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Toggle“Ao que se há de estar não é à forma das coisas,
E sim a seu espírito. O real é o que importa, não o aparente.
Na política, o real é o que não se vê.”
José Martí, 1891[1]
Para os trabalhadores do Centro de Estudos Martianos, que não recuam lá, em Havana.
Correm tempos em que se estende como uma mancha de azeite a imagem da corrupção como um fator dominante na vida pública de nossas sociedades.
Isto renova a necessidade de trazer à luz uma vez mais os vínculos entre a política e a virtude no melhor de nossas tradições de luta pelo equilíbrio do mundo. Ao fazê-lo, terá sempre um papel de primeira ordem a visão de José Martí sobre esse vínculo, e a clareza com que soube expor sua importância em sociedades em que, disse,
“Os homens gostam de ser guiados pelos que abundam em suas próprias faltas. Veja-se como se apegam com mais ardor às personalidades viciosas, brilhantes, do que às personalidades puras, modestas. Só nas épocas de crises, o instintivo conhecimento do grande risco e de sua incapacidade para livrar-se dele, os faz aceitar os grandes honrados. A pureza, de que em geral carecem, os irrita. Nas faltas do que os governa, veem como a sanção das suas próprias. Por uma mentirinha da consciência, acreditam que desculpando-os, se desculpam. Pois que seus pecados não estorvam o governante para chegar a seu alto posto, não é tão mal o pecar, que o mundo condena e premia. Todos os que pecaram, têm simpatia secreta pelos pecadores”.[2]
Para julgar estes pecadores Martí tinha um critério preciso. “Há homens”, disse “que vivem contentes ainda que vivam sem decoro. Há outros que padecem como em agonia quando veem que os homens vivem sem decoro a seu redor.” E acrescentava em seguida:
Decoro e a dignidade humana
No mundo há de haver certa quantidade de decoro, como há de haver certa quantidade de luz. Quando há muitos homens sem decoro, há sempre outros que têm em si o decoro de muitos homens. Estes são os homens que se rebelam com força terrível contra os que roubam dos povos a liberdade, que é roubar aos homens seu decoro. Nestes homens vão milhares de homens, vai um povo inteiro, vai a dignidade humana.[3]
E se referia com isso a homens que, dizia, “são sagrados”, como “Bolívar, da Venezuela; San Martín, do Rio da Prata; Hidalgo, do México,” aos quais “deve-se perdoar seus erros, porque o bem que fizeram foi mais que suas faltas. Os homens não podem ser mais perfeitos que o sol. O sol queima com a mesma luz com que aquece. O sol tem manchas. Os mal-agradecidos só falam das manchas. Os agradecidos falam da luz.[4]
José Martí, 171 anos: Apóstolo da Independência de Cuba e de Nossa América
A vida política de homens como estes – tão parecidos, por certo, aos que Bertolt Brecht chamou de “imprescindíveis”[5] –, disse Martí em outro momento, definia “dois tipos de triunfo: um aparente, brilhante e temporário: outro, essencial, invisível e perdurável.” E acrescentava:
“A virtude, vencida sempre na aparência, triunfa permanentemente deste segundo modo. O que a leva nas costas, é verdade, tem que apertar o coração com as duas mãos para que ferido não se lhe venha ao solo: que tão rasgado o põem os homens o coração do virtuoso, que se não se o costura e remenda com a vontade, saltará feito em pedaços menores que as gotas de chuva”.[6]
Culto a virtude
O culto à virtude em Martí, por outro lado, não se reduzia a uma eticidade abstrata. Pelo contrário, fazia parte de uma visão de mundo que se expressava em uma prática política e cultural na qual a virtude se tornava um meio para lutar pelo melhoramento humano que demanda o equilíbrio do mundo. Nessa luta, dizia, eram imprescindíveis “as armas do critério, que vencem as outras. Trincheiras de ideias valem mais que trincheiras de pedra.[7]
Do caráter dessas trincheiras, e daqueles que lutavam nelas, diz tanto o que afirmava como aquilo que se perguntava. Quem anda com ideias”, disse,
“Não sabe que a harmonia de todas elas, em que o amor preside à paixão, revela-se apenas às mentes sumas que vêm ferver o mundo sentados, com a mão sobre o sol, na cúpula do tempo? Quem trata com os homens não sabe que, sendo neles mais a carne que a luz, apenas conhecem o que tocam, apenas vislumbram a superfície, apenas veem mais que o que lhes incomoda ou o que desejam; apenas concebem mais que o vento que lhes sopra no rosto, ou o recurso aparente, e não sempre real, que pode levantar obstáculo ao que impede seu ódio, soberba ou apetite?”[8]
Esta visão ajuda a explicar-nos a preocupação constante de Martí com o melhoramento humano, e o trabalho cultural e político que este melhoramento demanda. “Se há de ter fé no melhor do homem e desconfiar do pior dele”, nos diz, para acrescentar de imediato a necessidade de dar ocasião ao melhor para que se revele e prevaleça. Se não, o pior prevalece. Os povos devem ter um cortador para quem os açula a ódios inúteis; e outra para quem não lhes diz a tempo a verdade.[9]
Ética martiana
Podemos ver a dimensão prática da ética martiana nas razões que deu para atender a essa necessidade com a criação do jornal Patria, em 1892, como órgão oficial do Partido Revolucionário Cubano, nascido para lutar pela independência de Cuba e contribuir para a de Porto Rico, últimas colônias da Espanha na América. De Patria, disse que nascia
“Para juntar e amar, e para viver na paixão da verdade, nasce este periódico. Deixa na porta – porque enfeiam o propósito mais puro – a preocupação pessoal por onde o juízo obscurecido rebaixa o desejo próprio das coisas santas da humanidade e da justiça, e o fanatismo que aconselha aos homens um sacrifício cuja utilidade e possibilidade não demonstra a razão”.[10]
Como José Martí aliava "natureza" à construção de um mundo possível ao ser humano
E dos objetivos e da forma desta tarefa deu conta em carta a seus editores, já em caminho ao mais permanente de seus fulgores, ao indicar-lhes com rica precisão que “De pensamento é a guerra maior que nos fazem: vamos vencê-la com o pensamento. […] A língua sinuosa nos estão batendo: vamos fechar-lhes o caminho com melhor língua, a bela”.[11]
Tal é a vigência do pensar martiano nestes tempos de luta renovada pelo equilíbrio do mundo. Bela há de ser a esperança certa e a ação criadora daqueles que se encarnam em povos para dar-lhes voz e caminhar com eles, frente à sinuosa daqueles que quiseram dispersar estes povos e enfrentá-lo entre si. Isto, na verdade, “é luz, e do sol não se sai. Patria é isso.”[12]
Alto Boquete, Panamá, 28 de setembro de 2024
Referências
[1] “A Conferência Monetária das Repúblicas da América”. La Revista Ilustrada, Nova York, maio de 1891. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975. VI, 158.
[2] “Cartas de Martí”. La Nación, Buenos Aires, 9 de maio de 1885. Ibid., X, 188-189.
[3] “Tres héroes”. La Edad de Oro (Vol. I, No 1, julho, 1889). Ibid., XVIII, 305.
[4] “Tres héroes”. La Edad de Oro (Vol. I, No 1, julho, 1889). XVIII, 305.
[5] “Há homens”, disse Bertolt Brecht, “que lutam um dia e são bons. Há outros que lutam um ano e são melhores. Há quem lute muitos anos, e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida: estes são os imprescindíveis.” https://laotrapoesia.com/verso/bertolt-brecht/
[6] “Cartas de Martí”. La Nación, Buenos Aires, 9 de maio de 1885. Ibid., X, 188.
[7] “Nuestra América”. El Partido Liberal, México, 30 de janeiro de 1891.Ibdi. VI, 15.
[8] “Un drama terrible”. La Nación, Buenos Aires, 1° de janeiro de 1888. XI, 337.
[9] “Nuestra América”. El Partido Liberal, México, 30 de janeiro de 1891. VI, 21.
[10] “Nuestras Ideas”. Patria, New York, 14 de março de 1892. I, 315.
[11] “A Gonzalo de Quesada y Benjamín Guerra. Cabo Haitiano, 10 de abril [1895]”. Ibid., 1975, IV, 121.
[12] “En casa”, Patria, 26 de janeiro de 1895. V, 468 – 469.