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Boris Pasternak (Imagem: Wikimedia Commons)

“Dr. Jivago”, de Boris Pasternak, e o abismo entre a literatura e o cinema

Quem conheceu Boris Pasternak e o amou, pois sempre inspirava e buscava o amor ao se relacionar, identificou nele o ser excepcional que vive, e que é o que vive, sem representações
Carlos Russo Jr
Diálogos do Sul Global
Florianópolis (SC)

Tradução:

O filme norte-americano, “Dr. Jivago”, dirigido por David Lean, com a participação de Omar Sharif e Julie Christie, realizado em 1965, jamais contou com a aprovação de Boris Pasternak, falecido cinco anos antes. O longa deturpa, em muitos aspectos centrais, a obra do autor, servindo à propaganda própria da guerra fria.

Isto torna ainda mais importante a leitura do clássico “Dr. Jivago”.

Boris Pasternak

Boris Pasternak é um homem de seu tempo, tempo que é o do descomedimento, da violência, da revolução. Apesar de jamais ter deixado de participar do sonho heroico das revoltas e revoluções de 1905 a 1917, ele se manteve sempre distante dos holofotes. “Os homens que passaram pela escola penosa das ofensas, com as quais o poder e a riqueza cobriam os desvalidos, compreenderam a revolução (de 1917) como uma explosão de sua própria ira, como um ajuste de contas carnal, após um ultraje de séculos”.

Em tempos de Primeira Guerra Mundial, pacifista, afirma que o indivíduo deveria preservar sua capacidade de amar, pois é “pela paixão e por um sofrimento devidamente consentido que se consegue mudar a face do mundo”.

O poeta concebe, então, “a beleza viva como a maior diferença entre a existência e a não existência, sabe que mesmo o dinheiro ganho honestamente não é uma vitória, e que sem vitórias do espírito nunca ocorre a libertação”.

Em “Alto mar”, escreveu:

“Éramos a música das ideias puras,
Mas ele (a celebridade) compreendeu mais tarde que
A obra requer o dom de si mesmo
Não o estardalhaço ou sucesso”.

Pasternak, na chegada à Estação Finlândia do Comandante da Revolução Soviética, Lenin, escreveu: “O inesperado do aparecimento por trás da fronteira fechada, seus discursos inflamados, a retidão que saltava aos olhos, as exigências e as impetuosidades, a ousadia sem precedentes de sua comunicação com a fúria desencadeada do elemento popular; a capacidade de não levar nada em conta, nem mesmo a guerra em curso em pró da criação de um mundo novo, jamais visto antes; a impaciência e a dedicação incondicional, a par da agudeza dos desmascaramentos destruidores e sarcásticos, deixavam estupefatos os discordantes, subjugavam os oponentes e suscitavam a admiração até mesmo dos inimigos.”

E ainda: “Lênin era a alma e a consciência de algo tão raro e tão notável, era o semblante e a voz da grande tempestade russa, única e insólita. Tendo o ardor do gênio, assumiu sem vacilar a responsabilidade pelo sangue e pela destruição, numa escala em que o mundo ainda não vira, ele não temeu lançar seu apelo ao povo, aos anseios mais caros e ocultos dele; ele permitiu ao mar enfurecer-se, e o furacão se desencadeou com sua benção. ”

A influência paterna

Boris Pasternak nasceu em Odessa, precisamente em 1890. Filho de judeus convertidos, teve como pai um brilhante pintor e ilustrador e por mãe uma das discípulas prediletas do grande pianista Anton Rubinstein. Foi pela mão de seus pais que Pasternak apaixonou-se pela música, primeiramente, e pelas letras por toda a vida.

Residindo em Moscou, um dia o garoto Boris conheceu no estúdio do pai um homem muito amável. Era um “gigante com longas barbas brancas e enorme delicadeza para com as crianças”. Tratava-se nada menos de Leão Tolstoi, que viria a se tornar seu mentor por toda a vida. O pai de Pasternak tornara-se o ilustrador de uma edição refinada de “Guerra e Paz”.

Os contatos com Tolstoi se multiplicaram e o menino frequentou Iassnaia Poliana quando o pai, em 1898, este ilustrou “A ressurreição”. Boris, então, não perdia ocasião de acompanhar seu “deus” quer em suas visitas aos camponeses, quer nas aulas de alfabetização. E permaneceria próximo a Tolstoi até 1910, ano de seu falecimento. Seu pai quem traçou a carvão o perfil do gigante morto, com a ajuda de Boris.

Em sua “Tentativa de autobiografia”, Pasternak recorda a infância e juventude. “O simples acaso fez com que eu encontrasse um poeta por quem eu desenvolveria uma enorme afinidade eletiva” (parafraseando Goethe). Num fim de tarde, em 1900, na estação Riazan, um alemão pediu-lhe uma indicação. Por sorte, o pai o socorreu e Rainer Maria Rilke, acompanhado por Lou Salomé, obteve as indicações que o conduzissem a Tula e à propriedade do amigo em comum, Tolstoi.

Boris completava quinze anos e vivia em Moscou, quando, em uma manifestação, um soldado cossaco o derrubou a chibatadas. “Aprendi a amar o terror nestes dias de fevereiro”.

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Em 1906, os Pasternak foram passar alguns meses em Berlim. Máximo Gorki, amigo da família, que trabalhava com o pai de Boris em revistas de sátira política, parte junto. Em Berlim, eles encontrariam os mais importantes intelectuais russos que fugiam da repressão desencadeada pelo czarismo. Boris trava contato com a música de Wagner, que será sua paixão musical de toda a vida.

Ao voltarem a Moscou, Boris se surpreende com a empolgação de um novo movimento artístico, o Simbolismo, que já arrebatara Alexander Blok (o autor de “Os citas”) e Bièle, cujo objetivo era a fundação de um Simbolismo Eslavo. Tempos maravilhosos, de explosões espirituais, logo após surgiriam outras correntes artísticas como os acmeístas, espécie de parnasianos, assim como os futuristas de Maiakoviski, candidatos a serem os modernos dentre os modernos.

Sem filiação escolástica

Pasternak, entretanto, jamais se filiaria a qualquer escola literária, embora a todas frequentasse. Se de Blok ele aprendera a fazer da cidade o personagem central de sua obra, de Maiakoviski apreendeu a empolgação construtivista, embora acreditasse que este “em vez de desempenhar papéis, como todo artista, ele brinca com a vida.”

Na contramão de Maiakoviski afirmava: “Uma vida sem segredo e sem reserva, uma vida esplendidamente refletida no espelho de uma vitrine de exposição, é inconcebível para mim.” Quando Essenin, chefe dos imaginistas, se suicida em 1925 e Maikoviski, em 1930, Pasternak, de certa forma, transformou-se no herdeiro de ambos, o testemunho dos desvarios de uma época.

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Assim como a obra de Proust inscreve-se no tempo, todo o trabalho daquele que nunca se filiou a qualquer escola artística viajará pela história, estreitamente conectado ao cosmos e à natureza. “A arte é realista como uma atividade e simbólica como os fatos. É realista na medida em que não inventa por si mesma a metáfora, porém, tendo-a aprendido na natureza, ela a reproduz fielmente.”

“A arte está sempre a serviço da beleza, e a beleza é a felicidade de possuir uma forma, forma que por sua vez é chave orgânica da existência.” Poeta até o último fio de cabelo, Pasternak poetiza até mesmo ao prosar.

Como um Fausto…

Quem o conheceu e o amou, pois sempre inspirava e buscava o amor ao se relacionar, identificou nele o ser excepcional que vive, e que é o que vive, sem representações, capaz sempre de interferir por outros artistas perseguidos até o limite do próprio envolvimento. “O homem é como um Fausto que deve tudo abarcar, tudo experimentar, tudo exprimir… pois um artista é um criador, um vivo entre os mortos, um ser que afirma sua profunda alegria diante da vida, da criação, da natureza, das pessoas.”

Por toda a vida, vivida em tempos sombrios e luminosos, de ebulição e rupturas, ele mais buscou a verdade, mais esquiva que a própria realidade que o circundava, tal quais aqueles que buscam deixar entrar o ar e a claridade em tempos sombrios, sempre abertos e atentos ao rumor da vida de seu tempo vivido.

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Durante os duros anos de 1929 até a morte de Stalin em 1954, ele, possivelmente influenciado por suas origens judaicas, colocou para si próprio “Estar vivo. Nada, além disso, viver é tudo, até o fim”. Mesclou, então, uma infinita melancolia com uma equívoca suavidade, em que “era mais fácil e mais natural amar, fosse o que fosse no mundo, do que odiar”. Talvez por isso, de toda a geração sofrida e sacrificada de artistas e intelectuais da década de 1890, ele tenha sido um dos poucos que sobreviveu praticamente incólume ao Termidor Stalinista, tornando-se o herdeiro de Maldestam, Marina Tzevietaieva, Essenim, Maiakoviski e Akhamatova.

Em “Dr. Jivago”, sua obra-prima, encontraremos diversos ecos de “Guerra e Paz”, e o livro, tal qual uma segunda epopeia russa, percorre os anos de 1899 até o final da década de 1920. Esta obra foi vencedora do Nobel de Literatura de 1958, cujo autor foi forçado a não receber a premiação e optou conscientemente por não o fazer.

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O líder da URSS, Stalin, sempre manteve um canal aberto com o grande poeta e, de certa forma, o ancorou entre a morte de Gorki, em 1936, e a era Jdanov (que morreria de alcoolismo em 1948), alavancando-o ao Parnaso da literatura socialista.

Pasternak, assim se expressou por volta de 1950: “Estou cansado dessa noção de que é preciso permanecer fiel a um ponto de vista. Em torno de nós, a vida muda sem cessar e creio que devemos mudar nossa maneira de ver as coisas, pelo menos a cada dez anos. ”

O sentido de “Dr. Jivago”

O “Dr. Jivago” se situa num tempo histórico de trinta anos, anos decisivos na vida dos povos russos, compreendido entre 1889 e 1929. É o romance de um homem que sofre todas as mudanças de sua época. Tal qual seu autor, o médico Jivago, que em eslavo significa um vivo entre os mortos, é poeta e muda constantemente de ponto de vista e por isso é vivo e humano.

A revolução de 1917 para Jivago representa o grande levantar dos homens contra a tirania e a mediocridade e, de certa forma, uma volta ao Evangelho de Cristo que o autor nunca abandonará, um grande desafio da construção do novo lançado à história. Compara o socialismo a um mar do qual poderia brotar uma vida “genializada e criadora”.

Mas aquela liberdade que Jivago admira e que anima os primeiros anos dos revolucionários torna-se um desafio e um ultraje, quando se estabelece “o estilo burocrático-comunista”, leia-se o controle social burocrático. A sinceridade revolucionária de um Strelnikov, o marido de Lara, que se distingue pela pureza, transforma-se em “um fanatismo amadurecido durante todo o resto da existência”.

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Jivago vê seu ideal perecer no terror, no sangue e na mediocridade. Para ele, “a vida não é mais uma matéria nem um material” e os que querem transformá-la tornaram-se brutos que jamais sentiriam o sopro da alma. Enquanto Jivago pauta sua vida pelo amor ao próximo, outros optam por viver em função de um ideal que mais se parece a uma quimera, e sacrificar milhares de seres humanos é um absurdo, um sonho maníaco, satânico!

Pasternak principiou seus escritos durante a guerra civil (1919/ 1920), guardou-os escondidos num falso fogão, e somente os concluiu em 1956, após a morte de Stalin e os discursos de Nikita Khrushchov, denunciando seus crimes.

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Teve a sua publicação proibida na URSS. Entretanto, os editores o rejeitaram por considerarem que nela estava implícita uma rejeição aos cânones do “realismo socialista”. Os censores consideraram algumas passagens como antissoviéticas e deram-se conta do sutil criticismo de Pasternak em relação ao stalinismo, à coletivização forçada do campesinato e ao grande expurgo de 1928. O autor, através do personagem Jivago, “mostrava maior preocupação com os indivíduos do que com a coletividade”.

Pasternak, então, contrabandeou os originais para fora do país e seu amigo Feltrinelli os publicou na Itália. O sucesso foi enorme e logo o romance era traduzido para 18 idiomas. Em meio à guerra fria, os USA e a CIA tiveram todo o interesse em propagá-lo e em dele se aproveitar propagandisticamente.

O Prêmio Nobel

A situação de Pasternak já muito delicada, tornou-se delicadíssima em 1958, quando a Academia Norueguesa lhe outorgou o Prêmio Nobel. A direção política da URSS foi explícita: se ele aceitasse o prêmio, seria expulso e perderia a cidadania russa.

Pasternak, entre a glória e milhões de dólares originários do Prêmio e dos royalties de seus livros no exterior, optou por recusar-se delicadamente a aceitar o Nobel. A URSS ficou com seus royalties e ele permaneceu na Rússia; retirou-se para longe de Moscou e viveu tão humildemente como sempre o fizera, até sua morte por câncer pulmonar, em 1960.

Disse a eslavófila canadense R.Larmont:

“Se Pasternak foi um Judas para os comunistas, é porque o seu Jivago interpreta fielmente um ensinamento do Evangelho, aquele que se encontra na base da Revolução Socialista: a fraternidade que se opõe à violência, cujo espírito, pouco a pouco, se degradou no universo soviético. ”


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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