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R$ 87,5 milhões: Exército, não Abin, é maior contratante de software espião israelense

Apesar das cifras, mundo midiático desabou só sobre agência de inteligência; escândalo tem raízes assentadas no período do usurpador Michel Temer
Jeferson Miola
Jeferson Miola

Tradução:

O Exército brasileiro, e não a Abin, é o principal cliente da Cognyte, empresa israelense proprietária do programa de espionagem FirstMile. Importante recordar que um general do Exército – o general Gerson Menandro– foi nomeado por Bolsonaro embaixador do Brasil em Israel.

O software não é uma ferramenta ilegal. O que é ilegal é seu uso direcionado, com fins político-ideológicos ou de outra natureza que não prevista em lei ou cujo uso não seja autorizado pela justiça.

Ilegal é a forma como agentes públicos delinquentes, civis ou fardados, instrumentalizam o uso deste dispositivo para perseguição política e para satisfazer objetivos de facções e poderes estamentais. Na repercussão sobre a espionagem política da ABIN no período Bolsonaro, o noticiário tem ocultado a participação de um ator central neste esquema ilegal – as cúpulas militares.

O foco de atenção da mídia tem sido exclusivamente o esquema criminoso de Ramagem com o clã Bolsonaro. E, também, a disputa autofágica entre servidores da ABIN e da PF.

Essa abordagem é conveniente para os militares, porque desvia a atenção sobre a implicação das cúpulas militares com sistemas ilegais de espionagem de “inimigos internos”.

O escândalo agora em evidência, que foi cansativamente denunciado pela mídia independente a tempo à época, tem raízes assentadas no período do usurpador Michel Temer, com quem os generais Villas Bôas e Sérgio Etchegoyen conspiraram para derrubar a presidente Dilma. A israelense Verint Systems Ltd., atual Cognyte Technologies Israel Ltd., empresa proprietária do programa espião FirstMile, multiplicou 23 vezes o faturamento no Brasil durante o período Temer [2016/2018], como se observa na tabela:

O faturamento do grupo israelense saltou de R$ 2,6 milhões com Dilma, em 2014, para R$ 60,8 milhões nas contratações feitas pelo Exército, ABIN, Polícia Rodoviária Federal e Ministério da Justiça com Temer entre maio de 2016 e dezembro de 2018.

No governo atual, do presidente Lula, a empresa já recebeu R$ 11,6 milhões, a quase totalidade relativa a contratações feitas pelo Exército e Aeronáutica.


Contratos milionários, transparência e blindagem midiática

Desde o primeiro registro de pagamento à Verint/Cognyte no Portal da Transparência, em 2014, o governo pagou pelo menos R$ 127,6 milhões ao grupo. Os valores se referem à compra de software, equipamentos e tecnologias de vigilância, monitoramento, espionagem e contratos de manutenção, treinamentos e serviços correlatos.

A cifra deve ser ainda superior, porque o Portal de Transparência não disponibiliza dados de “valores sigilosos”. Cabe ao TCU e ao Congresso Nacional apurar tais valores, para que a sociedade brasileira conheça a magnitude de recursos destinados à área.

Do total de R$ 127,6 milhões, a ABIN foi responsável por contratar apenas R$ 14,7 milhões da Cognyte, ou 11,5% do total.

Por outro lado, o Exército foi, disparado, o maior contratante da empresa. Pagou 87,5 milhões de reais, que representam 65% do que a empresa recebeu do erário no período, conforme tabela:


Apesar de o Exército ser, de longe, o maior cliente da Cognyte, o mundo midiático desabou só sobre a Abin. E está sendo estimulado o confronto corporativo entre funcionários da Abin e da PF, o que aumenta a distração em relação aos militares. Até mesmo a PRF, dirigida por um bolsonarista fanático, contratou mais serviços da Cognyte que a Abin.

Enquanto a mídia se distrai com os atores coadjuvantes, os generais se divertem, decerto reunidos no Alto Comando sorvendo um uísque superfaturado e envelhecido 24 anos.


Pagamento por fora e outras trapaças

É intrigante, ainda, as Forças Armadas terem pago todo valor de R$ 89 milhões à empresa israelense através da Comissão Aeronáutica Brasileira na Europa [R$ 6,5 milhões]; e da Comissão do Exército Brasileiro em Washington [R$ 82,5 milhões], e não no Brasil.

Ora, se a contratação foi para serviços e equipamentos a serem usados no território brasileiro, como para o sistema de monitoramento de fronteiras [SISFRON], para a intervenção federal no Rio, defesa cibernética, sistema de controle e comando do Exército, tecnologia de comunicação e informação etc., qual a justificativa para o Exército executar o pagamento de tais contratações via comissões no exterior, e não por uma unidade orçamentária do Exército no Brasil?

No Brasil, a ex-Verint é representada pela Cognyte Brasil SA, sediada no centro da capital de Santa Catarina, estado natal do ex-Diretor Geral da PRF Silvinei Vasques, atualmente em prisão preventiva devido à interferência na eleição de 2022.

Desperta curiosidade que a Superintendência da PRF em SC foi a Unidade Federativa requisitante da totalidade dos serviços da empresa israelense em todo país.

Caio Santos Cruz, filho do general Santos Cruz, foi representante da Verint e da Cognyte no Brasil de fevereiro de 2016 a maio de 2023, por coincidência o período de expansão das vendas do FirstMile ao governo brasileiro, como demonstrado na primeira tabela.

Desde maio de 2023, e imediatamente após desembarcar da Cognyte Brasil, Caio Santos Cruz passou a trabalhar como consultor da Appia Informática, ironicamente descrita no LinkedIn como dedicada ao “Combate à Lavagem de Dinheiro, Combate à Fraude, Combate ao Crime Cibernético, Transcrição de Áudio e Vídeo”.

Suspeita-se que a demissão do general Santos Cruz em 13 de junho de 2019 esteja associada ao conflito de interesses dele próprio, Santos Cruz, com os interesses do Carlos Bolsonaro e sua horda barra-pesada –Alexandre Ramagem, Ânderson Torres e quejandos– que queria viabilizar a “ABIN paralela e particular” do Bolsonaro.

O general Santos Cruz fazia lobby pelo software vendido pelo próprio filho, enquanto Carlos Bolsonaro defendia a compra do programa Pegasus, da também espiã israelense NSO Global.

O Pegasus é um sistema de espionagem mais agressivo e invasivo, que consegue acessar conteúdo dos telefones celulares, enquanto o FirstMile somente permite a localização dos aparelhos celulares.


Sequelas do golpe

O primeiro ato de Temer depois do impeachment fraudulento da Dilma foi a Medida Provisória nº 726, de maio de 2016, que recriou o GSI, que Dilma havia extinto em outubro de 2015. Na ocasião, a presidente petista vinculou a ABIN à Secretaria de Governo da Presidência da República.

Ao assumir, Temer nomeou como ministro do GSI para recriar o órgão em bases militaristas um general do Exército. Etchegoyen retomou a ABIN para o controle militar e começou a reestruturação acelerada da instituição nos moldes do SNI, o Serviço Nacional de Informações da ditadura.

No GSI, Etchegoyen reconfigurou e disseminou dispositivos de inteligência, espionagem política, vigilância, sabotagem, chantagem e controle típicos de regimes autoritários e Estados policialescos.

O general Augusto Heleno, assim como Etchegoyen oriundo do porão da ditadura militar, herdou a estrutura pronta legada pelo camarada de farda. No GSI, o general Heleno apenas tratou de avançar a concretização do projeto estratégico do poder militar “eleito nas urnas”.

O governo Lula herdou a estrutura legada pelos generais Etchegoyen e Augusto Heleno, sem alterar nem sua aparência, totalmente dominada pelos militares, e muito menos sua essência.

O aparelho de espionagem e de perseguição política montada pelos militares ainda na ditadura segue intacto e ativo. Mas os militares festejam enquanto nos distraímos com a briga entre a Abin e a PF.

Jeferson Miola | É jornalista, integrante do Instituto de Debates, Estudos e Alternativas de Porto Alegre (Idea) e ex-coordenador-executivo do 5º Fórum Social Mundial.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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