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Como cultura de pedofilia e incesto agrava violência sexual contra crianças no Amazonas

Apesar do alto índice desse tipo de crime e da importância de combatê-lo, o tema pouco pautou os programas dos candidatos ao governo amazonense
Nicoly Ambrosio
Amazônia Real
Manaus

Tradução:

Muitas vezes silenciados, os abusos e estupros contra crianças de até 6 anos deixam marcas profundas nas vítimas e são problemas ainda longe de serem superados na sociedade brasileira. No Amazonas, esses crimes têm um endereço comum: acontecem dentro dos lares, no interior da família e o abusador é geralmente do grupo familiar: pai, avô, tio e padrasto. 

Não há estatística precisa sobre os casos de estupro de vulnerável na faixa etária da primeira infância, o que dificulta a informação sobre esse crime assustador. Mas, entre janeiro a fevereiro de 2022, o Estado registrou 18 casos de violência sexual contra as crianças.

Silenciadas na estatística, elas também são apagadas nos programas dos candidatos ao governo nas eleições estaduais em 2 de outubro. Os projetos são superficiais e há candidatos que não citam ações voltadas à proteção de meninas e meninos em seus planos de governos. Leia a segunda reportagem da série especial sobre as “Eleições 2022: Escolha pelas Mulheres e pelas Crianças”.

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“Chegaram aqui muito assustadas, tristes e angustiadas pelo que tinha acontecido”. O relato da psicóloga Sara Silva dos Santos refere-se ao que aconteceu com duas crianças, de 2 e 6 anos, negligenciadas pela mãe e abusadas pelo tio dentro da própria casa. Os nomes e os detalhes não podem ser revelados para segurança das vítimas. 

Sara trabalha na Casa Mamãe Margarida, instituição que oferece amparo jurídico e psicológico a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual em Manaus. Ela afirma que esse tipo de crime contra crianças que estão na fase da primeira infância (0 a 6 anos) acontece diariamente, muitas vezes dentro dos lares brasileiros, isto é, trata-se de um crime intrafamiliar (no interior da família ou do grupo familiar). 

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Pais, padrastos, tios, primos, avôs, ou seja, quem deveria proteger, tornam-se abusadores e aliciadores sexuais de meninos e meninas, o que costuma deixar marcas profundas nas vítimas, a maioria delas do sexo feminino. 

O número de casos mostra que a violência sexual infantil no Amazonas está longe de ser um problema superado. Só no primeiro quadrimestre de 2022 foram 462 ocorrências de violência sexual praticadas contra crianças e adolescentes, segundo dados da Polícia Civil em conjunto com a Delegacia Especializada em Proteção à Criança e ao Adolescente (Depca). Entre janeiro e fevereiro, meses em que há dados disponíveis, 18 destes casos tinham como vítimas crianças na faixa etária da primeira infância, até 6 anos de idade.

Apesar do alto índice desse tipo de crime e da importância de combatê-lo, o tema da violência sexual contra crianças pauta apenas superficialmente os programas dos candidatos ao governo do Amazonas que lideram as pesquisas nas eleições 2022: Amazonino Mendes (Podemos), que já foi governador em três ocasiões, cita, sem dar detalhes, que vai “combater a violência contra mulheres, idosos, crianças e pessoas LGBTQIA+”.

Wilson Lima (União Brasil), que tenta a reeleição, segue pelo mesmo caminho e, em linhas gerais, promete o fortalecimento de uma rede de proteção que combata violências contra crianças, adolescentes, mulheres e idosos, “objetivando fortalecer e expandir políticas voltadas ao enfrentamento da violência contra essa população”. Eduardo Braga (MDB) não cita nenhum tipo de programa ou projeto voltado à proteção de crianças e adolescentes no seu plano de governo. 

O artigo 227 da Constituição Federal, de 1988, e o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, exigem uma atuação articulada e prioritária, direcionada para a proteção de crianças e adolescentes. É obrigação do poder público proteger as crianças da violência, da negligência, da exploração, da opressão e da discriminação.


Orientação nas escolas

Apesar do alto índice desse tipo de crime e da importância de combatê-lo, o tema pouco pautou os programas dos candidatos ao governo amazonense

Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real
Obras artísticas feitas pelas crianças da Casa Mamãe Margarida em Manaus

Em julho, uma lei sancionada pelo prefeito de Manaus, David Almeida (Avante), determinou que as escolas públicas da capital orientem os estudantes sobre abuso sexual infantil. O texto diz que “ficam obrigadas as escolas da rede municipal de ensino a incluir, nos conteúdos programáticos das disciplinas do ensino fundamental, sem prejuízo de outros a serem determinados pelo Conselho Municipal de Educação […], orientação para prevenção ao abuso sexual infantil”. A lei é fruto de um projeto apresentado pela vereadora Thaysa Lippy (PP), em maio do ano passado. Na justificativa à Câmara Municipal de Manaus, a parlamentar citou os altos números de casos de abuso sexual praticados contra crianças e adolescentes na cidade.

Segundo a psicóloga Sara Silva dos Santos, a cultura da pedofilia e do incesto presente na sociedade amazonense agrava o problema e faz com que a violência sofrida por essas crianças seja geracional. “Quando se trata de violência sexual, a maioria das mulheres dessas famílias onde essas crianças sofrem abusos também já passaram pelo mesmo. É algo cíclico, olham a criança como seres subjugados e como propriedades”, diz a profissional. Em geral, os criminosos são pessoas que cultivam o caráter violento do sentimento de posse sobre os corpos infantis. 

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“É como se fossem propriedade e acreditam que podem fazer dela o que bem entender”, afirma Sara sobre as violações contra as crianças.  

Grande parte dos casos têm as meninas como vítimas. Elas são violadas por homens próximos a partir do pensamento de que em algum momento serão iniciadas na vida sexual e, dessa forma, eles se sentem à vontade para darem início a isso a partir da violência. Há casos de meninas que foram violadas por outras figuras masculinas da família depois que os abusos começaram pelo pai. 

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 53,8% dos casos de estupro de vulnerável (menor de 14 anos) no Brasil era contra meninas com menos de 13 anos em 2019. O número subiu para 57,9% em 2020 e 58,8% em 2021. De 2020 para 2021 o número de estupros contra vulneráveis subiu de 43.427 para 45.994 no país. Desse total, 35.735, ou seja, 61,3%, foram cometidos contra meninas.

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Também de acordo com o Fórum, as características dos criminosos são as mesmas ao longo dos anos: homem (95,4%) e conhecido da vítima (82,5%), sendo que 40,8% são pais ou padrastos; 37,2% irmãos, primos ou outro parente e 8,7% avós. 

Os dados nacionais mostram que 76,5% dos estupros contra vulneráveis acontecem dentro de casa. “Chamo a atenção para algo que temos defendido constantemente, que é a escola como elemento estratégico fundamental para o enfrentamento do estupro de vulnerável”, afirma a advogada Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta, organização que enfrenta a violência sexual contra crianças e adolescentes. 

Especialistas apontam que os dados estatísticos são apenas a “ponta do iceberg”, ou seja, mostram apenas uma parte do total de crianças que são vítimas desse tipo de violência. Os números mostram somente os casos em que houve pedido de ajuda ou em que os crimes foram descobertos. 

Os abusos deixam marcas e  transformam a vida de crianças pequenas. As experiências vividas nessa fase da vida determinam a estrutura neural para o desenvolvimento das habilidades físicas, cognitivas e socioemocionais necessárias para garantir a saúde física e mental das pessoas.

Segundo o “Guia operacional de enfrentamento à violência sexual”, elaborado pelo Instituto Alana e divulgado pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, que atua nas causas relacionadas à primeira infância, a violência sexual contra crianças é um fenômeno complexo, que deixa traumas e está ligado a fatores culturais, sociais e econômicos. É, muitas vezes, uma violação silenciosa. Atinge todos os grupos sociais e pode ser cometida dentro da residência da vítima, nas escolas, nas instituições de acolhimento e pela internet.


Violência continuadaObras artísticas feitas pelas crianças da Casa Mamãe Margarida em Manaus (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

As crianças seguem sendo vítimas até mesmo quando são resgatadas do ambiente violento. Elas perdem o direito de conviver em suas comunidades, seus locais de confiança, sendo praticamente obrigadas a viver em uma rotina institucionalizada, ou seja, acolhidas por lugares como a Casa Mamãe Margarida, que desenvolve um trabalho social em prol de meninas que enfrentam este tipo de violação em Manaus. 

“Se uma criança sofre violência dentro do lar e não tem ninguém que possa se responsabilizar por ela, quem sai é ela e não o acusado. Na maioria das vezes é a criança que precisa perder a convivência familiar e entrar em uma realidade institucional para ser protegida, sendo que não foi ela quem errou e sim um adulto que cometeu um crime”, diz a psicóloga Sara.

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A violência agrava ainda mais o desenvolvimento da vítima quando acontece na faixa etária da primeira infância que, como explica a psicóloga, é um importante momento para o crescimento. “Essa violência sexual traz danos de uma forma integral e sistêmica. A gente enxerga nessas meninas um sofrimento muito grande”. 

Mudanças comportamentais, isolamento, angústia e silêncio são alguns dos indícios demonstrados pelas vítimas. Outras características são a dificuldade de aprendizagem na escola, a agressividade e a irritação.

Obras artísticas feitas pelas crianças da Casa Mamãe Margarida em Manaus (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)


O fator feminino

No período de 2019 até abril de 2021, 92 dos 112 casos de violência sexual registrados no Amazonas (81,25%) tiveram como vítimas crianças do sexo feminino. Os dados são do Sistema Integrado de Segurança Pública (Sisp), da Secretaria de Segurança Pública. Na estatística de estupro de vulnerável, os dados  não mostram os crimes na faixa etária da primeira infância, o que dificulta a informação sobre esse crime específico.

A delegada Joyce Coelho, titular da Depca, relata a dificuldade de os casos que acontecem com meninos serem denunciados. Isso é devido à sociedade preconceituosa e machista em que vivemos. Para ela, esse tipo de comportamento demonstra que os meninos vítimas de violência sexual temem que sua masculinidade possa ser comprometida e a tendência é que se calem. Dessa forma,  esses casos são subnotificados. 

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A maioria das vítimas no Amazonas são meninas moradoras de bairros periféricos, vindas de famílias de baixa escolaridade e renda. A situação de vulnerabilidade social das vítimas coopera para que esse tipo de violência seja cometido. Para Folvy Calheiro, assistente social da Casa Mamãe Margarida, é preciso que os familiares e a sociedade entendam o papel de proteção.

“A gente percebe que as crianças sofrem violência pela falta de caráter protetivo dos pais e familiares, porque muitas vezes denunciar vai mexer com a estrutura familiar. O papel fundamental enquanto família e membro familiar responsável por essa criança é proteger”, reforça.

Casos como o das irmãs de 2 e 6 anos, relatados no início desta reportagem, chocam diante da face cruel dos crimes cometidos pelos próprios familiares. As meninas, abandonadas pela mãe sozinhas em casa e sem comida, foram abusadas sexualmente pelo tio que morava no mesmo terreno. Acolhidas na Casa Mamãe Margarida, agora passam por tratamento. O mesmo aconteceu com outra criança de 4 anos. Negligenciada pela mãe, que não demonstra nenhum afeto, ela foi aliciada pelo próprio pai, que costuma ingerir bebidas alcoólicas e consumir drogas. 

Em abril deste ano, um homem de 60 anos foi preso no bairro Puraquequara, na zona leste de Manais, pelo crime de estupro de vulnerável cometido contra a neta, uma criança de 3 anos. A vítima contou a outros familiares que o avô havia passado a mão em suas partes íntimas. Exames médicos constataram lesões que confirmaram o crime. 

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Em outro caso, desta vez no município de Coari, a 363 km de Manaus, um homem de 28 anos foi preso em março deste ano por estuprar a filha de 3 anos. O crime ocorreu em outubro de 2021 e foi descoberto após denúncia da mãe. A criança ficou com as partes íntimas machucadas e precisou de atendimento hospitalar. Após investigação, o acusado foi localizado e detido. 

“Muitas vezes a gente associa a violência sexual somente ao ato da penetração. Abuso sexual pode ser qualquer ato de aliciamento, tocar as crianças em suas partes intimas, expor a vídeos pornográficos, expor a criança a ver adultos cometendo ato sexual ou conversas de tom libidinoso”, completa a psicóloga Sara.

Também em abril deste ano, um homem de 26 anos foi preso no bairro Zumbi II, na zona leste de Manaus, por armazenar e compartilhar mídias pornográficas infantis. A prisão aconteceu no âmbito da Operação Angelus e foi realizada por policiais da Depca. As mídias continham cenas pornográficas com bebês, crianças e adolescentes.

Obras artísticas feitas pelas crianças da Casa Mamãe Margarida em Manaus (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)


Prevenção e atendimento às vítimas

A Mamãe Margarida opera em Manaus como umas das dez casas de acolhimento a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, que sofreram violências e que vivem em situações de alta complexidade envolvendo outros tipos de negligências. 

A casa atua como escola de ensino fundamental e abrigo, tanto para as meninas que vêm do acolhimento institucional (casos enviados pela Justiça) como as que chegam por meio de parceiros como o Conselho Tutelar. O projeto envolve também atividades como teatro, dança, música e artes, meios que servem para a criança poder se expressar sobre a violência que sofreu.

“As meninas que vêm para cá sofrem a violência dentro do seio familiar. São casos que vão desde negligência, maus tratos, abusos psicológicos e verbais até a violência e exploração sexual, que são as principais demandas na casa, uma referência nesse quesito”, diz Sara Silva.

A delegada Joyce Coelho acredita na educação e orientação sexual como forma de prevenção e conscientização das crianças sobre os seus próprios corpos, apontando que nossa sociedade trata esse assunto como tabu. “Muitos pais acham que não devem falar sobre sexo com as crianças. As pessoas devem compreender que a orientação sexual é um meio preventivo, eficaz e necessário na medida em que é possível que você fale com a criança em uma linguagem que ela compreenda. Orientar sexualmente é dizer que ela tem direito a um desenvolvimento sexual saudável, de acordo com cada fase da vida. Não é estimular precocemente o sexo”, diz.

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No entanto, esse tipo de orientação sofre prejuízos quando a violência é cometida contra meninos e meninas que ainda estão na primeira infância, faixa etária vulnerável em que há dificuldade inclusive para a compreensão dos atos violentos. 

A legislação determina que os serviços de saúde e os serviços de assistência social, assim como os outros órgãos do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, devem priorizar o atendimento das crianças na faixa etária da primeira infância com suspeita ou confirmação de violência de qualquer natureza. Essas instituições precisam atuar em rede e garantir, se for necessário, o acompanhamento domiciliar. 

A psicóloga Sara aponta a formação de uma consciência coletiva como fundamental para servir de caráter protetivo e preventivo diante de situações de violência sexual infantil, onde família, escola e comunidade sejam conscientes do dever de cuidar e proteger. “Isso é responsabilidade do poder público. Quando a gente começar a ter políticas públicas mais preventivas na proteção, não vamos mais ter crianças na alta complexidade, ou seja em instituições com medida protetiva. Seria o contrário, teríamos famílias mais saudáveis”, observa.

O Instituto Liberta possui uma cartilha com informações sobre prevenção, denúncias e apoio às vítimas de crimes sexuais na infância e adolescência. Ela pode ser acessada neste link. Há inclusive dicas de livros e filmes que podem ajudar as crianças a falar sobre os abusos que sofrem e, dessa forma, combater a violência. Canais de denúncias, como o Disque 100, e mapa da rede de acolhimento também fazem parte da cartilha. 

Esta reportagem especial integra a série “Eleições 2022: Escolha pelas Mulheres e pelas Crianças”, parceria entre Nós, mulheres da Periferia, Alma Preta Jornalismo, Amazônia Real e Marco Zero Conteúdo, apoiada pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.

Nicoly Ambrosio | Amazônia Real


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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