabilidade da barragem) estão isentas da acusação de homicídio doloso. Eles respondem, entre outros crimes, por inundação e desmoronamento seguido de morte e delitos ambientais. O processo anda a passo de tartaruga. As testemunhas de acusação foram ouvidas há dois anos. Já a defesa dos réus arrolou 140 testemunhas e nenhuma prestou depoimento até agora.

Rio doce contaminado 

O reservatório de Fundão tinha capacidade para armazenar cerca de 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro, lama suficiente para encher mais de vinte mil piscinas olímpicas. Quando a barragem rompeu, na tarde de 5 de novembro de 2015, a lama vazou do reservatório como uma hemorragia incontrolável, que engoliu córregos, riachos e ribeirões até alcançar o Rio Doce e chegar à sua foz, no Oceano Atlântico. No percurso de 660 km, a lama provocou fenômeno chamado pelos especialistas de “ressuspensão” de metais pesados, depositados há séculos no leito dos rios, desde o começo do ciclo da mineração, em Minas Gerais.

É isso que explica a presença de metais pesados em trechos do Rio Doce, segundo estudos recentes, apesar das substâncias não fazerem parte da composição da lama de rejeitos. Pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo, reunidos na Rede Rio Doce Mar, apresentaram relatório para a Fundação Renova, ao qual tive acesso, mostrando a gravidade da contaminação. Os dados, coletados em 2019, são os mais recentes sobre a situação da água no trecho capixaba e no litoral do Espírito Santo e sobre a contaminação de peixes e outros animais. As coletas de amostras foram interrompidas em 2020 por causa da pandemia.

Segundo o estudo, foram encontradas altas concentrações de metais como cádmio, manganês, arsênio, ferro, zinco, cromo e cobre nas lagoas de Monsarás, Nova e Areal. O Rio Doce, em Linhares, apresentou aumento de cromo e manganês em comparação com dados anteriores ao desastre. Nos peixes, os pesquisadores encontraram sinais de exposição a metais pesados, como danos morfológicos, entre eles lesões no fígado dos animais, inflamações e congestão de vasos sanguíneos.

No ambiente costeiro-marinho, o levantamento chegou a conclusões igualmente preocupantes sobre duas unidades de conservação, o Refúgio de Vida Silvestre Santa Cruz e a Área de Proteção Ambiental Costa das Algas. Diz um trecho: “O relatório aponta que a APA Costa das Algas e o RVS de Santa Cruz foram as principais UCs afetadas pelos rejeitos de minério que chegaram à região costeira. Os sinais do impacto puderam ser observados nas concentrações de metais (ferro, cobre, mercúrio, níquel, zinco, alumínio, manganês) e arsênio (As) na coluna d’água, nas frações dissolvida e total, e no sedimento. Foram verificados níveis de concentração de metais em não conformidade com os limites estabelecidos pela CONAMA”. O estudo também detectou arsênio no músculo de camarões e peixes e cádmio em peixes, em concentrações acima do permitido pela Anvisa.

Quando publiquei o livro “Tragédia em Mariana”, em 2018, tinha a esperança de que ele servisse de alerta para não acontecer outro caso semelhante. Estava enganada. Em 2019, aconteceu a inimaginável tragédia de Brumadinho, com seus 270 mortos. O descaso humano, social e ambiental está na origem dessas duas catástrofes, com todo seu histórico de omissões, irregularidades e gestão de risco, que privilegia os lucros em detrimento da segurança dos trabalhadores e das comunidades em volta dos complexos industriais.

Eram tragédias anunciadas. O pior, depois de cinco anos, é ver que pouca coisa mudou. A legislação de segurança de barragens melhorou, mas ainda tem muitas lacunas. A fiscalização do poder público está longe do ideal e o modelo extrativista da atividade mineral continua exatamente o mesmo, mantendo municípios e comunidades praticamente reféns de grandes empresas, com enorme poder político e econômico.

A Samarco está prestes a voltar a operar enquanto as vítimas vivem os efeitos da devastação de lama todos os dias. O desastre de Mariana é considerado o maior do mundo no setor de barragens por três motivos: a extensão percorrida pelo rejeito, a quantidade vazada e os prejuízos provocados. Ao que tudo indica, também tem tudo para bater um triste recorde: o de impunidade. Uma desonra às 19 pessoas assassinadas naquela tarde. Em sua homenagem, aqui estão seus nomes, para que nunca sejam esquecidos:

Aílton Martins dos Santos, 55 anos

Antônio Prisco de Souza, 74 anos

Claudemir Elias dos Santos, 41 anos

Cláudio Fiúza da Silva, 41 anos

Daniel Altamiro de Carvalho, 53 anos

Edinaldo Oliveira de Assis, 40 anos

Edmirson José Pessoa, 48 anos

Emanuelle Vitória Fernandes Izabel, 5 anos

Marcos Aurélio Pereira Moura, 34 anos

Marcos Roberto Xavier, 32 anos

Maria das Graças Celestino, 64 anos

Maria Eliza Lucas, 60 anos

Mateus Márcio Fernandes, 29 anos

Pedro Paulino Lopes, 56 anos

Samuel Vieira Albino, 34 anos

Sileno Narkievicius de Lima, 46 anos

Thiago Damasceno Santos, 7 anos

Vando Maurílio dos Santos, 37 anos

Waldemir Aparecido Leandro, 48 anos.

* Cristina Serra trabalhou nas redações dos jornais Resistência, Leia Livros, Jornal do Brasil, Veja e da Rede Globo. Cobriu o desastre de Mariana, em 2015, para o Fantástico. Escreveu o livro “Tragédia em Mariana – a história do maior desastre ambiental do Brasil”(Record).


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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