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Líderes estrangeiros durante posse de Narendra Modi na Índia em 9 de junho de 2024 (Fot: X de Narendra Modi)

O 3º mandato de Modi na Índia: alianças internas, multi-alinhamento geopolítico e Sul Global

No marco da ascensão geopolítica da Índia, é possível que Narendra Modi consolide cada vez mais sua relação com potências ocidentais para tentar conter a China
Lía Rodríguez de la Vega
Question Digital
Buenos Aires

Tradução:

Ana Corbisier

Com nova aliança no poder, a Índia deve enfrentar vários desafios internos e geopolíticos. Depois de eleições de que participaram 640 milhões de votantes, em 47 dias de processo eleitoral, os resultados trouxeram surpresas frente às previsões de diversas pesquisas prévias, mas isso não impediu que se concretizasse um terceiro mandato de Narendra Modi – também é a terceira vez que algo assim acontece na Índia.

O BJP, partido governante, obteve 240 lugares, abaixo dos 272 requeridos para a maioria no Lok Sabha, câmara baixa do Parlamento indiano (e muito abaixo de sua expectativa de 400), que possui 543 lugares. Com seus aliados, com os quais forma a Aliança Democrática Nacional ou NDA, o BJP conseguiu efetivamente a maioria, com 293 lugares, com o que conseguiu formar governo. Por sua vez, a aliança opositora ÍNDIA, encabeçada pelo partido Congresso Nacional Indiano, obteve 232 lugares no total, recuperando-se de anos de perda de protagonismo no panorama político (e por isso deixa de lado sua necessidade de maior renovação). Narendra Modi jura seu cargo para um histórico terceiro mandato como chefe do Governo da Índia.

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As cifras mencionadas contrastam com os resultados das eleições de 2019, em que a NDA, liderada pelo BJP, obteve 353 lugares, dos quais 303 só do BJP.

A campanha de Modi concentrou-se em que as eleições fossem uma espécie de referendo sobre os últimos 10 anos de conquistas de sua gestão e de sua promessa de criar uma nação desenvolvida, de situar a Índia como marca global, associada a um lugar de potência líder em geral e do Sul Global em particular, pondo ênfases discursivos diferentes nos estados do norte e do sul, ao mesmo tempo em que manteve uma retórica contrária aos islâmicos, inclusive para caracterizar a oposição como “pró-islâmica” (o que por sua vez se traduziu na terrível situação de que mesmo a oposição busca não mencionar os islâmicos).

Estado por estado

No estado do sul de Andhra Pradesh venceu o partido Telugu Desam, que apoia a NDA, obtendo 16 dos 25 lugares do estado. O BJP venceu em estados como Arunachal Pradesh, Assam, Bihar (junto com seu aliado, o partido Janata Dal Unido), Chattisgarh, Gujarat, Himachal Pradesh, Jharkhand, Karnataka (onde embora tenha tido um retrocesso, continua sendo o único estado do sul onde ganhou), Madhya Pradesh, Orissa, Rajastán (o de maior território), Sikkim (onde seu aliado, o partido Sikkim Krantikari Morcha, obteve o único posto do estado), Tripura e Uttarakhand.

Empatou em Goa com o partido do Congresso Nacional, assim como em Haryana e em Meghalaya. Em Telangana houve empate entre o BJP e o partido do Congresso Nacional, enquanto o All Índia Majlis-e-Ittehadul Muslimeen/AIMIM obteve um lugar.

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No estado de Maharashtra, o mais rico do país, o partido do Congresso Nacional obteve 13 dos 48 lugares do estado, ao mesmo tempo em que, junto a seus partidos aliados, este número chegou a 30. O BJP em troca, obteve 9, perdendo 14 lugares dos que tinha. Assim também, o partido do Congresso Nacional ganhou os 2 lugares do estado de Manipur e a aliança ÍNDIA venceu no estado de Tamil Nadu por meio dos partidos Dravida Munnetra Kazhagam e do Congresso.

No estado de Mizoram, o Movimento do Povo Zoram, aliança de 6 partidos regionais, que apoiam a defesa das minorias religiosas e o secularismo, ganhou o único lugar que lhe corresponde. No estado de Nagaland, o partido do Congresso Nacional ganhou o único lugar em jogo. No estado de Punjab, que limita com o Paquistão e é o coração da comunidade sij, venceu a aliança ÍNDIA, com lugares do partido do Congresso Nacional, do partido Aam Aadmi, etc. A aliança anterior do BJP com o partido Akali Dal tinha-se rompido em 2020 devido às leis agrárias e não conseguiu se recompor.

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Observou-se um retrocesso do BJP no estado de Uttar Pradesh, em que governa há 17 anos e foi cenário da inauguração do comentado templo de Ram en Ayodhya, no mês de janeiro, evidenciando-se também um ressurgimento do Partido Samajwadi (o que mais lugares ganhou por si só, não se apoiando apenas em sua base islâmica e na comunidade Yadav, mas ampliou-se para outras comunidades vulneráveis), que soma seus lugares aos do partido do Congresso Nacional (a aliança ÍNDIA ganhou 43 lugares, superando a NDA).

No estado de Bengala Ocidental, governado pelo partido Trinamool (TMC), este mantém sua fortaleza, superando os lugares obtidos pelo BJP, acrescentando outro êxito para a aliança ÍNDIA. Por sua vez, no estado do sul de Kerala, bastião da esquerda por muito tempo, o partido do Congresso Nacional obteve 14 dos 20 lugares que correspondem a este estado (impondo-se a coalizão ÍNDIA), e pela primeira vez, o BJP conseguiu um lugar, com Suresh Gopi como seu primeiro parlamentar ali.

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Os resultados mencionados parecem motivados por uma queda na participação dos eleitores, em grande parte associada às terríveis ondas de calor e falta de água em diversos pontos do país, que contrastaram com a ausência da crise climática global nas plataformas. Outros fatores de desânimo foram o desemprego entre os mais jovens, os impactos da retórica comunal, a inflação que golpeia os preços dos alimentos e vulnerabiliza ainda mais os mais pobres, a crescente desigualdade e, entre outros, uma controvertida reforma do recrutamento militar: o novo esquema Agnipath, que propugna contratar soldados por um período fixo de quatro anos, em vez de dar-lhes um trabalho estável e uma pensão futura o que provocou manifestações.

A incógnita devida aos novos aliados

Estas circunstâncias novas levam a que o BJP e o primeiro-ministro Modi deverão governar com apoio de seus aliados, dinâmica desconhecida para eles até este momento, ainda que seja relevante mencionar que o BJP obteve a maior quantidade de lugares, superando toda a aliança da oposição.

Provavelmente será preciso atender com mais atenção as dinâmicas próprias de seus dois aliados principais, N. Chandrababu Naidu (Andhra Pradesh) e Nitish Kumar (Bihar), cujas pressões serão mais sentidas e tornarão necessárias negociações, ao mesmo tempo em que o BJP deverá conviver com uma oposição fortalecida, de maneira que a primeira pergunta que surge é: como será o desempenho de Modi nesta dinâmica de coalizão e se o conteúdo discursivo será moderado já que gerou violências comunais e pôs em discussão o conteúdo da nação Índia, atendendo ao limite do resultado das eleições.

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Depois da votação, líderes do BJP indicaram a importância do voto feminino, destacado em estados como Uttar Pradesh e Madhya Pradesh, onde, de acordo com o mencionado, as mulheres votaram majoritariamente por este partido, de maneira particular as mulheres islâmicas (lembremos o Tríplice Talak). Nesse sentido, cabe dizer que quanto a sua representação no Lok Sabha, a Índia elegeu 74 mulheres parlamentares este ano (4 menos do que em 2019), que representam só 13,63% dos eleitos da Câmara Baixa.

Ao longo dos anos, a composição de gênero nesta câmara mostrou uma tendência geral a uma crescente representação das mulheres, ainda que o progresso tenha sido bastante lento e não linear. Em 2024, as deputadas do Lok Sabha procedem de 14 partidos diferentes e os três partidos que contam com mais parlamentares mulheres são o TMC (quase 38%), o partido do Congresso e o BJP com cerca de 13%. Finalmente, entre os candidato/as que se apresentaram, só cerca de 10% eram mulheres.

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Em relação ao voto das pessoas trans, embora pareça terem se inscrito mais (havia umas 48 mil pessoas inscritas para votar já em março deste ano, sobre um total de 488 mil de acordo com o censo de 2011, ainda que as organizações da comunidade calculem que são mais), dado o custo social e a exposição de fazer os longos trâmites que isso implica, muitas desistiram.

Quanto ao voto islâmico (sendo o islã a primeira minoria do país), um primeiro olhar parece sugerir que em muitos distritos eleitorais de maioria islâmica os votantes optaram por candidatos não islâmicos, atendendo às necessidades estratégicas destes respectivos distritos e consolidando também os candidatos islâmicos da Aliança ÍNDIA, em relação aos candidatos islâmicos de outros partidos. Isto é importante porque indica um voto estratégico, no contexto atual (a controvertida Lei de Cidadania modificada; o Código Civil Uniforme promulgado em Uttarakhand em 2024, que estabelece um conjunto comum de leis pessoais que regem questões como o matrimônio, o divórcio, a herança, entre outros, independentemente de sua religião, etc; a proibição do uso do hijab em uniformes de instituições educativas, em Karnataka, em 2022 e sua posterior anulação em 2023, depois da mudança de gestão do BJP para o partido do Congresso, etc.).

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Esta consolidação massiva em torno à Aliança ÍNDIA é ainda mais relevante se se considera a sub-representação deste coletivo em ambas as câmaras do parlamento, de maneira particular, no Lok Sabha. Todas as questões mencionadas parecem ter potencializado uma maior consciência política, acompanhada de uma melhor estratégia, do que a aplicada em outras eleições.

Contexto geopolítico e “multi-alinhamento”

Modi convidou para a terceira posse todas as autoridades do sul da Ásia, um sinal de acordo com sua política da “vizinhança primeiro” e a visão SAGAR (Segurança e crescimento para todos na região). Participaram da cerimônia o presidente de Sri Lanka, Ranil Wickremesinghe, o das Maldivas, Mohamed Muizzu.

Wikipedia, a enciclopédia, menciona a primeira-ministra de Bangladesh, Sheik Hasina; o primeiro-ministro do Nepal, Pushpa Kamal Dahal “Prachanda” e o primeiro-ministro do Butão, Tshering Tobgay. A eles somaram-se o vice-presidente de Seychelles, Ahmed Afif, e o primeiro-ministro de Maurício, Pravind Kumar Jugnauth. Ou seja, todos responderam positivamente àquele sinal.

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Por outro lado, a Índia continua projetando-se com visibilidade no cenário mundial e acentua seu compromisso com as regiões que considera vitais para seus interesses fundamentais. Conseguiu manter sua autonomia estratégica em política exterior, passando como é sabido, do não alinhamento ao multi-alinhamento, sem que isso causasse até o momento um custo verdadeiramente alto. A maioria dos governos do mundo veem este país como um ator estratégico chave e um mercado relevante. De acordo com isso, este terceiro mandato de Modi poderia consolidar a projeção global da Índia como uma “potência civilizadora” (um “viswa guru”/mestre do mundo).

Relações com os EUA e com a China

No marco do ascenso geopolítico da Índia cabe esperar que se consolide cada vez mais sua relação com os Estados Unidos e outras potências ocidentais, em torno do interesse na contenção da China e na promoção de uma região do Indo-Pacífico pacífica, livre e aberta.

Sua relação com a China, complexa e ríspida, mostrará seguramente uma Índia cautelosa, não somente frente aos conflitos fronteiriços que não se resolvem e somam mais elementos ao dia a dia como também atendendo ao desequilíbrio comercial de mais de 85 bilhões de dólares a favor da China no comércio bilateral. De acordo com isso, conserva-se firme em sua amizade em todas as circunstâncias com a Rússia, buscando que a aproximação desta com a China não se aprofunde, mesmo quando, ao mesmo tempo, reduz sua compra de armas russas e diversifica seus fornecedores.

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A Índia avançou em outro acordo para agrupamento informal com os EUA, Emirados Árabes Unidos e Israel, encontrando a maneira de manifestar seu apoio à ação armada israelense sem desatender sua adesão a um reconhecimento do estado palestino. Ao mesmo tempo, assinou, em 2016, com o Irã e o Afeganistão o “Acordo de Chabahar” para estabelecer um corredor internacional de transporte e trânsito entre os três países. Trata-se também de ativar o Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul, que busca facilitar o comércio entre Índia, Irã, Rússia e vários estados da Ásia Central e da Ásia Ocidental. A Índia necessita de rotas comerciais alternativas, considerando-se que o projeto do Corredor Econômico Índia-Oriente Médio (que se articula com a Europa) está paralisado com a guerra de Israel em Gaza e que as negociações para acordos de livre comércio com a União Europeia e o Reino Unido estão estancadas.

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Do mesmo modo, o porto de Chabahar e a atividade indiana ali lhe permitiria reinventar sua relação com o Afeganistão, sobre o qual há que lembrar que inicialmente, a participação indiana nesse projeto esteve também relacionada à abertura ao Afeganistão de “acesso a mares abertos”, sem passar pelos portos do Irã. O Porto de Chabahar atrai milhares de milhões de dólares em investimentos (Resumen Latinoamericano), Karachi e Gwadar, no Paquistão, a tempo de afinar uma nova relação com os talibãs. A implementação destes acontecimentos exigirá que a Índia ajuste com os EUA os intrincados caminhos de sua associação estratégica, que encontrarão não “pouco ruído” nestas dinâmicas.

A gestão de Modi conseguiu também em 2016 o ingresso da Índia no Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis, afetando com isso o equilíbrio estratégico no sul da Ásia, na medida em que isso contribui para os programas espaciais e de mísseis indianos, possibilitando-lhe acesso a tecnologias e sistemas de mísseis que até agora não estavam disponíveis para o país.

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Assim, a Índia fortaleceu seu papel de fornecedor de segurança, aumentando as vendas de armas a sócios do Indo-Pacífico, o que mostra que depois dos enfrentamentos fronteiriços Índia-China em 2020, a Índia busca uma colaboração maior em defesa e segurança regionais, com os vizinhos da China para enfrentar sua influência. Também avança em sua colaboração em políticas de defesa com a ASEAN, com cujos países já houve exercícios marítimos conjuntos, etc., e projeta seu poder naval no Oriente Médio para proteger e colaborar com navios sofrendo ataque aéreo ou pirataria.

A Índia e o Sul Global

Para o Sul Global, a Índia, depois do êxito da inclusão da União Africana como membro permanente do G20 durante sua presidência, seguramente buscará seguir fortalecendo este papel e buscando projetar-se como porta-voz e “acionador” privilegiado.

Surgem alguns pontos específicos de tensão com alguns sócios como o Canadá, em que a suposta repressão Índia transnacional de detratores políticos e a extensão e fortalecimento da comunidade sikh, com segmentos pró-calistanes no território deste país, gerou especial tensão, embora isso não tenha prejudicado gravemente a relação com os aliados do Canadá na Rede de intercâmbio de inteligência “Five Eyes” (EUA, Austrália, Nova Zelândia e Reino Unido).

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A Índia precisa buscar maior estabilidade e sustentabilidade a longo prazo para sua economia, dando uma solução efetiva às altas porcentagens de desemprego juvenil, que impedem pensar com certeza no alcance pleno de seu bônus demográfico (de fato este parece ter sido um fator de peso no resultado das eleições), ao mesmo tempo que estender a participação das mulheres na força de trabalho.

Precisa também encontrar uma agenda efetiva com a China, cuja projeção para o oceano índico já é uma realidade: em sua margem ocidental, este país tem sua única base militar no estrangeiro, em Djibouti.

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Enquanto este terceiro mandato de Modi abre caminho para a consolidação nacional do BJP e sua reacomodação diante do veredicto do eleitorado, a pergunta e desafio que abre quanto à política exterior é de que maneira transitar por circunstâncias globais mais hostis com seu multi-alinhamento, se o conflito entre Ucrânia e Rússia se intensificar ou o conflito China-Taiwan chegar a maiores tensões. Até o momento, do equilíbrio que pôde construir surge sua saída indene de seu desafio à polarização da política de poder, propondo-se como uma espécie de país ponte/articulador. Mas o futuro não parece isento de sobressaltos.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Lía Rodríguez de la Vega

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