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Foto: Agência Brasil/Fernando Frazão

60 anos do golpe: terrorismo de Estado deve ser lembrado (e repudiado!) para que não se repita

Comissão Nacional da Verdade foi instalada quase 50 anos após 1964 e está longe de obter os resultados obtidos pelos nossos vizinhos latino-americanos
Verbena Córdula
Diálogos do Sul Global
Salvador (BA)

Tradução:

As Forças Armadas Brasileiras, apoiadas por setores da burguesia nacional, destituíram, em 1964, um presidente democraticamente eleito (João Goulart) e, após isso, passaram a cometer atos de terrorismo de Estado, prendendo, torturando e matando pessoas. Somente após 47 anos, em 2011, a presidenta Dilma Rousseff (2011-2016) teve a coragem de dar a única resposta de Estado a essa fase nefasta de nossa história, criando a Comissão Nacional da Verdade (CNV), na busca de promover o reconhecimento dos crimes cometidos durante a ditadura (1964-1985) e identificar os responsáveis. 

Hoje, em 2024, no aniversário de 60 anos desses atos brutais, o presidente Lula prefere ignorar essa parte da história do país, a meu ver, um dos maiores erros que um chefe de Estado democrático poderia cometer.

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No dia 31 de março de 1964, as Forças Armadas Brasileiras, de modo brutal, depuseram o presidente João Goulart, alegando a existência de uma suposta “ameaça comunista”. Mesmo que houvesse essa suposta “ameaça”, os militares não tinham o direito de praticar semelhante atrocidade. Contrariando as mentiras que buscaram justificar o terrorismo de Estado, evidências históricas demonstram que o golpe foi motivado, sobretudo, por interesses políticos, econômicos e ideológicos de setores conservadores da sociedade brasileira, apoiados por forças externas, como os Estados Unidos.

Caminhada Silenciosa no Ato 60 Anos do Golpe de 64 em São Paulo, em 31 de março de 2024, em São Paulo (SP) (Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)

Esse golpe de Estado representou, principalmente, os interesses de setores conservadores da sociedade brasileira, formado por latifundiários, grandes empresários, integrantes da elite política e militar do país, que morriam de medo que reformas de cunho social fossem implementadas por Goulart. O golpe significou o aprofundamento das desigualdades sociais e da pobreza, pois favoreceu a implementação de políticas econômicas que acirraram a concentração de renda, que já se apresentava gritante no Brasil.

Perseguição política, tortura e assassinato

Estudos apontam que, em 1965, a parcela que formava 1% dos mais ricos no Brasil concentrava entre 15% a 20% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Conforme o IBGE, considerando-se os anos de 1981 a 1989, os 10% mais ricos do país passaram a concentrar 53,2% do PIB. E isso porque os governos militares que se apropriaram do país com o golpe perpetrado em 1964 promoveram políticas econômicas que apenas favoreceram essa concentração, enquanto grande parte da sociedade enfrentava precariedades.

Prisões arbitrárias, torturas e assassinatos infelizmente também formaram parte desse “combo nefasto” liderado pelas Forças Armadas, táticas utilizadas para reprimir qualquer forma de oposição política. Durante duas décadas, essas práticas formaram parte importante da estratégia de controle do Estado sobre a sociedade civil, e objetivavam, principalmente, silenciar vozes dissidentes e manter o poder nas mãos dos militares.

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Durante esse período, houve censura à imprensa – mas não a toda ela, porque a Globo, por exemplo, foi a maior beneficiária do setor, que conseguiu crescer e consolidar-se apoiando torturadores e assassinos –, perseguição política, tortura e assassinato de opositores ao regime; nesse período, milhares de brasileiras e brasileiros foram vítimas de prisões, tiveram que se exilar ou simplesmente “desapareceram”, o que deixou cicatrizes profundas na sociedade brasileira, as quais muitos – alguns por pura ignorância, outros porque se beneficiaram de algum modo com aquele regime – querem que esqueçamos.

É inaceitável que somente depois de passados 47 anos, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) tenha sido criada, considerando que Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso (FHC) e Luiz Inácio Lula da Silva (os últimos com dois mandatos) já tinham sido eleitos democraticamente. Com essa Comissão, criada em 2011, a então presidenta Dilma Rousseff foi a única mandatária pós-redemocratização com coragem suficiente para dar uma resposta contundente a respeito desse período atroz da nossa história recente.

Criada para, entre outras coisas, investigar e elucidar essas violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, a CNV não resultou na punição de nenhum dos responsáveis vivos pelos crimes cometidos, diferentemente do que aconteceu na vizinha Argentina, por exemplo. A ditadura na Argentina foi imposta em 1976 e durou até 1983. A Comissão da Verdade do país vizinho foi criada logo em seguida e, em 1984, o relatório final teve sua divulgação. Nesses quase 48 anos, “los hermanos” realizaram 342 julgamentos por crimes contra a humanidade, tendo alcançado muitas sentenças, as quais deixaram 1.207 pessoas condenadas, incluindo o ex-presidente ditador Jorge Rafael Videla, que morreu na prisão em maio de 2013. O trabalho ainda continua. Existem 15 processos em debate, em sete províncias do país, centenas de pessoas desconhecem a sua história e milhares continuam desaparecidas.

Dia da Memória pela Verdade e Justiça

Aqui no Brasil, a nossa Comissão foi instalada quase 50 anos depois do golpe e está longe de obter os resultados obtidos pelos nossos vizinhos. Não conseguimos sequer pressionar o Estado a adotar medidas efetivas que deixassem patente o papel e as prerrogativas das três forças armadas do país. Pelo contrário. Muitos militares continuaram sentindo-se autorizados a perpetrar ações que contrariam essas prerrogativas, como demonstra o que ocorreu recentemente, quando o ex-presidente militar aposentado, auxiliado por militares da ativa, colocaram em risco a democracia brasileira.

Passeata de estudantes, movimento sociais, sindicais e partidos de esquerda em repúdio ao golpe militar de 1964 percorre a Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, em 1º de abril e 2014, para cobrar justiça pelas vítimas da ditadura e punição aos torturadores (Foto: Agência Brasil/Fernando Frazão)

Nem mesmo isso, que podemos chamar de tentativa de novo golpe de Estado, foi suficiente para fazer o atual presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva compreender a necessidade de unirmos forças no combate a qualquer tentativa de demover a democracia em nosso país. Penso que o nosso presidente está equivocado ao proibir manifestações para lembrar os 60 anos de terrorismo de Estado praticado pelos militares durante duas décadas em nosso país. Lula se equivoca ao pensar que manifestações massivas nesse sentido seriam atos de provocação à extrema-direita que governou o Brasil durante quatro tortuosos anos, que negligenciou uma pandemia que ceifou mais de 700 mil vidas no país – inclusive tendo o então presidente desdenhando dessas mortes, de modo desumano e vil.

De fato, desde a pandemia, o presidente e o PT deveriam ter liderado uma sublevação popular, um rechaço ao então governo negacionista, mas preferiram “ficar na retaguarda”. Essa retaguarda, no entanto, serviu de “combustível” para essa extrema-direita desrespeitosa e arrogante – que começou a colocar as “asas de fora” já no golpe perpetrado contra a Presidente Dilma, em 2016, e que também não contou com um movimento de rua contundente, liderado por Lula e pelo PT – ganhasse força.

Estamos vendo um presidente cedendo a pressões de grupos conservadores, tentando agradar a uma parcela religiosa fanática, em vez de liderar o repúdio e o combate àqueles e àquelas que insistem em desdenhar do Estado democrático de direito. Com essa atitude, Lula não somente não agradará a essa massa conservadora, como perderá o respeito e apoio de parcela da população que o elegeu por três vezes. Aliás, as últimas pesquisas que mediram sua popularidade têm demonstrado isso. O ex-Presidente militar poderá até ser preso em breve, mas, infelizmente, seu legado está sólido e precisa ser dissolvido. E não será deixando de dar uma resposta contundente nas ruas que isso acontecerá.

No último dia 24 de março, dezenas de milhares de pessoas foram às ruas denunciar o atentado à democracia, mostrando o seu repúdio à ditadura. Com o lema “Nunca mais”, ou “30 mil motivos para se manifestar” – fazendo alusão aos caídos e às caídas durante aquele período nefasto que também se fez presente naquele país, e pelos mesmos motivos que se fez no Brasil –, aquelas pessoas foram às ruas para que as atrocidades cometidas não caiam no esquecimento.

Lá, na Argentina, a data do Golpe é feriado nacional. O dia 24 de março é chamado de Dia da Memória pela Verdade e Justiça. Assim como nossos vizinhos, deveríamos fazer o mesmo com relação ao 31 de março! E o presidente Lula deveria considerar enviar um Projeto ao Legislativo, neste sentido. Não podemos calar diante das atrocidades que formaram parte da nossa história. “Quem não conhece a história está fadado a repeti-la”. E nós chegamos muito perto no dia 8 de janeiro de 2023.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Verbena Córdula Graduada em História, Doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporânea pela Universidad Complutense de Madrid e Professora Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, BA.

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