Há alguns dias chegou às minhas mãos o livro Finalmente Libre, de Amanda Midence. Nele, a autora faz uma viagem ao passado e reconstrói a rota que marcou sua vida, talvez com o propósito de lançar luz sobre os cantos escuros de sua infância e derrotar assim o estigma social imposto por uma sociedade conservadora.
Nessas páginas ela relata os episódios de abuso sexual infligidos por um parente próximo – o marido de uma tia – e as consequências físicas e psicológicas derivadas desse episódio de sua vida. Amanda pertence a uma família acomodada; não nasceu em um bairro de periferia nem teve que suportar as agressões da pobreza. No entanto, como tantas crianças vulneráveis em sociedade patriarcais e machistas, não escapou do medo, da dor, da vergonha.
Menciono este livro porque constitui uma denúncia pouco usual em um círculo privilegiado. Além disso, porque deixa ver como o abuso sexual contra a infância é uma prática que cruza toda a sociedade, sem distinções de nenhum tipo e não apenas afeta a meninas, também a meninos vítimas de práticas perversas cometidas por pais, parentes próximos, sacerdotes, professores, pastores ou pessoas com influência vinculadas ao seu círculo, cujos efeitos psicológicos os perseguem pelo resto de sua existência. Se Amanda Midence pôde romper o silêncio depois de ter lutado contra seus fantasma de infância, há milhões de outras meninas e meninos condenados a suportar calados e submissos à dor e a vergonha.
Como costuma acontecer, mesmo quando as vítimas de abuso decidem enfrentar esse mundo de preconceitos e estereótipos sexistas que as rodeiam, se chocam contra um muro de negação e seu testemunho é ouvido com tremenda malícia em busca da mentira ou de propósitos ocultos. A revitimização começa desde o primeiro momento e não abandona quem tenha a ousadia de denunciar.
O abuso sexual – é preciso dizer – é um costume aceito em nossas sociedades e, por tal motivo, crianças e mulheres devem lutar sozinhas e demonstrar com provas algo que com o passar do tempo vai deixando profundas marcas psicológicas. O sistema não só é incrivelmente absurdo, mas sim de uma perversidades extrema por castigar assim aos mais indefesos.
Periferia em Movimento / Ilustração: CEDECA
hà milhões de meninas e meninos condenados a suportar calados e submissos à dor e a vergonha
Os países menos desenvolvidos de nosso continente – especialmente a Guatemala – sofrem, além de usos e costume misóginos e desrespeitosos com os direitos da infância e das mulheres, do ataque constante de organizações criminosas e redes de tráfico que agem ao abrigo de suas influências e com a cumplicidade das instituições do Estado. Ou seja, a infância e as mulheres são vítimas constantes de todo tipo de agressões e violência sexual, trabalhista e social.
Nestes dias também recebi informação sobre o assédio sexual contra mais de 15 jovens indígenas envolvidas em movimentos sociais, agressão cometida por um advogado de grande influência em seu meio. Isso impediu as vítimas de fazer a denúncia pública por temor às possíveis represálias, mas também porque nenhum meio as recebe, talvez por não virem de um entorno influente.
Nestas sociedades ser mulher – ou “menina bonita” – é enfrentar um mundo ao revés. Em lugar de gozar da proteção e do respeito, são objeto de toda classe de violência, começando desde o dia de seu nascimento com a usual decepção de um pai que preferia um filho homem e de uma mãe convencida de haver falhado nisso. Para sair do círculo é preciso transformar toda uma cultura de privilégios para um sexo e de submissão para outro.
É preciso repensar as consequências do nosso marco de valores.
*Carolina Vásquez Araya, colaboradora de Diálogos do Sul da Cidade da Guatemala
**Tradução: Beatriz Cannabrava
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