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Conquista do México, autor desconhecido - Museu da América de Madri (Foto: santiago lopez-pastor / Flickr)

“Espanha deve pedir perdão ao México e abandonar desmemória”, afirma historiador

Catedrático espanhol Justo Cuño explica as raízes do conflito diplomática entre México e Espanha e afirma: "as crianças não sabem o que é a América"
Armando G. Tejeda
La Jornada
Madri

Tradução:

Beatriz Cannabrava

“A Espanha deve pedir perdão” por esse passado de “saque”, “depredação” e “extermínio das comunidades indígenas no México, e só assim deixará para trás a “desmemória” na qual tem vivido há séculos, destacou Justo Cuño, um catedrático espanhol que é também uma das máximas autoridades em História da América.

Em entrevista ao La Jornada, Cuño analisou a crise diplomática aberta entre o México e a Espanha pelas reticências do Estado espanhol, desde o Rei Felipe VI até o governo, presidido pelo socialista Pedro Sánchez, em responder aos pedidos de perdão, solicitados pelo Presidente do México, Andrés Manuel López Obrador (AMLO), pelas atrocidades durante a Conquista Espanhola e o período colonial.

Cuño é professor de História da América na Universidade Pablo de Olavide de Sevilha e do instituto de pesquisa El Colegio de América, Centro de Estudos Avançados para a América Latina. Um de seus livros mais recentes é Ayacucho – A última batalha da independência americana, uma obra que relata o combate que selou a derrota definitiva do Império Espanhol no continente americano.

Confira a entrevista

La Jornada: Como você vê a polêmica surgida entre México e Espanha?

Justo Cuño: A coleção de ditos castelhanos, que é enormemente sábia, diz que daquelas poeiras vêm esses lodos. Pois isso faz parte de um problema não resolvido, tanto por parte do México, mas sobretudo por parte da Espanha, que em sua tradição histórica e cultural não enfrenta os problemas. Prefere desviar o olhar ou fazer como o avestruz e esconder a cabeça, como se nada tivesse acontecido. E essa é a explicação de por que, quando o presidente AMLO escreve ao Rei Felipe VI, este não responde: existe essa tradição de não enfrentar os problemas.

Dá a impressão de que a Espanha não cultivou nem conseguiu entender essa parte de sua história…

Eu acho que nem tentou. E quando tentou, se protegeu nessa ideia do poder imperial, em sua grandiloquência, na magnificência do Império. E isso não explica nada, talvez um processo histórico e às vezes um processo militar, mas não explica como se construíram as identidades compartilhadas entre a Península e a América. E isso é o que deveria nos interessar agora. Os espanhóis somos devedores de uma tradição, de uma cultura e de uma história, e em algum momento teremos que enfrentar tudo isso. Não se trata tanto do que nós façamos, mas de perguntar qual é o sentimento agora dos povos e das sociedades latino-americanas e de que maneira se podem reforçar laços que não podem ser mantidos separados, porque a construção indenitária do que é americano não se entende sem o que é peninsular. E vice-versa.

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Falta construir um novo relato no qual se escutem todas as vozes?

Trata-se efetivamente de incluir todas as vozes, tanto as boas como as que consideramos más. Sem nenhum tipo de maniqueísmo, nem de simplificação, e dar a voz sobretudo àqueles que têm estado silenciados durante tanto tempo.

Você acredita que a Espanha, à parte do discurso oficial, vive de costas à América Latina?

É claro que sim. E é evidente. Nós que temos passado pelo sistema educativo espanhol percebemos de maneira clara: as crianças não sabem o que é a América, salvo as referências horríveis que lhes chegam através dos filmes da Disney, de exotismos e papagaios. Ou têm a imagem do narcotráfico e da insegurança. E seguramente a responsabilidade é dessa historiografia que foi criada aqui e que incidiu nessa dicotomia entre o que é americano e o que é espanhol.

Isso se vê quando os jovens estudam a Conquista e só leem sobre aquelas “ações heroicas” dos homens barbudos, valentes e ousados, que enfrentaram todas aquelas tribos que terminaram conquistando. E depois os períodos de independência são explicados como manobras de pessoas descontentes que decidiram se afastar da melhor das culturas e religiões, como algo desonesto e de ausência de lealdade. Na Espanha se transita nesses dois universos quando se fala da América nas escolas.

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A Espanha vive na desmemória mais absoluta. Este ano, na América Latina, comemora-se o bicentenário da Batalha de Ayacucho, que pôs fim à presença espanhola e consolidou a independência. Na Espanha não se mencionou nada a respeito desse episódio da história. Para nosso país, tudo que não são vitórias épicas se enterra nas profundezas. Escondemos constantemente a cabeça como se essa parte de nossa história não tivesse existido.

Com o pretexto do idioma em comum como principal argumento…

Sim, e apesar de isso ser verdade. Porque não se trata de desprezar tudo isso, pois faz parte da nossa cultura, tanto da americana quanto da peninsular. Mas é preciso situá-lo em seu claro contexto, sem hierarquizações e sem acreditar que uma coisa é melhor que a outra, que cada conjunto de culturas e costumes evoluiu de forma distinta a partir de um tronco comum. E a partir daí, construir novas relações, em igualdade de condições, entre a América Latina e a Espanha.

Quando se fala na Espanha dos povos pré-colombianos, limita-se a fazer referência ao suposto canibalismo ou aos sacrifícios humanos; além disso, não se sabe nada de seus avanços astronômicos e de outras ciências do saber, por exemplo…

Sim, e o triste é que isso é feito para justificar que salvaram esses povos da barbárie, sem considerar que isso foi feito com mais barbárie. Não conseguiremos sair desse círculo vicioso sem entender que as práticas que os povos pré-colombianos tinham são explicadas através de sua própria cultura e de sua própria circunstância, e não são nem melhores nem piores do que as dos conquistadores. E essa é uma péssima maneira de construir relações entre os povos.

Por que você acredita que na Espanha é tão difícil pedir perdão por esse passado violento?

É como se existisse uma espécie de desconexão em relação a essa época e nós não tivéssemos que pedir perdão pelo que Cortés, Valdivia, Orellana ou Pizarro fizeram. Pensa-se que esses eram outros, mas do meu ponto de vista, esses não eram outros, mas sim nossos antecedentes e, portanto, temos uma responsabilidade. E em virtude disso, temos que criar uma consciência e um sentimento que nos leve a uma relação irmã com a América Latina. E isso só se consegue se atendermos a esse pedido de que os espanhóis peçam perdão por todos esses processos históricos nos quais eles consideram que foram enormemente prejudicados. Temos que fazer isso! Não é um desdouro do passado imperial; mais do que isso, nesse passado imperial coexiste esse processo de depredação, de extermínio das comunidades indígenas e de saque. E as duas coisas fazem parte do nosso passado histórico e, pelo menos por uma parte, é necessário pedir perdão e desculpas.

Você vê como próximo ou distante esse perdão público?

Vejo isso muito distante. Mas sempre tenho a esperança de que algum político deixe de escutar as posturas da historiografia ultrapassada, antiquada e tradicional que pensa que nunca devemos pedir perdão.

La Jornada, especial para Diálogos do Sul – Direitos reservados.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Armando G. Tejeda Mestre em Jornalismo pela Jornalismo na Universidade Autónoma de Madrid, foi colaborador do jornal El País, na seção Economia e Sociedade. Atualmente é correspondente do La Jornada na Espanha e membro do conselho editorial da revista Babab.

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