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Thomas Mann: Jacó, Israel e o massacre levado à "terra prometida" pelo "povo eleito"

Há mais de 50 anos Israel usa e abusa de seu direito de ser como Estado; sua fome por terras não tem limites
Carlos Russo Jr
Diálogos do Sul Global
Florianópolis (SC)

Tradução:

Todo relato bíblico é história e mito. Em “José e seus irmãos”, Thomas Mann confere a cor e o calor literário a um massacre realizado pelo “povo eleito” para conquista da dita “terra prometida”.

Como é próprio da essência do mito o retorno, a atemporalidade e a onipresença, hoje nos deparamos com o massacre dos palestinos pelo mesmo povo que se autodenomina “O eleito do Senhor de Abraão”.

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A cidade de Siquém situava-se no centro da Palestina ocidental, próximo à bacia que separa as águas que correm para o Jordão daquelas que descem para o Mediterrâneo, a 65 quilômetros ao norte de Jerusalém, região limite entre Cisjordânia e Jordânia.

Mas vamos a um breve resumo comentado da imortal descrição do mestre Mann.

Em conformidade com a Bíblia, Jacob já ostentava o título de Israel – o guerreiro de Deus – pelo qual a posteridade conheceria seus descendentes como a raça escolhida pelo Senhor de Abraão, quando conduzia todos os seus bens através dos caminhos perigosos que demandavam a Canaã.

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Desde que empreendera a fuga dos domínios de seu sogro Labão, que fora por ele totalmente espoliado, Israel era um homem rico que buscava um lugar seguro onde pudesse implantar as suas tendas, apascentar o gado e cultivar a terra. Seus bens incluíam suas duas mulheres, Lia e Raquel que, conjuntamente com as servas Bala e Zelpa (todas “herdadas “de Labão) haviam-lhe gerado doze filhos (Benjamin ainda estava por nascer); dezenas de escravos e escravas, pastores e vaqueiros; mais de cinco mil cabeças de ovinos, burros, camelos e montaria.

Após longo caminhar, o séquito deixara para traz vales perigosos, até chegar a uma região relativamente calma, um pouco montanhosa, onde as flores, frutas e a cevada cresciam sem cultivo. E, ao fundo, guarnecendo o planalto, estava a cidade dupla de Siquém mais que centenária, com seus quinhentos habitantes, cercada por fortes muralhas.

Pode-se bem imaginar os sentimentos desencontrados com que o povo da cidade viu se aproximar a comitiva dos nômades de Israel. Quais seriam as suas intenções?


Pacíficos

A população de Siquém não era belicosa, mas pacífica, dedicada ao comércio e amante do conforto. Seu rei, Hemor, um velho artrítico e rabugento que nada negava ao seu filho, um fidalgote mimado, chamado, tal qual a cidade, Siquém. A guarnição da cidade era composta por vinte egípcios, acostumados à boa vida e confiantes no poder das grossas muralhas, assim como no distante poder do Faraó, a quem a cidade prestava suserania.

De qualquer maneira, após Jacó-Israel protestar votos de amizade eterna ao rei Hemor e ao povo de Siquém, obtendo a concordância dos mesmos, estabeleceu seu acampamento ao lado da cidade.

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Em sinal de consideração, enviou por intermédio de dois de seus filhos um cesto com pombos, pão feito com frutas espremidas, lâmpadas, jarros e outros agrados ao castelo. No retorno, os mensageiros chegaram maravilhados com as riquezas vistas na cidade, o que provocou certo alvoroço dentre os filhos mais velhos de Israel.

Há mais de 50 anos Israel usa e abusa de seu direito de ser como Estado; sua fome por terras não tem limites

Ilustração Espaço Proust
Hoje, pouca importa que toda a faixa de Gaza e a própria Cisjordânia sejam uma Siquém bíblica revivida!




Conspiração

Ruben tinha por volta de dezoito anos; na sequência etária vinham Simeão e Levi (denominados “os gêmeos”) e, logo após, Judá, Dan e Neftali, com quatorze anos de idade. Destes partiu a ideia de uma conspiração que, por entendido, não envolveu os filhos mais novos de Israel.

Os rudes nômades do deserto propuseram ao pai que, mediante ardil, tomassem a desprevenida Siquém e saqueassem suas riquezas. Fosse como fosse, Jacob, a quem o plano foi apresentado, se opôs de forma majestática e determinante:

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“Afastai-vos de mim filhos de Bala e de Lia, devíeis envergonhar-vos! Somos, por ventura, ladrões do deserto que caem como gafanhotos em cima da terra, como uma praga de Deus e devoram a colheita do agricultor? Somos uma ralé, ou filhos de ninguém para roubar o que não nos pertence? E sabei agora que me vou preparar para transpor a porta da cidade e falar em paz com Hermon. Faremos aliança com eles, legalmente e por escrito teremos a terra que a eles pertence e negociaremos com o lucro que obtivermos”.

E assim foi feito. O dinheiro em pagamento da terra arável e das pastagens foi pesado, declarado legal e sacrossanto o contrato e maldito aquele que rompesse o vínculo.


Cidadania

A gente de Israel ganhou foros de cidadania iguais aos dos habitantes de Siquém, podendo transitar à vontade pelas ruas da cidade e comerciar nelas. Os filhos de Siquém poderiam tomar como esposas as moças da tribo e vice-versa. Trocaram beijos e lisonjas.

E dessa maneira Israel se domiciliou na terra de Canaã ao lado da cidade de Siquém. Passaram-se quatro anos e os israelitas plantaram seu trigo e cevada nos campos, colheram os frutos de suas oliveiras, apascentaram o gado, e no lugar onde haviam se fixado, cavaram um poço de quatorze varas de profundidade, que se tornou conhecido para a posteridade como o poço de Jacob em terras de Canaã, tornando-se independentes da água de Siquém.

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Quatro vezes o trigo e a cevada verdejaram, oito vezes a gente de Jacob procedera à tosquia. O pacto de fraternidade estabelecida cumpria-se e os habitantes da cidade haviam deixado de temer os homens que haviam chegado do deserto; a guarnição da cidade já os considerava seus camaradas.


Celebrações

Então se celebrou a festa da vindima após a fermentação do vinho. Por toda parte gritos de alegria, procissões e oferendas das colheitas, quer na cidade, quer no vale. Durante sete dias banqueteavam-se e bebiam do vinho.

Lá pelo terceiro dia tocavam música e todos dançavam frente à cidade, dentro dela e em frente ao castelo.

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Então o velho Hemor e seu filho, acompanhados pelo séquito, fizeram questão de confraternizar-se com Jacob e seus filhos. Foi então, que o irrequieto príncipe Siquém viu pela primeira vez a jovem e interessante Dina, menina ainda nos seus treze anos, mas já feita mulher pela natureza. Os desejosos olhos do jovem a fixaram e a paixão que a moça lhe provocou não mais o deixaria. Pensou imediatamente no casamento e na noite de núpcias, embora o costume lhe proibisse namorá-la, a não ser com os olhos.

Uma nota importante que aqui nos compete frisar: Fala-se muito dos doze filhos de Jacob-Israel, que seriam o tronco das doze tribos, mas omite-se, muitas vezes propositalmente, o fato de que Jacob teve de Lia uma filha mulher, precisamente Dina, com a qual ninguém se importara até então.

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Coube ao velho Hemor pedir a mão da moça a Jacob, oferecendo copiosa compensação em prata e ouro. Jacob ficou surpreso e perplexo. Materialmente lhe conviria ter um parentesco real na região, mas ela era sua única filha, exclusivo instrumento de troca. Chamou, então, os filhos a conselho. Os filhos mais velhos de Israel pensavam na melhor transação possível que pudessem arrancar ao velho, exceto Simeão e Levi que tinham outras ideias, ainda um tanto vagas. É que eles jamais haviam abandonado o antigo plano de saquear a cidade que os acolhera. De todos os modos foi pedido ao rei três Dias para a deliberação familiar.

Ao final do terceiro dia, Siquém veio pessoalmente, a conselho do pai, saber a resposta disposto a qualquer concessão desde que sua paixão pela donzelinha pudesse se consumar.


O plano dos saqueadores e assassinos

Disseram-lhe os de Israel que o primeiro passo que deveria dar para ter Dina seria circuncidar-se, pois seria um escândalo o casamento de uma israelita com um incircunciso, símbolo do pacto com o Deus de Abraão, Isaac e Jacob.

Ora, Siquém concordou de imediato. Afinal, nem ele e nenhuma de suas amiguinhas da Casa das Delícias do castelo sentiriam a falta de um pequeno pedaço de pele.

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Uma semana após, retornou o jovem embora ainda mal curado e sentindo o incômodo que lhe causara o sacrifício, mas cheio de confiança.

Jacob, tendo percebido onde tudo iria desembocar, fugira, preferindo assumir o papel do “demônio Labão”, “in absentia”.

Os filhos de Israel objetaram que a circuncisão feita com uma faca de metal fugira à regra. O correto seria uma faca de pedra. E que, ademais, o filho do rei já possuía uma favorita, Reúma, a única esposa verdadeira e Dina, a filha de Israel, príncipe de Deus, não poderia ser uma simples concubina.

Siquém desesperou-se e ao partir amaldiçoou todos os irmãos, que haviam quebrado um pacto e uma promessa. Mas ele não fora educado para renunciar com facilidade a um desejo sensual.

Quatro dias após, Dina foi por quem desejara desde o princípio desposá-la, raptada e conduzida à Casa das Delícias, onde se viu cercada por todo o gênero de comodidades urbanas que desconhecia, assim como desfrutou do carinho das outras favoritas do príncipe. É fato conhecido que tão pouco ofereceu qualquer tipo de resistência quando da celebração de tão desejada boda.

Os filhos de Israel, principalmente Simeão e Levi, ao saberem do rapto pareciam não ter limites em sua fúria. Quebraram enfeites, rasgaram as roupas, arrancaram cabelos e barbas. Clamavam pela desonra e queriam assalto, morte, sangue.

Jacob sabia que, na verdade, os seus filhos haviam encontrado uma oportunidade para empreenderem aquilo que sempre haviam desejado, e chegou a ponderar que não haveria grande vantagem em arrebatar Dina do castelo à força, pois isso nada remediaria a situação e suscitaria uma nova questão: o que fazer com a menina, raptada e ultrajada.

Alguns dias após a revolta eis que, vindo da cidade, chega um mensageiro com uma carta do moço Siquém dirigida a Israel, pedindo que a situação se arrumasse e oferecendo um enorme dote por Dina, assim como um convite para as bodas reais.

Jacob ouviu seus filhos e não se indispôs com os mesmos. Esses impuseram a Siquém uma única condição para que a situação se regularizasse:

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Que toda a cidade, inclusive sua guarnição, fosse submetida à circuncisão! Uma cláusula aparentemente pia pelo amor ao Senhor e ao pacto de Abraão para com o “povo escolhido”.

Jacob recordou-se do sonho em que o Senhor Deus, em Betel, havia-lhe gritado que ele haveria de possuir portas, e, mesmo, as portas de seus inimigos.

Não significaria isso que, apesar de todo o seu pretenso amor pessoal à paz, estava escrito nas estrelas que a vida de Israel estaria ligada a conquistas, guerras, assassinatos e pilhagens?

O rei e o príncipe de Siquém aceitaram a proposta e, num mesmo dia, todos os homens adultos, mesmo os velhos e a guarda egípcia foram submetidos à circuncisão.

Chegado o terceiro dia, quando piores são as dores e maiores os calafrios da infecção, cinquenta homens, entre servos e escravos, comandados pelos filhos de Israel, apresentaram-se disfarçados na cidade para a comemoração das bodas.

Uma vez dentro das muralhas retiraram seus disfarces e aos gritos de Dina, Dina, atacaram todos os habitantes, incapazes de reação, com a fúria dos leões.

Simeão e Levi, os instigadores do conluio, praticaram os crimes mais hediondos. Os hebreus tudo assolaram literalmente a ferro e a fogo. O sangue corria pelas ruas e calçadas, enquanto do castelo, das casas e dos templos subiam labaredas aos céus.

Somente homens, os fisicamente fortes, e duas meninas que atraíram o apetite sexual dos dois irmãos foram feitos escravos, sendo todos os demais, inclusive mulheres e crianças trucidados sem piedade.

Siquém, o noivo, horrendamente desfigurado, teve a cabeça enterrada no esgoto da latrina de seu quarto. Dina, a insignificante causa inocente, foi restituída à família.

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Se a matança e a destruição não duraram mais que duas horas, o saque continuou por muito tempo.

Às mãos de Israel passou toda a fortuna muitas vezes secular da cidade e dez vezes maior que os peregrinos do deserto possuíam. Ouro em abundância, sacos cheios de anéis, belíssimos instrumentos domésticos de prata, âmbar e faiança, alabastro e muito marfim, sem falar das enormes provisões de linho, vinho, farinha e azeite.

Jacob inicialmente negou-se a aceitar o feito de seus filhos. No entanto, quando viu que além de toda a fortuna acima descrita ainda estavam sendo trazidos os rebanhos, tomou-se de raiva “santa” tão somente contra Simeão e Levi e os amaldiçoou, pela violência de sua raiva. Esses apenas murmuravam: “Deveríamos consentir que nossa irmã fosse tratada como rameira?”

Pobre Dina, se encolhia no chão, aniquilada. Estava grávida. E Israel definiu: “A criança não viverá”. E dito e feito: criança nasceu e foi deixada para morrer no deserto, provavelmente comida por algum animal!

Durante a noite Israel sonhou que o Senhor lhe ordenava que partisse de Canaã em direção a Betel. Na manhã seguinte chamou todos os seus filhos e ordenou que se pusessem em marcha, pois não era conveniente permanecerem no lugar daquela abominação.

Deveriam carregar consigo todos os seus bens, inclusive aquilo de que se haviam apossado “por causa de Dina”. Afinal, os povos vizinhos e o Egito, do qual o rei de Siquém era suserano, poderiam querer-se vingar.

Mas a boa sorte voltava a sorrir para Jacob, pois o Faraó do Egito, envolto em novas guerras, não tomou conhecimento do que acontecera em Canaã e os povos vizinhos estavam suficientemente aterrorizados pelas barbaridades praticadas por Israel que não se atreveram a opor-lhes resistência.

Como já frisamos, todo relato bíblico é história e mito. Thomas Mann lhe confere cor e calor literário, mas, sendo próprio da essência do mito o retorno, a atemporalidade e a onipresença, há mais de 50 anos Israel usa e abusa de seu direito de ser como Estado. Sua fome por terras não tem limites. Hoje, pouca importa que toda a faixa de Gaza e a própria Cisjordânia sejam uma Siquém bíblica revivida!

Carlos Russo Jr | Colunista na Diálogos do Sul


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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