Dia 9 de janeiro marca um ponto de quebra na política estadunidense no Panamá. Nesse dia afloraram 60 anos de contradições acumuladas, foi uma verdadeira revolução popular no pleno sentido dessa palavra. Ali se destroçou o sonho de riqueza que a oligarquia tinha desenhado em 1903 para impor um estado “independente” que, na realidade, era um “protetorado”, ou seja, uma colônia estadunidense, assim como o Tratado Hay-Juneau-Varilla (o tratado do opróbrio) que entregou o canal aos EUA “como se fossem soberanos”.
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Há que se recordar que os avós de nossa oligarquia, desde 1903 se sentiam cômodos com a situação colonial, acreditando ser ianques de coração. Aos setores populares, contudo, custou para ver clareza na construção de um projeto político próprio, mas desde o início puseram a cara na defesa da soberania porque compreenderam que a prosperidade do país e a própria dela dependiam.
Em 1964 eclodiu a experiência acumulada do povo panamenho dirigida pelos setores mais combativos que se enfrentavam com a presença colonial imperialista: na Greve Inquilinaria de 1925, no Movimento Contra Bases de 1947, bem como nas grandes gestas do movimento estudantil dos anos 1950, a Operação Soberania e a Semeadura de Bandeira, num ambiente fermentado pelo influxo da Revolução Cubana.
Em 9 de janeiro, ao se saber da agressão sofrida pelos estudantes do Instituto Nacional, e da bandeira pisoteada pelos “zonians”, da brutal repressão pela soldadesca ianque, o povo panamenho explodiu de indignação e saiu em massa, espontaneamente, para cruzar a cerca – nosso “muro de Berlim” – e colocar uma bandeira.
Ali, nas barricadas ou simplesmente arrastando-se pelo chão em torno do que hoje é o “Palácio Legislativo”, milhares enfrentaram com valor o metralhar dos tanques, dirigidos por líderes populares das organizações de esquerda, algumas alas juvenis do Parido do Povo (comunista) com Adolfo Ahumada ou Víctor Ávila e outros; os da Vanguarda de Ação Nacional de Jorge Turner e as hostes do que seria o Movimento de Unidade Revolucionária MUR de Flyd Britton
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A bandeira do Panamá é içada, mas estudantes são assassinados
Um povo que socialmente era um proletariado jovem, vigoroso e em rápida expansão (expressão do industrialismo dos anos 1950-60) se organizou nos Comitês de Defesa da Soberania. Esses comitês foram embriões do duplo poder que preencheu o vazio deixado pela ausência do governo-estado oligárquico que simplesmente sumiu das ruas. Esses comitês organizam desde a obtenção de armas até a defesa e o ataque, e a organização civil que se expressou em doações de sangue e transporte de feridos aos hospitais. Sobre isso se recomenda ler “Significado y consecuencias del 9 de enero”, José Eugenio Stoute, Revista Mujeres Adelante n. 13, janeiro de 1989.
Segundo Stoute, uma coluna enorme de gente, entre 40 e 60 mil pessoas, cercou a Presidência da República exigindo armas para enfrentar a agressão imperialista. O governo oligarquia de Roberto Chiari, filho do ex presidente Rodolfo Chiari, que em 1925 tinha pedido a intervenção militar de EUA para esmagar a Greve Inquilinaria, decidiu duas medidas em contraposição: uma, aquartelar a Guarda Nacional para que suas armas não fossem utilizadas pelo povo na defesa da soberania; outra, tratando de apaziguar a fúria popular, rompeu relações diplomáticas com Washington, uma medida desesperada sem respaldo de nenhuma vocação nacionalista da oligarquia, mas do pânico do governo diante da insurreição que ameaçava entrar a força no Palácio das Garças.
Três dias durou a insurreição do povo nas ruas das cidades de Panamá e Cólon. Três dias em que as ações não se limitaram a fincar bandeiras, mas que enfrentaram com as poucas armas de que dispunham as tropas imperialistas. Houve vários mortos, reconhecidos pelo “governador” da Zona do Canal. Três dias em todo símbolo de propriedade de empresas estadunidenses foi saqueado e queimado, desde o famoso edifício da empresa de aviação Panan até as sucursais de bancos como o Chase Manhattan. Dezenas de automóveis com placas da Zona foram capotados e queimados ao longo das ruas.
O governo que covardemente tinha se escondido, começou a botar a Guarda Nacional fora dos quartéis nos dias 11 e 12 de janeiro. Mas não o fez para defender a nação agredida, mas para prender os dirigentes populares da insurreição, mandando grande quantidade de jovens para a Cárcel Modelo.
A ação repressiva dos governos liberais de Chiari e Robles continuaria pelos anos seguintes. O líder estudantil de Colón, Juan Navas, que tinha sido ferido na gesta de janeiro e tinha viajado à União Soviética para tratamento médico, ao regressar ao país em 1966, foi preso pela polícia política do regime, torturado, assassinado e seu cadáver atirado do Corredor de Colón. Em seguida trataram de inculpar os militantes do Partido del Pueblo daquela cidade.
O sacrifício dos mártires e a insurreição popular de 1964 não foram em vão, mas sim uma vitória que foi se configurando no tempo e que hoje se percebe: Impôs-se o critério, até aquele momento só sustentado pelos setores populares de esquerda, de que tinha que acabar com o estatuto colonial de 1903, derrogar o Hay Juneau Varilla e negociar um novo tratado sobre o Canal de Panamá, que eliminasse a “Zona”, as bases militares e passasse a administração do Canal num prazo peremptório.
O Tratado Torrijos Carter de 1977 refletiu essas demandas, apesar de suas emendas e o Pacto de Neutralidade.
A prosperidade econômica de que hoje goza o país se deve, sem d/vida alguma, à Gesta de 9 de janeiro, porque está fundamentada nos ingressos advindos do Canal que antes eram apropriados pelo império. Ao contrário do que temia a oligarquia de que com a retirada das bases haveria fome no país, hoje está comprovado que “sim, soberania se come”.
Não obstante, e lamentavelmente, a prosperidade produzida pelo canal está sendo apropriada em sua maior parte por uma classe social que o professor Ricardo Rios chama de “novos zonians”, que não são outros que os descendentes da mesma oligarquia que vendeu o país em 1903, que durante cem anos atuou como aliada interna do colonialismo estadunidense e que acusou de “comunistas” os líderes populares de 1964 e de “saqueadores e ladrões” os mártires. Essa apropriação dos benefícios produzidos pelo canal, que é o contrário do que queria Omar Torrijos quando afirmou que devia ser dado o “uso mais coletivo possível”, tem origem em outra tragédia: a invasão das forças armadas estadunidenses em 20 de dezembro de 1989.
(Fragmento do ensaio Panamá: Dos hitos de la historia panameña: 9 de enero y 20 de diciembre. publicado em janeiro de 2014)
*Original de Kaos en la Red – Publicado em janeiro de 2016.
Edição: João Baptista Pimentel Neto